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Há uns anos, escrevi uma piada sobre a dependência das redes sociais e publiquei-a no Facebook:
“Decidi fazer uma pausa do Facebook.
Até amanhã. ☺”
Estar online tornou-se ser online. O ser online é coextensivo ao ser offline. A internet está dentro de mim e eu estou dentro da internet. O digital é uma parte do real, não está fora do real. Já há muito tempo que vivemos as nossas vidas no cruzamento dos mundos real e virtual, num ciber-não-espaço digital liminar de virtualidade material. O código é a nossa língua franca global. Passei por várias ondas de euforia tecnológica em relação à forma como a internet e a diversidade de ambientes online salvariam o mundo, para depois ver algumas dessas esperanças desfeitas. As tecnologias - tal como as pessoas - são complexas, contraditórias e falíveis. A internet é uma ferramenta, um meio, suscetível de ser ao mesmo tempo emancipatório e aprisionador. Vint Cerf - o pioneiro tecnológico que, no início da década de 1970, ajudou a desenvolver a ARPANET, o primeiro nó da internet - lembra-nos que a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa dos Estados Unidos (DARPA) foi a entidade governamental crucial no desenvolvimento de novos protocolos de comunicação “internetizados” que lançaram as bases das nossas realidades online: https://www.internetsociety.org/internet/history-internet/brief-history-internet-related-networks/
Nascemos, renascemos como informação (ou dados) e somos depois batizados no digital. Sou um pedaço de informação há 60 anos. O meu registo de nascimento, número de segurança social, registos médicos e outras informações foram processados por sistemas de registo informáticos do governo norte-americano. É uma maneira de pensar na nossa relativa autonomia ou soberania parcial enquanto seres humanos: a vida começa novamente com a conceção de dados. Somos apenas pó de dados ao vento. As tecnologias - e as experiências percetivas e cognitivas que estas tecnologias geram - são extensões do nosso eu físico e cognitivo, citando o livro inovador de Marshall McLuhan de 1964, Compreender os Meios de Comunicação - Extensões do Homem. Nos anos 1960 e 1970, em criança, ver televisão constituiu uma experiência formativa no domínio da distração induzida pelos meios de comunicação de massas, obrigando-me a desenvolver novas competências cognitivas para gerir essas distrações provocadas pelos media para conseguir pensar num estado de distração. A televisão representava uma nova forma de ligação mediada ao mundo, ainda que alguns afirmassem que ela nos desligava do suposto mundo real. Não esqueçamos que a televisão era/é um ecrã através do qual podemos vivenciar outras realidades para além do nosso alcance geográfico imediato, um precursor da experiência online da internet.
No ensaio de Fredric Jameson intitulado Pós-modernismo, ou a Lógica Cultural do Capitalismo Tardio, publicado em 1984 na New Left Review, o teórico cunhou a expressão “hiperespaço pós-moderno” para caraterizar uma desorientadora mutação da espacialidade arquitetónica, que aparentemente excedia as nossas capacidades corporais e cognitivas normativas. Jameson defendeu uma estética do mapeamento cognitivo para lidar com a nossa posição débil face ao “espaço mundial do capital multinacional”. Julgo que a teorização de Jameson foi uma antecipação presciente da internet, sobretudo se a considerarmos como um sistema gerador de relações sociais abstratas e deslocalizadas, ao mesmo tempo que nos proporciona um meio de mapear, representar e nos relocalizar no âmbito dessas relações sociais desorientadoras. A revolução provocada pelos computadores pessoais nos anos 1980 acelerou a adoção generalizada da web e da internet uma década mais tarde - um sistema que ofereceria modos de conexão radicalmente mais interativos e personalizados do que a televisão tradicional. A convergência entre hardware computacional, televisão e internet no seio da telefonia móvel acabou por se concretizar: virtualmente tudo estava na ponta dos nossos dedos, onde quer que estivéssemos. Estar online era/é tão sedutor por dar a impressão de que estávamos a participar na criação de um novo tipo de sociedade mediática pós-televisiva. É também este o fascínio interativo das redes sociais contemporâneas: criam a ilusão convincente de que cada um de nós pode produzir a sua própria experiência doméstica de comunicação social de massas para seguidores, amigos e desconhecidos. O influenciador das redes sociais é a estrela autodidata da era pós-internet. Quem é que quereria abandonar esse meta-mundo real?
