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A menina dança?

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Luiz Antunes
16 de Novembro de 2022

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A menina dança?

Talvez ela pudesse dançar primeiro e pensar depois” é o nome de uma das peças da coreógrafa Vera Mantero onde o questionamento é um dos pontos de partida, permitindo um lugar à reflexão. E daqui partimos.

Não é possível refletir nos dias de hoje sobre conceitos e temas como patriarcado, igualdades, direitos conquistados, adquiridos e perdidos, marcas identitárias, minorias racializadas, sexuais e outras, sem partirmos do lugar do agora, sem introduzir novos fatores que promovem mudanças sociais e humanas, como as novas formas de comunicação, os consumos transversais, o aparecimento de novas drogas químicas e a crise simbólica. Ao não darmos espaço a estes novos fatores, a estes novos dados vivenciais e sociais, as reflexões esvaziam-se nos pontos fundamentais.

 

A hegemonia masculina na construção das sociedades em todas as suas dimensões é um facto amplamente constatado, contudo é nosso dever permitir constantemente o seu debate e reflexão. No mundo da arte esta afirmação também se aplica e nos processos históricos conhecidos, a dança, em traços gerais, não é exceção. Apesar de a musa da dança na mitologia grega ser feminina, Terpsícore - uma das nove musas filhas de Zeus e Mnemósine -, ou das referências ao mundo feminino no ditirambo da tragédia As Bacantes de Eurípedes, ou a da dança de Salomé para o Rei Herodes no novo testamento, é possível dizer que desde o aparecimento da dança teatral do ocidente as referências escreveram-se sempre no masculino. O Rei Sol, Luís XIV, foi o pai e mais tarde Noverre, com a sistematização do ballet através da sua obra Lettres sur la Danse, o primeiro grande pensador - os grandes mestres de bailado são masculinos. As coreografias, desde as diversas formas de ballet até aos bailados do período romântico, passando pelos grandes clássicos russos, são sempre assinadas por homens. A pergunta inevitável surge: onde estava o corpo feminino na dança ao longo dos tempos? Foi censurado e objetificado. Durante grandes períodos as mulheres foram proibidas de subir à cena para sua suposta proteção. Por vezes, foram tanto transformadas em divas inalcançáveis, como retratadas para deleite do prazer masculino – a história que está por detrás dos famosos quadros de Degas com bailarinas da Ópera de Paris, por exemplo. Só no século XX é que é criado espaço para as mulheres afirmarem o seu pensamento e o seu movimento: LoÏe Fuller, Isadora Duncan e a sua dança livre, Bronislava Nijinska, Martha Graham, Trisha Brown, Pina Bausch, Anne Teresa de Keersmaeker, e tantas outras.

Também em Portugal a dança sempre foi escrita maioritariamente no masculino, ainda que - e aqui em contraste com o panorama internacional -, ao nível dos agentes ela apresente um peso invulgarmente expressivo do elemento feminino, parecendo ser, de alguma forma, um caso de estudo. A expressão “a dança é para meninas” diz muito mais do que é aparente, a ideia que a dança não é para rapazes, que é associada à homossexualidade masculina, reforçando os papéis de género que acabam claramente por ser opressivos tanto para as mulheres como para os homens. Este estigma levou a que Almada Negreiros abandonasse a sua curta incursão no mundo da dança teatral no início do século XX ou à perseguição infame ao bailarino Valentim de Barros, que viveu preso num hospital psiquiátrico entre 1939 e 1986, onde todos diziam que era a loucura que o atormentava, mas a única “doença” que lhe foi diagnosticada era ser homossexual.

Durante muitos anos, em Portugal, a única escola oficial que tinha uma secção de dança era o Conservatório Nacional, em Lisboa, onde era interdita a inscrição a rapazes, sendo que o curso não era propriamente de formação de bailarinas, mas sim  de formação postural, ritmo e movimento segundo a metodologia do pedagogo Jacques-Dalcroze, destinado a uma elite feminina da capital. Ser bailarina não era de todo algo bem visto pela sociedade portuguesa.

Retomando a ideia anterior que a dança em Portugal foi escrita no masculino mas que é claramente feminina nas suas diferentes dimensões - pedagógica, artística e de liderança -, é notório em muitas análises históricas que o trabalho desenvolvido por grande parte destas mulheres é sempre menor e por vezes pouco considerado, surgindo sempre uma figura masculina que assume um papel preponderante. Inscrever o nome de muitas destas mulheres é lembrar as suas lutas, percursos e criatividade.

