TUDO SOBRE A COMUNIDADE DAS ARTES

Mantém viva a cultura independente — apoia o Coffeepaste e ajuda-nos a chegar mais longe.

Mantém viva a cultura independente — apoia o Coffeepaste e ajuda-nos a chegar mais longe.

Selecione a area onde pretende pesquisar

Conteúdos

Classificados

Notícias

Workshops

Crítica

Entrevistas

A importância de ser Bonneville

Por

 

Pedro Mendes
14 de Outubro de 2025

Partilhar

A importância de ser Bonneville

Depois de duas décadas de criação intensa e de um afastamento necessário, Miguel Bonneville regressa ao espaço público com a retrospetiva “Sentiste a minha falta?” e o novo projeto “Animais, Paisagens e Santos”. Entre a Rua das Gaivotas 6, o Cão Solteiro e o Festival Temps d’Images, Bonneville revisita vinte anos de obra e de vida, num gesto que é ao mesmo tempo memória, reencontro e reinvenção.

Figura central da performance e das artes transdisciplinares em Portugal, Bonneville tem construído uma obra profundamente autobiográfica, atravessada por questões de identidade, espiritualidade, ética e comunidade. Nesta conversa com o Coffeepaste, fala do cansaço que levou à paragem, da amizade que instigou o regresso e da urgência de imaginar novas formas de santidade e de virtude para o nosso tempo.

Este ano marca o teu regresso depois de um afastamento num momento em que celebrarias 20 anos de carreira. O que te levou a fazer essa pausa, e o que te fez regressar agora?
o que me levou a fazer essa pausa foi a exaustão – estava exausto de ter de me desdobrar continuamente em tarefas que, enquanto artista, não me competiam: fazer trabalho de produção, contabilidade, secretariado, mediação, etc. tudo coisas que fui sendo “obrigado” a fazer se quisesse continuar a apresentar as minhas obras. estava sobrecarregado, desamparado, esgotado. cansado de ser continuamente posto à prova, e de ter de entrar em competição com outros artistas e estruturas, para: ou ganhar um subsídio e matar-me a trabalhar, ou não ganhar um subsídio e matar-me a trabalhar. a solução foi aceitar o “fracasso” e retirar-me. e isso significou também encarar a realidade de que praticamente ninguém dá pela nossa falta. o que me fez regressar foi a enorme fortuna da amizade – a proposta do diogo bento/teatro praga para realizar a celebração dos meus vinte anos como criador, e a colaboração com o temps d’images, que acompanhou e apoiou sempre o meu trabalho.

A retrospetiva “Sentiste a minha falta?” percorre obras criadas entre 2009 e 2025. Que memórias ou fases deste percurso te foi mais difícil revisitar?
na verdade, o ciclo percorre um período mais alargado – entre 2004 e 2025. rever o que se fez no passado é sempre vertiginoso. o mais difícil neste processo de revisitação foi olhar para vinte anos de trabalho e perceber que a precariedade os atravessa do início ao fim. perceber que uma certa atitude punk – que talvez tenha romantizado – não foi necessariamente uma opção estética; foi inevitável. o percurso foi feito de uma combinação entre apoios financeiros pontuais, investimento próprio, muito esforço, muita vontade, e redes de amizade inestimáveis. a quantidade de colaborações que perduram no tempo são um testemunho disso.

Como estás a encarar o reenactment de trabalhos teus por elementos do Teatro Praga?
a cláudia jardim já tinha apresentado o reenactment da performance “teatro #2”, em 2017, no ciclo “acreção”. infelizmente, na altura, não pude estar presente para a apresentação ao vivo. mas fiquei muito emocionado com o gesto – vejo nele um eco do trabalho que tenho vindo a desenvolver a partir da vida e obra de outras pessoas. ou seja, parte de um gesto de admiração. e isso faz-me sentir valorizado.

Revisitar o teu próprio arquivo é também um gesto performativo?
o arquivo acaba por se transformar de cada vez que é revisitado. activa-se não só o que ficou registado, mas também o que ficou de fora. por isso, provavelmente, sim – é um gesto performativo, porque implica movimento. é como se o corpo de agora conversasse com os corpos anteriores, reconfigurando-os e criando novos sentidos.

O novo projeto “Animais Paisagens e Santos” parte da pergunta “o que é, ou pode ser, um santo hoje?”. O que te interessa explorar nessa ideia de santidade contemporânea?
a pergunta sobre o que pode ser um santo hoje funciona como um ponto de partida – um impulso para pensar formas de resistência ética, espiritual e comunitária perante as múltiplas crises do nosso tempo – ecológicas, sociais, afectivas, políticas.

interessa-me abrir um espaço de imaginação: pensar o que poderia significar uma santidade contemporânea, desprendida dos modelos instituídos pelas religiões, pela política ou até pela própria ideia de família. interessa-me imaginar outras formas de virtude, e perceber, também, que vocabulário nos falta para falar sobre isso – porque parece, de facto, difícil falar em santidade hoje. procuro uma forma de reimaginar vidas morais – atentas, permeáveis, responsáveis. vidas que possam tornar o futuro numa ideia menos assustadora.

Nesta proposta, o público é convidado a escutar em silêncio, sem telemóveis nem fala. O silêncio tem aqui uma dimensão política, espiritual ou estética?
espero que a dimensão seja sempre política, espiritual e estética.

