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O corpo como território vivo de identidade, memória e cultura é o ponto de partida do projeto “Palavras Deitadas ao Corpo”, criado por Teresa Manjua. Artista e coreógrafa com uma longa experiência no trabalho comunitário e inclusivo, Teresa leva a dança para contextos muitas vezes afastados dos circuitos culturais formais, cruzando gestos, tradições e histórias de diferentes povos. Desde 2023, o projeto tem viajado por países como a Tailândia, o Camboja e São Tomé, e prepara agora uma nova etapa na Índia, sempre em colaboração com comunidades locais.
Nesta entrevista, Teresa fala-nos sobre a origem e os objetivos do projeto, os desafios de criar em territórios com menos recursos artísticos, a importância da inclusão e da participação de artistas com deficiência, e a forma como a arte pode ser motor de transformação social. Um diálogo sobre movimento, culturas e a força coletiva que nasce do encontro entre diferenças.
O projeto "Palavras Deitadas ao Corpo" é descrito como um projeto artístico comunitário e itinerante. O que te inspirou a criar um projeto com este formato?
Sempre tive muita curiosidade por outras culturas. Quando comecei a viajar por lazer, comecei a observar as diferentes tradições, costumes, detalhes que cada povo tem. O mais curioso foi perceber que assim como eu sendo Portuguesa, também estes outros povos, não nos apercebemos da quantidade de pequenas coisas que acontecem no nosso quotidiano que são parte de uma vivência cultural coletiva e não apenas nossas. Crescemos envolvidos em práticas e vivências, que se tornam memórias individuais, mas que são partilhadas por um todo comum, sendo uma herança cultural que nos é transmitida desde que nascemos. Surgiu então esta vontade muito forte há alguns anos de criar, coreografar com e para pessoas de outros lugares.
Depois de estudar dança e aprofundar sobre a antropologia direcionada à Arte, percebi que estas duas grandes curiosidades, que me fazem mover e recriar a vida, a Dança e as Culturas, levavam-me um para um projeto viajante, que se desloca no espaço, no tempos de calendários diferentes, associados também a outras religiões e visões diferentes do que é habitar a vida e corpo. Este projeto pensado em 2017 “ficou na gaveta” até Julho 2023, quando surgiram as condições necessárias para pô-lo em prática.
O projeto foca-se na exploração do corpo como um "território de identidade, memória e cultura". Poderias aprofundar a tua visão sobre esta relação entre corpo e cultura?
Conectar culturas ao movimento, é o ponto de partida deste projeto. Ao sermos parte integrante de uma cultura adquirimos gestos, palavras, códigos corporais que se distinguem e têm significados diferentes de país para país. Todas essas influências ao que o ser humano está exposto vão moldar a forma como se move, como perspetiva o mundo, como se conecta com o outro e ainda o facto de que os corpos têm uma memória ancestral guardada em si. Códigos de ações socialmente aceitáveis são muito diferentes em todos os países, assim como gestos e interjeições. Por exemplo, o gesto que as pessoas Khmer (Camboja) usam para agradecer, saudar ou desculparem-se com muita frequência, não é utilizado em São Tomé, ou a interjeição que um São Tomense usa quando está aborrecido, não existe no sistema vocal de um Tailandês.
O fascínio de aliar o corpo à cultura é de perceber como este é tão cru e adaptável, a partir do momento em que nascemos num lugar e como tudo se transforma a partir daí. Trabalhar com diferentes culturas, permite conhecer um número infindável de possibilidades de movimento, de gestos, formas de caminhar; então a forma mais eficaz de chegar ao lugar mais espontâneo/verdadeiro de uma cultura, de um indivíduo e de um coletivo, é para mim através do corpo, porque este é a ferramenta mais sincera e honesta do Humano.
A tua experiência de uma década no trabalho com a comunidade influenciou de que forma as metodologias do projeto?
É muito importante ter um reportório de exercícios e metodologias que já sabemos enquanto orientadores que irá resultar, muitas dessas ferramentas adquiri nos 6 anos de trabalho que tive com a companhia Inclusiva CiM, mas o fator mais importante que apreendi ao trabalhar diariamente com comunidade (idosos, pessoas sem experiência prévia em dança, pessoas com défices cognitivos), foi que tudo é adaptável, ou seja enquanto formadora, não seria muito eficaz se estruturasse sessões de forma igual, onde quer que fosse dirigir um workshop ou aula.
