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Beatriz Teodósio: transformar a memória em palco

Por

 

Pedro Mendes
12 de Novembro de 2025

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Beatriz Teodósio: transformar a memória em palco

Em Somos Todas Baba Yaga, a primeira criação original da Sociedade das Primas, Beatriz Teodósio parte da história da sua avó , uma mulher que sonhou ser atriz mas viu o seu percurso interrompido, para construir uma viagem entre o íntimo e o coletivo, o documental e o mítico. O espetáculo, que estreia a 14 e 15 de novembro de 2025 no Teatro Armando Cortez – Casa do Artista, convoca memórias familiares, vozes femininas e figuras lendárias para celebrar a coragem de recomeçar e o poder de resistir.

Falámos com Beatriz sobre o processo de transformar a herança pessoal em matéria teatral, sobre a força simbólica da Baba Yaga e sobre o papel da arte como gesto de continuidade e de insubmissão.

Somos Todas Baba Yaga nasce de uma história pessoal, a tua e a da tua avó. Quando é que percebeste que essa memória podia transformar-se em teatro?

Quando decidi estudar teatro e profissionalizar-me, a minha avó começou a partilhar comigo as suas histórias de palco - os tempos em que fazia teatro na Covilhã, como conheceu o meu avô nesse contexto, e o quanto essa experiência tinha sido determinante para a construção da sua identidade. Sempre me incentivou a seguir o que me fazia feliz, o que me dava prazer. 

Cresci como artista com essa memória viva dentro de mim. Como se a possibilidade deste espetáculo tivesse sempre existido, à espera de se concretizar.

Como foi o processo de transformar uma história íntima num espetáculo que fala de tantas outras mulheres?

Tem sido uma enorme aprendizagem, com muitas dores de barriga, de cabeça e de costas também.

Sinto que tenho um tesouro nas mãos, e isso pesa, porque não é apenas sobre mim: é sobre tantas mulheres e pessoas.

Estar aqui hoje, a poder pensar, sonhar, desejar e concretizar, deve-se a quem veio antes de mim, às que lutaram, às que criaram, às que viveram a sua arte e o seu quotidiano como resistência pelos direitos humanos. Agora é a minha vez de continuar pelas do presente e pelas do futuro.

É muito precioso reconhecer esse legado que me atravessa. Ter consciência desse privilégio é, também, uma forma de homenagear em vida. Isso emociona-me profundamente, porque toca num lugar muito sensível dentro de mim.

Percebi que a história de uma mulher pode conter muitas outras, que a história da minha avó nunca foi só dela, mas que carrega consigo uma geração inteira.

Comecei por essa história íntima e, a partir dela, fui descobrindo outras. A minha avó não pôde continuar a sua carreira artística porque tinha outros sonhos e vontades - quis ser mãe, e na altura não era possível conciliar isso com a vida no palco, que exigia outro tipo de estrutura e investimento.

Pensei então nas mulheres que, ao contrário, seguiram esse caminho. Senti necessidade de alargar o olhar e conhecer aquelas que me abriram espaço. Criámos uma relação muito bonita com várias mulheres da Casa do Artista (e não só), que partilharam connosco as suas histórias sobre o desejo, a recusa e a coragem de seguir as próprias ambições.

Como me disse a Gracinda Candeias: “Houve uma grande luta lá em casa, mas quem venceu fui eu - a minha grande vontade.” 

A figura da Baba Yaga surge como símbolo central. O que é que ela representa para ti neste contexto?
A Baba Yaga, para mim, é a mulher que vive nas margens, descrita como sábia e indomável. Como sabemos é aquela que habita a floresta e conhece os segredos do corpo, do tempo, da terra. É a mulher que tantas vezes foi temida, ridicularizada ou transformada em “bruxa”, porque não se encaixava nas regras do que era esperado.

A Baba Yaga representa essa tendência de algumas sociedades para demonizar as mulheres idosas, também. Mas neste espetáculo, ela simboliza o poder de recomeçar, em qualquer idade. 

O tempo pode ser visto como um aliado e eu acredito que nunca é tarde para cumprir um sonho, para desejarmos, para criar, sinto que também tenho que me forçar a olhar o tempo a meu favor e contrariar a pressa utilitária de termos que ser alguém com imediatez. Aprender a esperar, a criar no meu próprio ritmo é, para mim, um ato de resistência. 

No fundo para mim, é um convite a olhar o envelhecimento não como fim, mas como um recomeço, cheio de vida e com mais experiência. 

O espetáculo vive entre o real e o imaginário, entre o documental e o mítico. Como encontraste o equilíbrio entre esses dois territórios?

Esse equilíbrio é algo que ainda estou a descobrir. Tive um longo período de pesquisa  e sair dele para o transformar em cena, em obra artística foi um grande desafio.

Durante o processo de criação, também mergulhei profundamente no imaginário e no mítico, e depois custava-me regressar ao lado documental, à realidade. 

Quando comecei a fazer essas passagens entre o real e o simbólico, acabei por me deixar engolir pela fantasia: pelas histórias da Baba Yaga, da Hirã, pelas narrativas do folclore português. Via-me completamente envolvida nesse universo, que até cheguei a sonhar com o espetáculo todas as noites com lugares absurdos, quase alucinados.

Depois, precisei de regressar ao documental para reencontrar o chão. Foi aí que comecei a encontrar o equilíbrio, em idas e vindas, em camadas.

Trabalhaste com materiais muito pessoais: diários, fotografias, entrevistas. Que tipo de desafios éticos e emocionais surgiram nesse processo?
Foi um exercício de vulnerabilidade e de escuta. Houve momentos em que me perguntei até que ponto podia expor certas memórias, porque há lugares sensíveis, claro. A questão da ética acompanha-me o tempo todo, não considero que seja um limite, mas vejo-o como um diálogo entre o desejo e a responsabilidade.