O teu trabalho sempre oscilou entre o íntimo e o coletivo. Como é que este projeto continua, ou quebra, essa linha?
para mim, essas duas dimensões nunca estão verdadeiramente separadas – o íntimo é sempre colectivo, porque é atravessado por tudo o que vem de fora; e o colectivo é feito de experiências pessoais que se encontram e transformam umas às outras. por isso, mais do que uma ruptura ou uma continuidade, este projecto reafirma o que já estava presente no meu trabalho: a consciência de que não existe intimidade sem relação, e de que cada gesto pessoal é também um gesto político.

“A Importância de Ser” mergulhou em figuras como Simone de Beauvoir, Paul B. Preciado ou Alan Turing. O que procuravas nessas biografias que também pertence à tua?
em cada uma dessas figuras procurei coisas diferentes, mas o ponto de partida foi semelhante: aproximar-me de vidas que, de algum modo, me ajudassem a pensar a minha. interessa-me perceber como é que certas biografias – sobretudo as de pessoas que viveram em tensão com o seu tempo – podem funcionar como espelhos, como extensões da própria experiência. são figuras que me devolvem perguntas sobre o que significa existir de forma íntegra num mundo que tem tendência a exigir conformidade. através delas confirmei que o acto de criar é também uma forma de construir comunidade – mesmo que essa comunidade seja feita de afinidades através do tempo.

Que papel desempenha a escrita no teu processo: é o ponto de partida, o registo final ou parte da própria performance?
a escrita tem-me permitido continuar a criar sem a necessidade de me perder em todas aquelas tarefas que mencionei acima (produção, secretariado, etc.), sem a necessidade de estar fechado num teatro, e sem a necessidade de estar presente – repor espectáculos, por exemplo, exige que esteja presente e que volte a fazer acções que, às vezes, parecem já não me dizer respeito. a escrita é uma forma de pensar e é uma forma mais livre, mais independente de criar. a escrita está presente antes de qualquer performance. é, no entanto, ainda performance. e também a transcende.

Olhando para trás, ainda te reconheces no artista que começou A Importância de Ser há mais de dez anos?
sim, reconheço-me. talvez não tanto nos resultados, mas no processo. o meu trabalho tem-se construído por acumulação e desdobramento. cada projecto nasce de outro, prolonga-o, contamina-o – e isso cria uma espécie de continuidade subterrânea. é um movimento que se expande em várias direcções, como se cada nova obra abrisse possibilidades para outras, aprofundando temas, relações e perguntas que permanecem. acho que isso se percebe de forma muito clara na restrospectiva vídeo (que está patente até dia 25 de outubro, na duplacena 77). reconheço-me porque continuo a mover-me a partir do mesmo impulso.

Trabalhas há muito na fronteira entre disciplinas – performance, vídeo, literatura, música. Essa transdisciplinaridade é uma necessidade ou uma forma de resistência?
ambas. gosto de me poder expressar de todas as formas possíveis, mesmo sabendo – ou por isso mesmo – que não tenho domínio sobre nenhuma delas. sinto que, se quero fazer um espectáculo, por exemplo, devo querer fazê-lo para que seja um filme ou um livro ou uma música... é isso que torna a criação num processo vivo – quando alguma coisa quer expandir-se e ser outra, além daquilo que é.

Que importância tem este gesto do Teatro Praga, Cão Solteiro e Plataforma285 de “alterar o curso dos acontecimentos” e devolver-te ao espaço público?
esse gesto vem tornar visível algo que, por vezes, passou despercebido no meu percurso: a comunidade que sustenta o meu trabalho e o faz existir. não se trata apenas do gesto do teatro praga, do cão solteiro ou da plataforma285, mas também de outras estruturas – como o temps d’images ou o teatro do silêncio – que fazem parte de uma rede de amigos, artistas, técnicos, criadores, programadores e pensadores que têm feito parte do meu percurso. cada um deles contribuiu, de formas diferentes, para que o trabalho pudesse continuar, mesmo quando as condições não eram as ideais. por isso, mais do que uma “devolução ao espaço público”, vejo este gesto como o reconhecimento de uma rede de afectos e de colaboração que sempre esteve presente, mesmo quando passava despercebida.

Depois desta residência, o que vem a seguir para Miguel Bonneville?
vou participar no laboratório internacional de criação do festival linha de fuga, que este ano tem como tema “a performatividade da amizade” – o que é perfeito para continuar a desenvolver a minha pesquisa em torno das afinidades entre animais, paisagens e santos, focando-me num princípio de amizade que inclua outras espécies, paisagens e mitos. vou também dar continuidade à nova série com exposições, residências e apresentações em colaboração com estruturas como a livraria aberta, o lugar do meio, e a carrozzerie n.o.t.

NOTA: A grafia apresentada nas respostas é uma opção da pessoa entrevistada

Apoiar

Se quiseres apoiar o Coffeepaste, para continuarmos a fazer mais e melhor por ti e pela comunidade, vê como aqui.

Como apoiar

Se tiveres alguma questão, escreve-nos para info@coffeepaste.com

Segue-nos nas redes

A importância de ser Bonneville

CONTACTOS

info@coffeepaste.com
Rua Gomes Freire, 161 — 1150-176 Lisboa
Diretor: Pedro Mendes

Publicidade

Quer Publicitar no nosso site? preencha o formulário.

Preencher

Inscreve-te na mailing list e recebe todas as novidades do Coffeepaste!

Ao subscreveres, passarás a receber os anúncios mais recentes, informações sobre novos conteúdos editoriais, as nossas iniciativas e outras informações por email. O teu endereço nunca será partilhado.

Apoios

03 Lisboa

Copyright © 2022 CoffeePaste. Todos os direitos reservados.

Desenvolvido por

A importância de ser Bonneville
coffeepaste.com desenvolvido por Bondhabits. Agência de marketing digital e desenvolvimento de websites e desenvolvimento de apps mobile