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Nascida em Masaka, Uganda, Stella Nyanzi é uma das vozes mais combativas e singulares da poesia contemporânea africana. Poeta, feminista e antropóloga, foi condenada a dezoito meses de prisão por um poema que criticava o presidente do seu país — experiência que viria a transformar em matéria poética no livro No Roses from My Mouth: Poems from Prison (2020), distinguido com o prémio Oxfam Novib/PEN. Ativista incansável pelos direitos das mulheres, das comunidades LGBTIQA+ e das liberdades civis e políticas, Nyanzi vive atualmente na Alemanha, onde é bolseira da Philipp Schwartz Initiative for Researchers-at-Risk.
No festival Lisbon Revisited – Dias de Poesia, que decorre de 17 a 19 de outubro na Casa Fernando Pessoa, Stella Nyanzi apresenta-se pela primeira vez ao público português. Entre leituras e conversas, traz consigo uma poesia marcada pela coragem, pela denúncia e pela urgência de dizer, mesmo quando o dizer implica risco. Nesta entrevista, fala sobre o poder político da palavra, o exílio, e o lugar da poesia num mundo ainda desigual.
Desenvolveste uma estratégia estética/política a que chamas “grosseria radical” – um uso deliberado de linguagem vulgar, provocação, irreverência. Como surgiu esta ideia e como vês o seu efeito no público e nas pessoas no poder?
A grosseria radical é uma forma de resistência anticolonial que profissionais ugandeses da elite exerceram de forma consistente contra vários administradores coloniais, chegando por vezes a ser presos por utilizarem linguagem irreverente e impolida em publicações e correspondência pública dirigida aos colonizadores. A historiadora Carol Summers foi talvez a primeira a cunhar o termo, no seu artigo de 2006 intitulado “Radical rudeness: Ugandan social critiques in the 1940s”. Assim, não fui eu quem desenvolveu esta estratégia estética/política da grosseria radical. Quando os meus poemas e publicações nas redes sociais Facebook e Twitter incomodaram funcionários públicos do governo do presidente Yoweri Museveni, comentadores, analistas sociais e críticos literários classificaram imediatamente essas intervenções como pertencendo à mesma categoria que as produções anticoloniais anteriores de grosseria radical.
Foram observadores e críticos literários que classificaram e designaram parte dos meus textos e ações de protesto como formas de grosseria radical. Não sou a criadora do termo.
Os detentores e intermediários do poder odeiam profundamente as estratégias de grosseria radical porque estas expõem as falhas, os excessos e os abusos perpetrados pelo status quo. Consequentemente, esses membros poderosos da sociedade punem severamente os dissidentes e críticos que têm coragem de persistir no uso de palavras rudes e ações disruptivas com o objetivo de uma transformação radical – ou mesmo de uma revolução. As várias formas de punição e perseguição estatal não visam apenas travar o dissidente que usa a grosseria radical, mas também dissuadir outros cidadãos de adotarem formas semelhantes de resistência.
As reações do público – enquanto audiência, testemunha ou participante colaborante – situam-se num amplo espectro que vai da aprovação à desaprovação, da aceitação à rejeição, da apropriação à condenação, e assim por diante.
De que modo a tua experiência na prisão transformou a tua escrita, tanto no conteúdo (temas) como na forma/estilo? Que poemas nascidos dessa experiência consideras cruciais?
Na prisão feminina de Luzira, depois de superar o trauma de viver em condições sobrelotadas, insalubres, degradadas e infestadas de percevejos, aprendi rapidamente a valorizar o longo tempo disponível para escrever. Como as luzes fluorescentes do nosso pavilhão nunca eram apagadas durante a noite, criei o hábito de escrever até altas horas, enquanto as outras reclusas dormiam e ressonavam à minha volta. Aperfeiçoei a capacidade de compor poemas com caneta e papel, sentada no chão onde dormia, no Pavilhão 2 da prisão de Luzira. Como havia delatoras que roubavam e entregavam as minhas notas manuscritas às autoridades, e guardas que faziam revistas inesperadas e confiscavam ou destruíam os meus escritos, aprendi a fazer duas ou três cópias de cada poema, ensaio ou carta. Guardava-as em locais diferentes para garantir que, se uma fosse apreendida, outra pudesse ser preservada e mais tarde contrabandeada para fora da prisão por amigos que colaboravam com os meus editores.