Quando fiquei online pela primeira vez, por volta do início da década de 1990, em Nova Iorque, o acesso à internet podia ser feito apenas através de um modem de ligação direta conectado a uma linha telefónica fixa, ou seja, não havia Wi-Fi. O som estridente do modem telefónico a estabelecer ligação à internet ficou gravado para sempre na minha memória. Conectarmo-nos à internet era como um abraço virtual - como se o nosso ser social estivesse a ser reconhecido ou mesmo validado. E, contudo, não percebíamos completamente o que significava estar online e não sabíamos realmente onde ficava a internet. Será que ela existia? Era um mundo paralelo, uma espécie de sombra do nosso? Tendemos a esquecer-nos o quão chocante foi o aparecimento dos primeiros websites: foi como se uma outra dimensão do espaço-tempo tivesse sido aberta. Os nossos dispositivos cognitivos e percetivos humanos offline viram-se obrigados a evoluir para acompanhar a aceleração das experiências online, indicando que já há várias décadas que existe uma fusão entre a vida “real” e a “virtual”. Analisando a situação em retrospetiva, torna-se evidente que estar online foi sempre uma questão de conexão e desconexão em simultâneo - uma dialética de individuação e socialização. Estará a minha consciência redistribuída por estas redes? Quantos dos meus fantasmas digitais estão a assombrar as esferas online? E contudo, não sinto que tenha sido desterritorializado, pois a esfera online é um território, que me é tão interno como extrínseco. A internet é também a outernet. Somos parte da internet de tudo; formamos uma internet física de seres humanos.
Por volta de meados da década de 1990, encarei a web como um meio para alargar as possibilidades de curadoria, especificamente em relação a novos modos de participação social e interatividade humana. Na web, o observador passivo pode ser transformado num utilizador ativo. A minha exposição Screen (1996) questionava a inter-relação entre a pintura e a televisão, e como a nossa perceção da arte já se havia tornado televisual. A exposição decorreu numa galeria física tradicional e num website. Apesar da exposição na galeria ter encerrado há quase 30 anos, a versão online continua viva, com a sua dinâmica interativa preservada devido ao Walker Art Center ter adquirido o website äda'web (que alojava a versão online de Screen) como parte da sua coleção de media: http://www.adaweb.com/influx/decter/screen.html
É possível que o tempo possa ser suspenso online. A internet serve como um depósito virtual, um arquivo, uma plataforma para coligir várias histórias online/offline. Uma exposição online, baseada na web, caso seja cuidadosamente preservada, pode durar, em teoria, para sempre. A experiência de ver essa exposição online no seu computador ou dispositivo móvel implica que a exposição também continua a ter uma presença virtual offline na materialização do mundo desmaterializado. A blockchain parece propiciar outras oportunidades para transcender tempo e espaço.
Com o aparecimento das redes sociais no século XXI, a distração humana entrou num ritmo alucinante. A confluência da telefonia móvel e das redes sociais gerou importantes interferências cognitivas, uma vez que sentimos necessidade de estar sempre disponíveis e ligados, onde quer que estejamos. É a mercantilização do tempo, do espaço e até do sono. Os algoritmos capazes de prever as nossas preferências consumistas e outros desejos na economia da atenção. A condição 24/7, invocando Jonathan Crary. Trabalhar desde casa-enquanto-escritório, ou no escritório-enquanto-casa, na nossa era pós-pandémica, onde lazer e trabalho se confundem. Alguns sonharam que o Facebook (agora Meta), o Twitter (agora X) e o Instagram, nos levariam a uma utopia social transnacional e, no início, viveram-se alguns momentos maravilhosos, mas os piores aspetos da natureza humana vieram ao de cima e o suposto paraíso tecnológico desvaneceu-se. Mas temos de admitir que o lixo, a imbecilidade e a perversidade nas redes sociais são um reflexo - e uma refração - dessas mesmas particularidades humanas no mundo offline. As redes sociais não inventaram a maldade humana, mas esta pode ser facilmente amplificada online quando algo horrendo se torna um meme e passa a ser viral. O conceito de uma esfera pública democrática online, onde podemos ter debates sensatos e até algum consenso racional, foi em parte estilhaçado. As redes sociais podem ser instrumentalizadas para alimentar o dissenso social e gerar silos hiper-ideológicos, nos quais as pessoas inventam factos alternativos (falsidades) para justificar os seus ressentimentos e agendas. Todavia, isto não passa de um reflexo/refração do mundo offline. As tecnologias informativas e comunicativas da internet não asseguram uma distribuição equitativa da educação e do conhecimento, nem o igualitarismo social, mas não deixam de oferecer importantes canais de acesso à educação e ao conhecimento. Embora os mundos online estimulem determinados aspetos de participação democrática, constatamos, paradoxalmente, que as redes sociais também podem ser utilizadas para enfraquecer a democracia.