A primeira coisa mais importante é observar o grupo, a sua dinâmica coletiva e individual, como recebem as propostas de exercícios. A segunda coisa é adaptar e confiar! Adaptar no momento da sessão, fornecendo variantes de movimento, de espaço ou de exercício que se possa adaptar às diferentes especificidades de cada um, não significa diminuir a exigência, mas sim adaptar a comunicação, vocabulário usado, dizer referências próximas ou escolhas musicais que os grupos conectem. A partir daí é confiar e observar o incrível potencial que vemos a desabrochar à nossa frente, porque todos os corpos e mentes têm a capacidade incrível de adaptar, criar e recriar.
O projeto já passou pela Tailândia, Camboja, São Tomé e tem prevista uma nova fase na Índia. Como escolhes os locais para as residências artísticas e as comunidades com as quais trabalhas?
Escolhi países pelos quais as tradições culturais me cativam muito e que gostaria de aprofundar mais. Foram várias semanas de pesquisas para encontrar associações culturais e instituições que promovessem trabalho com comunidades, que iam de encontro ao aos objetivos do projeto, ou seja entidades que já tenham conexão à comunidade local e que sejam também eles conterrâneos (e não ONG internacionais europeias com sedes noutros países), associações que trabalhassem com crianças e jovens em risco por situações económicas desfavorecidas, (como orfanato ARCAR em São Tomé) artistas com e sem deficiência que beneficiassem com contacto com artistas internacionais (Epic Arts no Camboja e Spine Movement na Tailândia) e também instituições que trabalhassem com Mulheres idosas (como na ONG Indiana). Depois de feita a pesquisa das várias instituições e associações culturais de cada país, já depois do projeto redigido, contactei todas as entidades possíveis e a partir daí o caminho foi começando a surgir, com as que mostraram interesse para colaboração.
Mencionas que o projeto se desloca para regiões que "carecem de recursos artísticos". Qual é o maior desafio ao levar estas práticas artísticas a comunidades com menos acesso a circuitos culturais formais?
Existem carências de recursos técnicos e de recursos humanos, penso que dos maiores desafios que tive, foi o trabalho de multifunções que tinha a cargo, por falta de equipa técnica e recursos materiais. O equipamento sonoro e ilumino técnico é muito reduzido e por vezes inexistente, assim como a pessoa que o faz desdobra-se numa série de funções que seria competência de pelo menos de 2 ou 3 pessoas mais. Outra questão são os espaços de ensaio não estarem devidamente equipados, com chão apropriado que permita o trabalho de chão exigido pela técnica de dança e ainda a escassez de locais de apresentações, como teatros equipados, com todo o material referido e as várias equipas que compõem um teatro em funcionamento.
Também aqui entra a questão da acessibilidade, a inexistência de rampas de acesso ao palco, esta é uma situação crítica que acontece muito em Portugal também. O outro fator tem haver com a falta de profissionais qualificados na áreas artísticas em várias regiões dos países. A escassez de formações, cursos e workshops por docentes e coreógrafos, que leva ao subdesenvolvimento cultural.
Um dos objetivos é "desmistificar as ideias culturais pré-concebidas, observando as vivências culturais locais". Poderias dar um exemplo de como o projeto ajudou a alcançar este objetivo numa das comunidades onde estiveste?
Penso que o que foi mais desafiante foi o trabalho de tentar desconstruir a ideia de incapacidade de um artista com deficiência, mas não foi inteiramente conseguido, porque assim como em Portugal, São Tomé tem um longo caminho para percorrer em relação ao ver a pessoa com deficiência como um ser apto e produtivo, como qualquer outro. A criação do espetáculo “Tempo Sem Visão”, em São Tomé, tinha como objetivo principal afirmar a igualdade de oportunidades para o artista com deficiência, a importância da empregabilidade, vendo o outro como igual, e não sempre de um lugar vulnerável e totalmente dependente de outros. Se por um lado estas pequenas ações são significativas e a mensagem chegou a alguns elementos da plateia, mudando a sua perspetiva, por outro lado não é uma ação por si só que subitamente faz mudar um pensamento coletivo, e tornar a vida mais acessível na ilha, a todas as pessoas com deficiência. Daí a importância do projeto “Palavras Deitadas ao Corpo” não se esgotar apenas no período em que está em residência artística, mas que possa ser o início de um trabalho mais profundo a desenvolver pela própria comunidade. Existem ideologias impregnadas nos povos, em todos nós que são difíceis de desconstruir, porque não nos questionamos sobre o sentido ou a veracidade dos mesmos, perpetuamos valores e ações , que nos são “postas no colo”, assumimos como verdadeiras e prosseguimos. Porém sinto que o período de ensaios teve riqueza de novas metodologias e formas de criar material, de explorar e improvisar que permitiu aos bailarinos se reinventarem e repensarem estratégias de adaptação, e continuar o papel fulcral que têm na ilha para a mudança de paradigma sobre a pessoa com deficiência e a Arte como profissão.
