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“A memória pessoal é também política” - André Amálio e Tereza Havlíčková, Hotel Europa

Por

 

Pedro Mendes
5 de Outubro de 2025

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“A memória pessoal é também política” - André Amálio e Tereza Havlíčková, Hotel Europa

Luta Armada, da companhia Hotel Europa, regressa a Lisboa, à Sala Estúdio Valentim de Barros, nos Jardins do Bombarda. Criado por André Amálio e Tereza Havlíčková, o espetáculo mergulha num dos períodos mais complexos e menos discutidos da história recente portuguesa: o da luta armada, antes e depois do 25 de Abril.

Partindo de uma extensa investigação documental e de testemunhos de quem viveu esses tempos de tensão política, o projeto - inserido inicialmente no ciclo Abril Abriu, do Teatro Nacional D. Maria II - propõe uma reflexão sobre as formas de resistência, os limites da ação política e a memória coletiva do país.

Nesta conversa com o Coffeepaste, André Amálio e Tereza Havlíčková falam sobre as motivações que os levaram a revisitar este tema sensível, o processo de pesquisa e criação, a relação entre arte e responsabilidade histórica, e a importância de manter viva a discussão sobre um passado que continua a ecoar no presente.

Como nasceu a ideia de criar Luta Armada e porque sentiram necessidade de revisitar este capítulo da história portuguesa?

Esta vontade de trabalhar grupos que andaram a fazer ações armadas na história recente portuguesa vem do presente, do período político que estamos a viver. Como sabemos, o mundo e a política em Portugal mudou bastante nos últimos anos, é um espaço bastante mais violento, polarizado... Isso deu-nos vontade de ir perceber quando é que a política tinha sido tão violenta e chegámos rapidamente ao PREC, uma altura em que também a esquerda e a direita se gladiavam, em que as pessoas se batiam, em que outros impediam que comícios de outros partidos se realizassem… E isto também nos deu vontade de conhecer mais sobre a história da rede bombista de extrema-direita, da qual algumas pessoas que pertenceram a essa rede estão hoje na nossa praça pública, ligados a grupos de direita-radical. Era também bom perceber de onde é que vêm, de onde é que vêm esses discursos, quem são essas pessoas, que linguagem é que usam… E, de repente, isto transformou-se em toda uma viagem sobre os grupos que andaram a fazer a luta armada: ações armadas antes do 25-abril, durante o período revolucionário e já nos anos 80 no nosso período democrático. Tentámos perceber quais foram as diferenças entre todos estes movimentos, quais foram as razões que tiveram para passarem à luta armada, quais foram as ações que fizeram, quais foram os crimes que cometeram. No fundo, foi isso que nos levou a querer revisitar esta história, demonstrando que a passagem da mais longa ditadura da Europa para um regime democrático não foi nada pacífica. O 25 de Abril não foi pacífico. É um acontecimento da nossa história que é bastante mitificado, mas que, sim, foi bastante complexo, violento, conturbado… É isso que este espetáculo demonstra.

O espetáculo parte de testemunhos e documentos reais. Como foi esse processo de investigação e recolha de material? Houve encontros ou histórias que vos marcaram especialmente?
Nós já estamos a estudar a resistência contra o fascismo e a luta anticolonial há dez anos. A luta contra o fascismo há cinco, o fim do colonialismo português desde que criámos a companhia. Portanto, isto é tudo material que se tem vindo a construir ao longo dos anos. A vontade de trabalhar estas questões já tinha nascido em outros espetáculos, em outras pessoas que tínhamos entrevistado e testemunhos que tínhamos recolhido… E acabou por se concretizar aqui! Portanto, existe aqui uma grande pesquisa bibliográfica, vários livros que nos marcaram e também, claro, entrevistas que fizemos. Entrevistámos vários dos líderes dos movimentos ou pessoas que pertenceram aos movimentos antifascistas que fizeram ações armadas.

Curiosamente, as pessoas dos outros momentos acabaram por não querer falar connosco, o que também achamos que é revelador da maneira como nós olhamos para estes outros grupos de ações armadas, quer durante o PREC a rede bombista de extrema-direita quer as FP-25. Mas, sim, houve muitos momentos marcantes nas entrevistas: quando fomos a casa do Raimundo Narciso e estivemos a falar com ele e com a mulher; quando o Carlos Coutinho nos visitou e nos contou a sua história; quando falámos online com o Armando Ribeiro da LUAR; quando a Isabel do Carmo visitou o nosso espaço de ensaios e nos falou das Brigadas Revolucionárias. Houve vários momentos especiais que atravessaram este espetáculo!

O teatro documental, que vocês têm explorado com a Hotel Europa, implica sempre uma relação entre memória pessoal e memória coletiva. Como se equilibra essa dimensão artística com a responsabilidade histórica?
Bem, isso para nós é uma das pedras fundamentais do nosso trabalho. Nós queremos sempre que os nossos elencos, as pessoas que estão a construir o espetáculo, se coloquem nas questões que nós estamos a abordar. Uma das questões que levantámos neste espetáculo com o nosso elenco foi: Como é que seria a nossa vida sem o 25 de Abril? E, agora que já passaram 50 anos do 25 de Abril, como é que está a nossa vida? Como é que é a nossa liberdade? O que é que ainda falta conquistar e lutar por?