No início do século XX, nas décadas de 1920 e 1930, abriram algumas escolas particulares de ensino de dança com inspirações inovadoras, como a da Mme. Britton, trazendo as influências de Isadora Duncan da “dança livre”; a de Sosso-Doukas Schau, vinda do Instituto Dalcroze de Genebra; e o ensino mais expressionista de Ruth Aswin, que ensinava no Ginásio Clube Português. A secção de Dança do Conservatório Nacional era dirigida por Margarida de Abreu, que foi também diretora da companhia do Estado Novo Verde Gaio e fundadora do Círculo de Iniciação Coreográfica. 

Apesar de uma não clarividência histórica, a criação da maior companhia portuguesa de dança, o Ballet Gulbenkian, assenta em dois grandes nomes femininos: Madalena de Azeredo Perdigão e Anna Mascolo. A primeira, anos mais tarde , já na década de 1980, volta a estar na base da criação dos encontros ACARTE, que são fundamentais para a formação de novos públicos e novas tendências. Como escreveu a própria: “Através da apresentação de espetáculos com características inovadoras e de experimentalismo, procurou-se informar o público português do que se estava a passar na Europa, no domínio da criação teatral e da dança e promoveu-se um intercâmbio de ideias, de reflexões e de experiências, com vista a favorecer o desenvolvimento da cultura artística europeia”. A segunda, Anna Mascolo, tem um papel fundamental na luta persistente para o reconhecimento dos profissionais da dança, na qualificação do ensino da dança a diferentes níveis, sendo pioneira a nível mundial na abertura de cursos superiores na mesma área. Entre muitas outras coisas, é uma figura essencial para a compreensão de muitos acontecimentos marcantes na história da dança em Portugal.

Na área da criação, destaco a criatividade de Águeda Sena, que, arrisco dizê-lo, foi a primeira mulher com uma dimensão coreográfica de relevo no nosso país e é muito esquecida e quase desconhecida de muitos. Outro nome marcante até aos dias de hoje é o de Olga Roriz, que ao longo de várias décadas tem apresentado regularmente as suas composições coreográficas, sendo de salientar Lágrima, de 1983, com música de Nina Hagen, que abordava a violência sobre as mulheres. Em muitos outros trabalhos da coreógrafa a mulher assume o centro das narrativas de movimento, confrontando por diversas vezes a feminilidade com a masculinidade.

O movimento independente dos anos 1990, que passa a ser chamado de Nova Dança Portuguesa, é liderado pelas interrogações fundamentais de Vera Mantero; por um olhar novo de enraizamento de Clara Andermatt; pela força organizativa e interpretativa de Mónica Lapa; para além de nomes como Paula Massano, Margarida Bettencourt e Carlota Lagido.

Só em 1996, pela primeira vez, o Ballet Gulbenkian foi dirigido por uma mulher, a bailarina Iracity Cardoso, que foi revolucionária na mestria como dirigiu a companhia, colocando-a entre as melhores do mundo.

Novas gerações de coreógrafas têm vindo a marcar a criação a nível nacional e internacional, como Tânia Carvalho, Marlene Monteiro Freitas, Catarina Miranda, Vânia Doutel Vaz, Joana Castro, Piny, Joana von Mayer, entre tantas outras.

Ficam muitas mulheres por citar que dançam e fazem dançar, que investigam e escrevem silenciosamente, criando conhecimento e aprofundando conceitos. Nesta exaustiva enumeração de nomes, não poderia deixar de falar de outra grande bailarina portuguesa, a primeira bailarina da Companhia Nacional de Bailado, Ana Lacerda.

O trauma é o passado que não passa, por isso devemos olhar para o futuro com um maior espírito reflexivo e inscrevendo nos lugares certos cada pessoa que dele faz parte.


Este artigo foi publicado ao abrigo da nossa parceria com a Umbigo Magazine. A UMBIGO é uma plataforma independente dedicada à arte e cultura, que inclui uma revista trimestral impressa, uma publicação online diária, uma rede social virada para arte e um programa de várias atividades de curadoria.


Imagem de Margarida Dias

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