O projeto discute a "inclusão na Arte e os Artistas com Deficiência". Qual o papel da Companhia Dança Inclusiva ANKA no espetáculo "Tempo sem Visão"?
A Companhia ANKA tem na verdade um papel pioneiro fundamental no combate ao preconceito em relação à pessoa com deficiência na ilha São Tomense. Para a ANKA é extremamente importante afirmar esta aptidão artística como uma oportunidade profissional para as pessoas com deficiência. O espetáculo “Tempo Sem Visão” veio enfatizar e trazer a cena, o trabalho que a companhia já desenvolve diariamente. Este espetáculo foi criado em Novembro e e estreou a 3 de Dezembro, em que se assinala o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, que era por sinal, uma aspiração antiga da companhia. A visibilidade que naquela noite de espetáculo, com a RTP África, deu à Companhia sobre o seu trabalho, permitiu a muitas pessoas do público repensar o trabalho do artista com deficiência, as diferentes possibilidades de mobilidade que existem, corpos todos diferentes com caraterísticas e ritmos diferentes. E afinal não somos todos isso? O que define a norma e um défice?
Durante as residências artísticas, são usadas diversas ferramentas como improvisação, escrita automática e a utilização de objetos do quotidiano da cultura local. Como se integram estas diferentes abordagens para a criação do espetáculo final?
As improvisações são sempre uma ferramenta muito útil e inesperada, no sentido em que acontecem sempre momentos ou muito belos ou de uma estranheza grande, ambos podem funcionar e daí surgir uma das secções da peça, normalmente mais utilizado para criar estruturas espaciais de coletivo. A integração do objeto cultural é feita através do exercício de descontextualização do mesmo, do seu significado ou propósito original. Este é um conceito de Marcel Duchamp, explorado na sua obra ‘Fountain’, que utilizo e é fascinante observar a capacidade criativa que cada indivíduo tem para dar respostas tão variadas e se reinventar enquanto humano. Na Tailândia um dos intérpretes criou um solo, a partir de uma das coisas mais simples e muito típica tailandesa, uma taça de sopa Tom Yum, onde o degustar minucioso de uma sopa com sabor familiar para uma pessoa thai, se torna numa ação voraz e um tanto agressiva para o público, tornando-se algo totalmente performático, o que nos remete de novo para a questão ‘O que difere tanto a vida regular do que é a performance?’ tal como é levantada no conceito ‘Restored Behavior’. A escrita automática é muito interessante, especialmente porque não sendo uma língua que eu entenda nalguns dos países parceiros, para mim torna-se um verdadeiro painel cenográfico onde os caracteres ganham uma imagem para além do código da palavra. Da escrita automática surge também a capacidade de trabalhar com o aleatório, dado que em ‘modo automático’ e com a rapidez do tempo limite que é dado, o cérebro envia para a ação escrever informações aleatórias, porém com uma lógica de sucessão de ideias. Se pusermos isto em movimento, ligando a palavra ao movimento como resposta, também este irá responder numa sucessão fluida de ações. Em São Tomé a parte áudio foi também um elemento importante para a contextualização da cultura em palco, para tal foi utilizada a captação de sons do quotidiano (mercado, escola, som das cascatas e versos da poetisa São Tomense, Conceição Lima, em voz off).
O projeto utiliza a experiência de vida de cada indivíduo como ponto de partida para os exercícios de dança e improvisação. Poderias explicar como este processo individual se transforma numa criação coletiva?
Este é um processo curioso, porque apesar das vivências individuais poderem ser diferentes, algumas delas cruzam-se ou são semelhantes, e isto porque as pessoas cresceram no mesmo contexto social e cultural. Quantas memórias conseguimos partilhar com amigos da mesma geração de jogos que fazíamos, músicas de referência ou cartoons que faziam parte do nosso imaginário? Também nestes processos se descobrem momentos de semelhança, mesmo que seja apenas através de uma mesma emoção proveniente de memórias muito diferentes, então nesse momento é possível fazer com que o coletivo traga a mesma emoção para cena, conectando a lugares e episódios muitos diferentes das suas vidas. Também pode acontecer exatamente o contrário, ou seja não existe nada em comum e daí surgem solos de uma força e vulnerabilidade imensa, em que se expõe algo muito íntimo, muito seu para toda a envolvência da peça.
