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A EAR

23 de Abril de 2021

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A EAR
Por Carolina Bianchi

Em dezembro de 2020, às 16:30 de uma segunda-feira, eu percebi que estava surda do ouvido direito.

Corri para a porta do cemitério e comecei a cantar, tentando suportar o peso da minha cabeça, o peso do ano, o peso da casa. O eco da cova.

Que absurdo, perceber o peso da minha própria cabeça e o peso da cabeça de uma outra pessoa. Tudo está tão diferente. Escrever se tornou uma atividade de vidência como ler a mão de outra pessoa, ali, bem no meio da noite. Eu vi meu corpo separado em pedaços, como se dissecassem uma mosca. Cabeça de um lado, tronco para o outro lado. E a cabeça ainda pesada como um caminhão. E dentro do meu crânio uma atividade estranhíssima, como se eu descobrisse outras coisas vivendo ali.

Então, em um gesto apressado que envolve a tentativa de decifrar o que habita os labirintos minúsculos do meu ouvido, coloquei para tocar uma música experimental que só falava de homens marchando e bebês nascendo, e bebês nascendo com a mesma musculatura dos pássaros. Bebês-pássaros. E agora? Quem pode falar comigo, quem decifra o enigma da irreversibilidade mergulhada no silêncio, pior, silêncio que nem é silêncio porque não sou capaz de inventar outra palavra para isso.

Me diga aonde estamos indo porque eu sinceramente não consigo mais ouvir nada, nadaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa (fôlego) aaaaaaaaaaa, a não ser o pequeno e contínuo som dessa outra vida desse outro pedaço de vida dentro dos tímpanos, o martelo – Oh, não tem uma vez que eu fale martelo e não imagine o misto de madeira e metal, letal, dentro do canal auditivo, como uma surpresa, uma pequena bomba, uma arma pronta para ser usada por um ser inesperado.

Escrevi uma carta a Santa Úrsula– eu te juro– e comecei a me referir aos santos como pessoas, como casas, está tudo errado, e lá no fundo eu sei, eu sei, é a natureza, é o tempo, é a marca, a pequena marca de nascença diabólica sorrindo: Open your heart, Carolina, let me live. The sun above and all the stars, they look after you whenever you pass.

Viver sob a visita constante do Tornado, “A” de angústia, “A” de almoço, “A” de vingança, “A” de Paula Rego e uma mulher deitada no chão olhando para cima, se comunicando comigo através de outra coisa que não a língua, mas de algum jeito a língua está sempre lá. E o caldo grosso parecendo um sêmen nos meus ouvidos, como se pequenos seres ejaculassem inundando meu crânio e é isso que me deixa tão perdida.

Já posso sentir o cheiro da primavera, o mesmo cheiro que estava lá Séc. XII, XIII, XV, em 1968, em 1984, em 2003, e também estará em 2034, e mais longe ainda  – Que absurdo. É tudo fresco e podre, sem muito intervalo.

E de repente meus amantes de todos os séculos batem na minha porta como zumbis querendo devorar o meu cérebro e eu acho tudo muito engraçado. Faço o papel. Afinal, ainda é possível gritar diante da primavera, é possível dizer um poema de trás para frente sem pensar nas consequências.

Ouvir, ceder, cair– todos verbos numa mesma direção.

Abraço.

Carolina Bianchi (Brasil) é diretora de teatro, dramaturga e atriz.
Escreve numa negociação furiosa e lasciva entre a perspetiva de tudo que está vivo e tudo que já morreu, suportando as angústias da palavra, num desejo inesgotável de contar.

Esta iniciativa resulta de uma parceria Coffeepaste / Prado. A Prado é uma estrutura financiada pela DGArtes / Governo de Portugal para o biénio 2020/2021.

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