Embora muitos cadernos e folhas soltas tenham sido confiscados ou destruídos, orgulho-me de ter conseguido fazer sair poemas suficientes para compor o meu primeiro livro: “No Roses from My Mouth: Poems from Prison” (“Sem Rosas na Minha Boca: Poemas da Prisão”). Um dos meus maiores atos de desafio foi segurar um exemplar acabado de publicar deste livro na sala de audiências, no dia da minha absolvição, antes de o juiz declarar que eu era livre, por o tribunal que me condenara a 18 meses de prisão não ter jurisdição. Ficarei sempre com o pensamento de que fui presa por um poema sobre o presidente, mas que, em vez de deixar de escrever, saí da prisão com um livro inteiro escrito e publicado durante o encarceramento.
A prisão transformou profundamente a minha escrita.
Primeiro, ser presa por escrever deu-me uma licença vitalícia para escrever livremente o que quiser. Os 16 meses que passei numa prisão de alta segurança pagaram esse direito.
Segundo, adquiri conhecimento interno sobre a vida nas prisões de segurança máxima do Uganda — histórias de mulheres presas, as condições terríveis, as dinâmicas de poder, os abusos do sistema penitenciário e as injustiças judiciais tornaram-se temas centrais da minha poesia.
Terceiro, as minhas críticas à ditadura de Museveni tornaram-se mais urgentes e ácidas: o meu compromisso com a luta pela liberdade consolidou-se quando fui prisioneira política em Luzira.
Quarto, o poema tornou-se o meu formato político preferido: a sua brevidade permite-me comentar rapidamente os acontecimentos, documentando ideias e pormenores, mas também disfarçando dados que poderiam expor outras reclusas.
Embora valorize todos os meus poemas, os que mais prezo da prisão dividem-se em três grupos: os ternos poemas de saudade pelos meus três filhos; os poemas de dor e luto pelo bebé que perdi após tortura; e os poemas de amor ambivalente para o meu companheiro.
Embora muitos leitores valorizem sobretudo os meus poemas políticos, para mim — como mulher — são os poemas de maternidade, de perda e de amor erótico que mais contam. Revelam o lado humano e vulnerável até das prisioneiras políticas mais endurecidas, como eu fui.
O exílio (ou a possibilidade dele) aparece nos teus textos. O que significa escrever a partir do estrangeiro, do exílio, mantendo um laço persistente com o Uganda? Sentes tensão entre uma voz local e uma global?
O meu quarto livro, “Exiled for My Mouth: Poems from across Borders” (“Exilada pela Minha Boca: Poemas Além-Fronteiras”), baseia-se nas minhas experiências de exílio – primeiro no Quénia, em 2021, onde pedi asilo com os meus três filhos, e depois na Alemanha, em 2022, com uma bolsa do programa Writers-in-Exile do PEN Alemanha. Em março de 2025, obtive oficialmente o estatuto de refugiada na Alemanha. Assim, escrevi a partir do estrangeiro em diferentes fases e condições de exílio, com variados graus de reconhecimento e proteção estatal.
Apesar da distância, continuo a escrever sobretudo para o público ugandês, sobre política, sociedade e cultura do Uganda. O afastamento geográfico apenas intensificou o meu desejo de estudar a nossa história política e seguir atentamente a atualidade, bem como observar outros países sob ditaduras semelhantes.
O exílio reforçou o meu compromisso com a luta pela libertação contra a corrupção e repressão militar que sufocam os ugandeses.