Portanto, essa dimensão em que os artistas que trabalham connosco se colocam perante estas questões e problemáticas que estamos a abordar é muito importante para nós. Porque é a maneira de nós nos colocarmos nesta dimensão artística e nos relacionarmos entre a memória pessoal e a memória coletiva. Fazemos isso não só com os nossos intérpretes, mas também com as pessoas que vamos entrevistando: Como é que a história atravessou a vida daquela pessoa? Como é que aquela pessoa reagiu a determinado acontecimento histórico? E como é que a vida pessoal vai avançando e vai sendo atravessada por todos os acontecimentos históricos? É uma coisa que nos comove, que nos interessa. Porque a memória pessoal é também política e é demonstrativa do que é a memória coletiva. A memória coletiva muitas vezes fica apenas num lado mais frio da história e é precisamente na forma como ela foi vivida, sentida e pensada pelo indivíduo que ela ganha uma verdadeira dimensão.

Que desafios encontraram ao trazer para palco um tema tão sensível e ainda controverso como a luta armada em Portugal?
Para nós, de facto, a complexidade foi abordar estas temáticas que - exatamente - ainda são controversas e sensíveis. Tivemos, no decurso dos nossos espetáculos, pessoas que pertenceram a estas organizações que abandonaram o espetáculo. Lembro-me perfeitamente de, quando o espetáculo estreou, haver uma pessoa das FP-25 que saiu completamente chateada com o que estava a ser retratado no espetáculo e como isso a tinha marcado.

Portanto, isto ainda é muito sensível, muito pouco discutido. Mas, por outro lado, é destas matérias que também se faz o nosso trabalho: de queremos olhar o nosso passado nos olhos, de não termos medo de falarmos sobre ele e de o trabalhar. É isso que nos marca. Obviamente, esta era uma matéria muito complexa e muito difícil de desbravar… Mas também é isso que nos entusiasma e nos faz fazer este trabalho que fazemos.  

O espetáculo estreou no ciclo Abril Abriu, no contexto dos 50 anos do 25 de Abril. Sentiram uma receção diferente por parte do público nessa altura?
Acho que sim… Estávamos num contexto especial, da celebração dos 50 anos do 25 de Abril… Mas eu acho que também é um contexto que ainda não terminou. A celebração dos 50 anos do 25 de Abril ainda perdura, ainda continua… Essa receção ainda hoje se mantém e esse momento especial em que temos a capacidade de olhar para trás 50 anos depois do período mais duro da nossa história recente ainda se mantém. E termos essa possibilidade de refletirmos - ainda mais num período como este em que parecem que querem calar a crítica e o olhar crítico sobre a história - é particularmente importante que possa acontecer.

Luta Armada é também um espetáculo multidisciplinar, onde a música ao vivo tem um papel importante. Que função tem a música neste contexto?
A música acaba por ser o motor do espetáculo. Nós ainda não sabíamos bem como é que ia ser o espetáculo quando começámos os ensaios, mas uma das coisas que queríamos fazer era trazer a música ao vivo para o espetáculo. Isso acaba por ser uma das características do trabalho da nossa companhia, mas nós aqui queríamos levar isso ao extremo – quase fazer um espetáculo de teatro-concerto. Por isso a música é muito importante porque vai dando ritmo, ambiente, guiando e trazendo muitas vezes alívio ao espetáculo… Trazendo cor, vida… Portanto, é um elemento muito, muito importante neste espetáculo e nós ficámos muito contentes com o resultado!

Esta apresentação integra o modelo “Pague o que quiser”. O que vos parece este formato e que impacto acham que pode ter na relação entre público e teatro?
Nós estamos muito contentes com este formato e estamos também muito satisfeitos por o D. Maria ter escolhido este espetáculo para pôr em ação este modelo pela primeira vez. Concordamos em absoluto com ele. Achamos que temos de encontrar cada vez formas melhores e diferentes para trazer público para a sala e para não excluir pessoas que possam ter mais dificuldades económicas. Que essa não seja uma razão para deixarem de ver Teatro, de ver Arte. A Arte é uma coisa importante – fundamental – nas nossas vidas e é importante que todos tenham acesso a ela. Estamos muito contentes com isso e achamos esta medida fantástica!

O espetáculo inclui sessões dirigidas a escolas, seguidas de conversa com os artistas. O que esperam que os mais jovens levem desta experiência?
As experiências que nós já tivemos com as Escolas foram muito positivas. Muitos dos jovens desconhecem por completo esta parte da história… Estas coisas não são dadas nas aulas, não fazem parte dos nossos livros de História… Por isso é também com este trabalho, com este espetáculo, que levamos essa discussão para as salas de aula – para os professores e os alunos discutirem, abordarem e falarem sobre estas matérias que continuam escondidas e perdidas na nossa história.

Como se insere Luta Armada no percurso da Hotel Europa e no vosso trabalho contínuo de exploração da memória e da história política?
É um espetáculo que, na verdade, continua o percurso de muito do trabalho que nós já temos feito. Sobretudo este trabalho de reflexão sobre a história recente. A nível estético há pequenas alterações, há um brincar mais com o que é o teatro documental. A ideia de levar este concerto é também uma forma de estender as fronteiras do que é o teatro documental. Portanto, para nós, a nível estético, continuamos no âmbito da experimentação do que é o teatro documental. Testando-o. Levando-o ao limite. Trazendo-lhe novas premissas.

A nível de conteúdo - a nível de memória, a nível político, a nível da reflexão sobre a nossa história recente – continua um pouco o projeto que tem marcado o nosso trabalho desde o início: trazer uma reflexão do passado que nos ajuda a pensar o presente. E o presente que nós estamos a viver é um presente com muitos perigos… Devemos entender a nossa história, conhecê-la e pensá-la de forma crítica. É isso que nós fazemos aqui.

Foto: © Filipe Ferreira

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