A nova fase na Índia, em colaboração com a ONG Community Seva Centre, irá contar com a participação de jovens e mulheres da comunidade local. Que aspetos específicos desta cultura te entusiasmam mais para explorar artisticamente?
A cultura indiana é fascinante pela diversidade de línguas, costumes e religiões dentro de um só país. Gostaria muito de conseguir assistir a algumas festividades que celebram e glorificam deuses Hinduístas, vivenciando alguns dos rituais e costumes que são parte integrante e de muita importância para a cultura. Estima-se que no Hiduísmo existam mais de 330 milhões de deuses e deusas e acho fascinante a quantidade de diferentes figuras que têm, corpos num híbrido de animais e Humano com muitos elementos cheios de simbologia. Esta é uma das coisas que gostaria de entender e aprofundar mais. Poderá ser por isso uma proposta de início de exploração para trabalhar com os jovens. Como podemos criar criaturas estranhas com um coletivo de corpos? Como se movimentam em cooperação? Queria muito aprofundar as vivências das Mulheres com quem irei trabalhar, absorver os gestos do seu quotidiano e transformá-los em movimento, ouvir narrativas, ou textos de referência da cultura indiana e tê-los como ponto de partida para criar uma cena de voz e corpo. Criar sequências coreográficas a partir de alguns elementos que já são familiares aos seus corpos e torná-los em algo novo. Um outro elemento que quero também explorar com os grupos e passam por algo muito mais subtil, é o detalhe e precisão da dança tradicional indiana onde os olhos e as mãos têm uma série de variedade de movimentos, num trabalho muito minucioso. Interessa-me bastante enquanto coreógrafa debruçar-me sobre os detalhes e o poder imenso que existe na simplicidade de um gesto.
O projeto pretende "expandir-se para o maior número de países possível". Que novos territórios ou culturas gostarias de explorar no futuro?
Sem dúvida a América Latina. O projeto já tem um parceiro em Lima (Peru) interessado em colaborar. Estamos agora em processo de candidaturas para apoios para permitir esta colaboração e dar continuidade a este projeto de voar ainda muito por alguns anos. Pelo menos assim o desejo. Quando criei o projeto, era minha intenção levá-lo a 3 continentes África, América e Ásia. Em 2023 levei à Ásia, 2024 África e 2025 regresso de novo à Ásia, mas com a vontade de que o próximo ano se expanda para o outro lado do oceano. O mundo é uma fonte infindável de riqueza humana e cultural, e para mim a Arte vive disso, não é criar algo nunca visto! Na minha opinião, a criação de "algo nunca visto" não é bem real. O que pretendo dizer é que a não existência de algo no nosso universo mais próximo, não significa que não se pratique, não se crie noutras partes do mundo, apenas desconhecíamos a sua existência. Então, eu penso que a vida é sobre partilhar e recriar. Percebi rapidamente que o projeto nunca poderia acontecer só num único país em cada continente, mas que teria sim que percorrer o maior número possível, precisamente para conhecer o que já existe e como o podemos reinventar.
Um dos objetivos do projeto é que as práticas ancestrais "se projetem para o futuro, iniciando uma nova dinâmica cultural e social transformada, com continuidade, desenvolvida pelos locais". Como é que garantem que o impacto do projeto se mantém após a tua partida?
Em São Tomé, por exemplo, a peça que coreografei ficou como reportório da companhia, para que apresentem noutros contextos culturais e em digressão. Creio que a melhor via é demonstrar de que é possível criar com os (poucos) meios que têm disponíveis e encorajar os artistas a manter e expandir esta rede artística internacional com instituições e comunidades, de forma a que este trabalho chegue a lugares mais recônditos e se possa replicar. O que pretendo é, através de formações, workshops e performances coreográficas com os locais, deixar ferramentas que possam impulsionar a comunidade a explorar, investigar e dinamizar mais ações artísticas, dando acesso a práticas físicas, que permitam equidade de educação artística e direito à liberdade de expressão, de classes mais desprovidas de oportunidades artísticas. Claro que o meu maior desejo era ter estrutura financeira para de facto manter vivos esses espaços abertos às comunidades com quem trabalhei, dando a possibilidade de modificar espaços e torná-los acessíveis, criar um programa onde anualmente um artista convidado viesse dar formação, workshops ou criar uma nova peça, mas infelizmente o projeto não tem essa estrutura. É para mim essencial enquanto artista e pessoa, que a Arte evolua para um lugar altruísta, onde possamos cooperar, em vez de competir, e partir de uma postura humilde em que tenho muito a aprender com os outros.
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