A partir da Alemanha, aproveito a relativa segurança para continuar a escrever criticamente sobre os abusos de direitos humanos e a má governação do meu país. O exílio ampliou o meu público do local ao global — mas não sinto tensão entre as duas vozes. Continuo a escrever sobre o que conheço melhor: o Uganda.
Por vezes escrevo sobre o próprio exílio, mas o meu público principal continua a ser ugandês ou africano.
Na Alemanha, a barreira linguística limita o acesso ao público local. Isso só será ultrapassado quando dominar o alemão ou encontrar tradutores dispostos e acessíveis. Muitos tradutores dispostos são caros; os acessíveis, por vezes, não estão disponíveis. Sou, por isso, grata a Mattias Göritz, que traduziu o meu livro de exílio para alemão: “Im Mundexil: Gedichte”, publicado pela Wunderhorn Verlag.
Como vês os públicos que leem os teus poemas, dentro e fora do Uganda? Em que diferem as suas reações, e que tensões ou surpresas encontraste?
O meu público é extremamente diversificado.
Já li poemas para estudantes, políticos, magistrados, padres, prisioneiros, trabalhadoras do sexo, noivos, enlutados, doentes, manifestantes e foliões.
Alguns públicos são presenciais, outros virtuais, e outros ainda assistem a vídeos ou filmes com os meus poemas.
As reações variam tanto quanto os contextos:
Fui presa duas vezes por causa dos meus poemas, mas também recebi prémios locais e internacionais.
Alguns críticos elogiam-me; outros patologizam-me e sugerem internamento psiquiátrico.
Uns pagam para que eu recite em público; outros querem proibir os meus textos.
Comovo-me quando pessoas desfavorecidas me pedem para escrever sobre a sua realidade.
Sinto-me honrada quando pedem autorização para reutilizar os meus poemas.
Divirto-me quando sou mal interpretada ou quando uma metáfora não “viaja bem” para outro contexto.
Aprendi a suportar insultos e ameaças — já não me afetam. O que me incomoda é tentarem calar-me.
A resposta mais surpreendente à minha poesia foi a condenação a 18 meses de prisão de alta segurança.
A mais comovente, ver pessoas chorarem ao ouvir-me.
A mais revoltante, quando a polícia encerrava eventos ou proprietários cancelavam leituras por causa do meu nome.
Em termos culturais, há diferenças notórias:
No Uganda, o público é participativo — reage, repete refrões, estala os dedos, aplaude, vaia, grita, dança, oferece dinheiro ou sai em protesto.
Na Alemanha, é geralmente contido — escuta em silêncio. Por isso, quando riem, choram ou se levantam em aplauso, fico agradavelmente surpreendida.
Independentemente da reação, sou simultaneamente a minha crítica mais severa e a minha fã mais fiel.
A tua escrita aborda sexualidade, género, corpo, tabus — provocando críticas e admiração. Como decides até onde ir? Impões limites a ti própria?
Alguns dos meus poemas são deliberadamente transgressores, destinados a romper tabus, desmontar os limites da civilidade e subverter as regras da respeitabilidade.
O que mais me incomoda é o duplo padrão dos críticos: condenam-me por ousar, mas calam-se quando outros o fazem.
Gosto de escrever sobre sexo, sexualidade, género, procriação, nascimento, intimidade, prazer, infidelidade, menstruação, masturbação, doenças sexualmente transmissíveis, violência sexual, leis sobre o corpo, e muitos outros temas considerados impróprios.
A sexualidade é uma das minhas armas literárias.
Prezo a precisão factual e a clareza da mensagem — que, às vezes, me autocensuram.
Mas, ao escrever, parto sempre de uma liberdade total; só depois decido se devo suavizar ou intensificar o tom.
Sei que ainda não explorei totalmente os limites da minha licença poética.
Quero ser ainda mais corajosa.
Estou, na verdade, a tornar-me uma escritora plenamente livre.
Que impacto podem ter a arte e as palavras na confrontação com regimes autoritários, discursos conservadores, opressão? A arte pode realmente abrir espaços de mudança?