Nas redes sociais, tendemos a partilhar demasiado a nossa vida privada, mesmo numa época em que o privado e o público já se tornaram de certo modo permutáveis. Será isto generosidade, narcisismo, ou ambos? Também fazemos publicidade a nós próprios online, permitindo que o nosso capital intelectual e criativo seja explorado e extraído por empresas tecnológicas monopolistas. Será o masoquismo o preço a pagar para estarmos omnipresentes, online, como forma de sobreviver? Mas também existe espaço para a esperança. Às vezes, é prazeroso criticar as redes sociais enquanto as utilizamos (muito meta), e pode ser com certeza frutífero manter ligações virtuais com amigos e colegas de profissão. Apesar de tudo, há muita sabedoria, conhecimento e informação útil disponível online, ao contrário do que à partida possa parecer. A título ilustrativo, quando estive doente com COVID-19 no início da pandemia, em Nova Iorque, por volta de março/abril de 2020, aprendi imenso ao ler diariamente no Twitter as publicações de epidemiologistas e virologistas sobre a investigação científica em curso sobre o novo vírus, o que ajudou a minha saúde mental - tal como a consulta online por vídeo que tive com o meu médico enquanto estava febril com COVID-19. Além disso, se não tivessem havido videoconferências online no Zoom, Skype e noutras plataformas durante a pandemia - que facilitaram o contacto com pessoas e lugares para além das paredes físicas dos confinamentos -, é provável que o nosso bem-estar psicológico tivesse sofrido muito mais. Sem o ensino à distância online, milhões de estudantes teriam sido privados das suas experiências educativas. E a transição para o trabalho à distância a partir de casa online durante a pandemia teria sido consideravelmente dificultada. Por outro lado, no que diz respeito à forma como os mundos das artes visuais contemporâneas tendem a utilizar as redes sociais, e em especial a plataforma Instagram, há um ethos implicitamente anti-intelectual e pós-pensamento. O objetivo principal é atrair o nosso olhar da forma mais eficiente e rápida possível para obter “gostos” (como expressão máxima da aclamação), antes que os nossos olhos avancem para a próxima publicação. É a vitória da superfície hiper-pós-modernista e da falta de profundidade, invocando novamente Jameson?
A dicotomia entre vida online e offline é um vestígio epistémico de uma época que já lá vai. Atualmente, por exemplo, existe uma empresa de tecnologia a desenvolver uma “cidade cognitiva” movida por IA e dados baseados no ser humano que vai para além da utilização de informações em tempo real, como acontece com as “cidades inteligentes”. Diz-se que esta “cidade cognitiva” funcionará como um sistema preditivo, antevendo a forma como as pessoas agem na sua vida urbana física e virtual quotidiana. Parece uma versão simpática e fofinha da tecnologia fictícia de pré-crime do filme (e livro) Relatório Minoritário. Numa cidade que pensa por nós, não há diferença substancial entre o online e o offline. Estamos todos ligados uns aos outros e a tudo o resto, e o sistema faz a nossa curadoria (por assim dizer), por mais distópico que tal possa parecer.
Este artigo foi publicado ao abrigo da nossa parceria com a Umbigo Magazine. A UMBIGO é uma plataforma independente dedicada à arte e cultura, que inclui uma revista trimestral impressa, uma publicação online diária, uma rede social virada para arte e um programa de várias atividades de curadoria.
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