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Boca A Boca

Boca A Boca - O Oceano do que nos acontece

Por

 

Patrícia Portela
5 de Novembro de 2018

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Boca A Boca - O Oceano do que nos acontece

“O meu nome não. Vivo nas ruas de um tempo onde dar o nome é fornecer suspeita. (…) o meu nome de hoje poderá não me reconhecer amanhã. Não soldo portanto a cara a um nome preciso. (…) Não me pergunte pois idade, estado civil, local de nascimento, filiação, pegadas do passado, nada, passado, não, nome também: não. Sexo, o meu sexo sim: o meu sexo está livre de qualquer ofensa, e é com ele-só-ele que abrirei caminho entre eu e tu, aqui. (…) O meu nome não.”

Assim começa A Fúria do Corpo de João Gilberto Noll.

*

Hoje saí com sol de um país chuvoso para aterrar com chuva na cidade do sol.

Hoje subi a escadaria de um teatro nacional para ver O que não acontece, quando tanto se passa e me ultrapassa. Muitos à minha volta estranham os livros que trago em sacos, alheios a uma feira do livro onde tantos outros se passeiam, alheios a este festival que se chama ponte e que agora decorre. Entre o parque do rei inglês e o teatro da rainha, uma linha recta. A pé, nem vinte minutos.

Entro no pequeno auditório, escolho um lugar na segunda fila, as luzes ainda estão acesas, termino o meu romance com Noll.

…sabemos de agora em diante que somos perdedores sim, mas exploraremos a devastação da nossa derrota como quem garimpa na miséria riquezas indizíveis, não temos outro tesouro senão a nossa pobreza, tocamos a miséria da Cidade não para chafurdarmos prazerosamente no lodo da impotência mas para chegarmos até aqui, alçando nossa penúria, a nossa escassez, a nossa privação a inéditas rotas, vamos sim, vamos partir para o Sul lá no meio do mato, uma horta nos espera, pomares, já vejo unhas pretas na terra, Afrodite inclina a cabeça e me olha toda compadecida, me confessa quase em sussurros que a tia no Sul nunca existiu, nem muito menos um mato para onde ir, nada, estamos ilhados na Cidade, nem horta, nem pomares, nenhum cais onde aportar o nosso idílio…

Começa o espectáculo.

Primeiro uma mulher. Canta quase Neil Young.

Quase what love.

Depois um homem.

Quase a vê. Mas não.

Quase a toca. Mas não.

Quase a agarra. Mas não.

Ela quase que vice-versa. Mas também não.

Cada gesto não passa de uma ameaça.

Cada investida é um ensaio que se sabe nunca ser geral.

Os corpos de ambos pertencem-lhes,

pertencem-se,

são em si, próprios, e no entanto, escolhem não se penetrar.

Desviam-se. Até no olhar.

E “tudo a continuar ao mesmo tempo, sempre ao mesmo tempo.”

Tudo a avança sem eles.

E “tudo a continuar ao mesmo tempo, sempre ao mesmo tempo.”

Assisto, sentada, à mais comovente contradição, penso.

Há mais corpo nas palavras de Noll do que nos gestos de Roriz e Dias.

Há mais palavras nos corpos de Sofia e Vítor que entre Afrodite e o resto do mundo.

Em A Fúria do Corpo quando se perde a casa, quando não se pode dar porque não se tem, porque não se sabe, porque não deixam, resta estar aqui, escolher a morte ou a persistência da carne. Quando se perde tudo, há sexo. O encontro sem mediação social ou tecnológica.

Somos nós a continuar como quem acaba qualquer coisa.

Em O que não acontece, seduzidos por um vazio rigorosamente presente e iluminado, os corpos contornam-se para se evitarem. Escondem-se atrás das palavras, silenciam-se. Quase mudas, as palavras reorientam-se no dicionário dos corpos.

Porque um corpo que pensa mas não diz ainda tem vocabulário.

Porque um corpo que não se mexe ainda se desloca.

A abolição da hierarquia entre o dizer e o fazer que Sofia e Vítor procuram, mutila-os no encontro. Com delicadeza. Como se houvesse distância.

Cria um fosso impossível, porque não há fronteira entre gesto e frase, não há separação. Há ausência.

Nós a continuar como quem começa alguma coisa.

© Genaro Joner/Agência RBS



Noll é a confirmação da palavra fisica. Que dói. Que confirma a mentira de vivermos depois da História, que não somos apenas consumidores de bens a desempenhar um papel adequado no desenrolar do progresso.

Quando não se tem tecto, nem chão, nem pão, nem dinheiro, nem emprego, nem futuro, resta a matéria viva. A minha na tua. Quando se perde tudo, resta o corpo. Arremessá-lo contra outro na explosão.

Sofia e Vítor nomeiam-se para se vacinarem um contra o outro. Para se afastarem. Na imposta separação entre gesto e palavra, a performance acaba por respirar um niilismo como efeito secundário dos antídotos diários.

No erotismo marxista do romance de Gilberto, os corpos recusam soletrar o nome. Existem. Todos em simultâneo e todos uns nos outros: leitores, autores, Afrodites.

Porque Sexo é revolta, não é terapia. Nem é arte, nem é biologia. É manifestação.

Na performance, eles Subvivem.

No romance, Sobrevivem.

E entre eles: eu. A ver-me nada mais do que a mim.

Porque Ninguém lê ou vê (ou sente!) senão a instersecção de um si próprio.

No meu entroncamento privado, a circunstância força o diálogo da Fúria do corpo com O que não acontece. No fim da conversa, uma questão:

Como pertencer ao mundo e ser-se fiel ao que se é? Ao que se noutro?

*

Chego a casa, telefonas-me. Oiço-te: quero-te. Aquecemos. O resto segue-se. Saio de casa em busca do teu tu com tudo o que sou quando te tenho por perto.

Daqui aí, os quilómetros que percorro são muito mais do que os que a geografia impõe.

Chego.

Agora ao pé de ti.

A rir, somos completamente só nossos.

Apagamos as luzes. Dançamos. Mas não como nos palcos, não como nos bailes. Não como nos livros. Mas à nossa maneira.


Foto: © Filipe Ferreira

Patrícia Portela nasceu em 1974. Vive entre Lisboa e Antuérpia. Escreve para vários formatos. http://www.patriciaportela.pt/

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