A arte e as palavras têm um poder mágico de transmitir mensagens e mover consciências.
Podem levar as pessoas a agir, a mudar de rumo, a questionar.
Podem dar clareza — e a clareza é o primeiro passo para a mudança.
A arte expõe, ilumina, amplifica, dá visibilidade ao que estava escondido.
Cria consciência, destaca lacunas, inspira ação.
Acredito firmemente que a arte pode abrir espaços de transformação.
Qual foi o custo pessoal do teu ativismo poético — em termos familiares, mentais, de segurança? E como equilibras isso com a necessidade de continuar?
Embora tenha pago um preço alto, recuso-me a calar-me.
Fui alvo de perseguição política persistente por parte do Estado.
Recebi ameaças diretas, através da família, dos amigos, por cartas, telefonemas e redes sociais.
Quem me apoiava também foi intimidado.
Fui presa várias vezes, desaparecida durante dias, torturada, processada duas vezes por “comunicação ofensiva” e “assédio cibernético” ao presidente, condenada uma vez a 18 meses de prisão.
Sofri um aborto após tortura.
Fui impedida de viajar, retirada de um avião, as minhas contas bancárias foram congeladas, o meu carro vigiado, o meu gabinete e casa invadidos, os meus salários retidos, e fui suspensa indefinidamente da Universidade de Makerere, mesmo depois de decisões judiciais a meu favor.
Mas tudo isso reforçou a minha determinação.
Fugir para o exílio garantiu que eu pudesse continuar a escrever e a lutar.
Como lidas com a censura — externa (Estado, polícia, leis) e interna (autocensura, medo)?
A censura estatal agravou-se no Uganda.
Fugi para continuar a escrever, mas até na Alemanha existe uma forma diferente de censura, nascida da história do Holocausto.
A mais persistente, porém, é a autocensura, motivada pela preocupação com os meus filhos e família.
Sempre insisti que escrevo como indivíduo livre — ninguém da minha família tem poder sobre o meu direito à expressão.
Mas estou consciente de que as minhas palavras podem afetar o bem-estar deles.
Que papel desempenham a linguagem corporal, a performance e o estilo visual (como a nudez ou o protesto visual) nos teus projetos poético-ativistas? O que comunicam para além das palavras?
Parte do meu repertório de resistência é o protesto visual — através da nudez, gestos explícitos, performances grotescas, mímica ou dança.
Como mulher negra cisgénero criada numa sociedade patriarcal que restringe o corpo feminino, aproprio-me do escândalo e do choque dessas ações.
São baratas, eficazes e atraem os media tradicionais o tempo suficiente para transmitir a mensagem e redefinir a agenda pública.
Desde despir-me em protesto, levantar o dedo do meio, abanar os seios nus, bater nas nádegas, usar algemas, colar a boca com fita ou cadeado — tudo são símbolos de autonomia e agência.
Compreender o seu significado exige conhecimento dos códigos culturais e sociais locais.
Estes gestos comunicam recusa, irreverência e resistência indomável.
Que mensagem gostarias que os teus poemas deixassem às próximas gerações no Uganda, especialmente mulheres, pessoas LGBTQ+ e ativistas? Que legado esperas construir?
Espero ser lembrada como uma mulher que falou, que se insurgiu contra a opressão — no Uganda e no mundo.
Desejo que as pessoas se sintam encorajadas a defender os direitos das minorias, mesmo quando isso é perigoso.
Quero que os meus filhos contem como os inspirei a persistir na busca de justiça.
Seja por raparigas pobres, mulheres, pessoas LGBTIQA+, presos políticos, trabalhadores ou doentes mentais — espero que o meu legado seja o de alguém que usou a poesia, o pensamento académico, o ativismo e a arte para dar voz a quem não a tem, denunciar injustiças e defender a liberdade e a dignidade humanas.
A luta continua!
Foto: © Baraka Bah
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