Como diz a Janaina Leite, a ética no teatro documental e autobiográfico é uma prática: um território em permanente construção. 

Não se trata de “proibir” ou “permitir”, mas de escutar o outro, a memória, o próprio corpo e compreender o que significa partilhar algo em cena. Para mim, a ética está nesse gesto de cuidado: cuidar de quem me atravessa, das histórias que me deram origem, e também de mim. 

Procurei sempre esse equilíbrio de revelar e partilhar sem trair e sem expor em excesso. Penso que é neste gesto de atenção que o pessoal se pode tornar comum.

O apoio de Daniel Sampaio à dramaturgia introduz uma dimensão científica e literária invulgar. Como dialogaram esses universos com a tua escrita?
O apoio do Daniel Sampaio surgiu de uma coincidência curiosa e muito bonita.

O Daniel é avô do cenógrafo e figurinista do espetáculo, que faz parte da Sociedade das Primas. Quando estávamos a discutir qual seria o próximo projeto da associação, numa conversa com o Francisco Sampaio contei-lhe a história da minha avó - o ponto de partida deste espetáculo.

Ele riu-se e disse-me que o seu avô também sonhara ser actor, seguir uma carreira no teatro, e que, aliás, chegou a escrever alguns textos teatrais que lhe dava enorme prazer. Nesse momento percebemos que esta coincidência tinha de se transformar em encontro, visto que o espetáculo fala de sonhos e desejos, o Daniel Sampaio tinha de fazer parte dele.

Tivemos várias reuniões entre os dois, não apenas na perspetiva do psiquiatra, mas sobretudo do escritor, alguém que olha para o acto de criar com muita sensibilidade e muito cuidado. Juntos, fomos delineando a identidade das personagens, enquanto eu escrevia o texto.

O Daniel acompanhou sempre o processo, ajudando-me a perceber o que revelar da minha biografia e da da minha avó, e o que seria mais interessante manter como matéria poética para o espetáculo.

A estética visual e sonora tem um papel determinante. Que importância deste à construção sensorial do espetáculo?
Procurei criar com pessoas em quem confio profundamente. Para além de lhes abrir o meu mundo e o da minha avó, admiro o trabalho, a forma de pensar e a generosidade de cada uma.

A estética visual e sonora foi pensada desde o início - nas primeiras reuniões passavam horas a imaginar comigo como transformar as histórias em imagens e sensações.

O Francisco em cenografia e figurinos, a Beatriz Mestre como assistente de criação, Bee, a Naiana, no design de luz e o Isaac na sonoplastia e o Martinho no vídeo, são todes artistas com uma enorme sensibilidade e criatividade. Gosto de trabalhar assim, num espaço onde o acto de criar é partilhado. 

Quero que o público sinta, antes de compreender que a imagem, o som e o corpo um espaço onde o real e o místico se confundem.

A Sociedade das Primas afirma-se como um coletivo feminista e queer. Como é que esta identidade atravessa o teu trabalho artístico?
A nossa afirmação vem através do trabalho que fazemos. Sempre desejámos que a Sociedade das Primas fosse um espaço de encontro e de liberdade, onde o feminismo e o pensamento queer se vivem de forma natural, no modo como criamos e nos relacionamos.

Só crio quando algo é urgente e essa urgência vem quase sempre da necessidade de questionar, de abrir espaço e de imaginar outras formas de existir.

Que aprendizagens trouxeram as conversas com as mulheres da Casa do Artista? Houve algo que te marcou particularmente?
Foi um prazer ouvi-las e conhecer quem está por trás das obras e das histórias. Cada conversa foi um encontro com vidas inteiras dedicadas ao teatro, à pintura, escrita, dança. Todas elas estão presentes na narrativa do espetáculo, de uma forma ou de outra.

Há uma história em particular que deu origem a um dos monólogos. Na verdade, todas contribuíram para a criação da personagem Solidão, interpretada pela Fred Botta - uma mulher feita de pedra que só quer destruir muros.

É uma personagem ficcional, mas construída a partir das experiências e palavras delas.

O espetáculo fala de sonhos silenciados e de resistência. O que é que a tua geração ainda tem de resistir hoje?

Essa é uma pergunta que atravessa o próprio espetáculo. Fizemos alguns ensaios abertos em que discutimos exatamente isso: o que significa resistir hoje.

Percebemos que nenhuma dessas lutas terminou; apenas mudaram de forma e de contexto.

Ainda há muito por que resistir. A revolução não é um acontecimento do passado, é um movimento contínuo, talvez a coisa mais permanente da existência.

Vivemos num tempo de pluralidade, e por isso a resistência precisa de acontecer todos os dias, na arte, nas escolhas, nas relações e na forma como ocupamos o mundo.

Baba Yaga é uma figura ambígua, tanto ameaçadora como libertadora. Achas que essa dualidade reflete a condição feminina contemporânea?
Alguém que se sente capaz de ser e existir tal como é, é muitas vezes visto como uma ameaça.

Ser de forma plena e afirmativa, é algo que busco. A dualidade da Baba Yaga reflete exatamente isso, o medo e a força que surgem quando alguém decide existir por inteiro.

Este é o primeiro grande projeto autoral da Sociedade das Primas. Que caminho queres que o coletivo siga a partir daqui?
Este projeto é uma porta que abrimos. Queremos que a Sociedade das Primas seja um espaço de encontro, de criação e de resistência coletiva.

Como diz María Galindo “O que está em jogo não são direitos, é o mundo inteiro” e é exatamente isso que desejamos: criar um lugar onde artistas e não só, se unem para imaginar futuros.

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