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Boca A Boca

Boca A Boca - Para Rogério Vieira e Augusto Sobral

Por

 

Patrícia Portela
8 de Junho de 2017

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Boca A Boca - Para Rogério Vieira e Augusto Sobral

A realidade é, em rigor, pouco rigorosa, já gritava Douglas Adams à boleia pelas suas galáxias. No entanto, a precisão com que essa realidade nos acontece diariamente e nos prende ao chão que pisamos é provavelmente o mistério mais fascinante que a invenção de um nariz respirante colado a um coração que sente nos oferece. Talvez por isso sejamos todos tão propensos à ficção, tão facilmente encantáveis com ilusões, tão ágeis na pequena mentira que contamos sobre o que nos acontece, distorcendo subtilmente cada facto na esperança de uma confirmação de uma imparcial teoria que tão complexamente desenvolvemos para justificar qualquer indomável paixão.

Pensar é um imbróglio. Pensar sobre os outros, um enredo. Escrever sobre aqueles que amamos ou sobre aquilo que vivemos e nos constrói a biografia, pior ainda, é tarefa para titãs, imortais ou sábios, tudo qualidades que nenhuma casa gasta. Opinar em tom credível sobre o que se gosta e se conhece de perto é abraçar uma contradição permanente. “Escrever sobre” é enveredar por um labirinto minotaurico sabendo de antemão que no final não há touro, nem deus, nem sapo, só um fio perdido à meada. Mas é isso mesmo que aqui me proponho fazer.

A partir de hoje conto beber um café digital mensal com os leitores do Coffeepaste numa versão unplugged. Não consultarei os tomos históricos, não verificarei datas, nem arquivos, não visitarei hemerotecas, nem contactarei fontes seguras para vos escrever. Serei nesta world wide web imensamente local e limitadamente analógica, mas fiel a esta parca realidade que é a minha.

Boca A Boca pretende ser uma mesa de copos virtual onde partilharei convosco apontamentos sobre espetáculos, álbuns, filmes, exposições ou conferências de mestres ou ilustres desconhecidos que presenciei, direta ou indiretamente durante os meus poucos anos de vida física. Descreverei cada um dos momentos escolhidos tentando perceber porque foram ou são tão especiais para mim enquanto testemunha de algo magnânime e não como fazedora de algo que me tornou no que sou. Uma testemunha não objetiva, claro, porque o encontro sincero com a arte é sempre uma manobra íntima de ativismo, a recusa que todos sentimos, pelo menos uma vez na vida, em sermos reduzidos a ser apenas só nós próprios.

Se chamo a este encontro Boca A Boca é porque é Boca A Boca que por vezes se espalham as melhores notícias que não veem nos jornais, e não apenas os piores boatos como alguns algoritmos de algumas redes sociais nos fazem crer.

É Boca A Boca que se espalham os germes mais fatais mas também se reanimam o coração, os pulmões e o cérebro, desapertando as roupas, desimpedindo a garganta, desobstruindo as vias respiratórias, massajando o peito e inspirando, Boca A Boca, pela boca, cérebro e pulmões de um outro.

É Boca A Boca que se vive o dia a dia, tagarelando, trocando, vivendo entre pares, ouvindo os últimos rumores dos vizinhos que nos contam das desgraças alheias, mas também espalham sabedoria mundana da mais alta qualidade que nunca se aprenderá na escola; tal como me acontecia com as conversas que trocava com os meus vizinhos do terceiro andar quando ainda vivia na casa dos meus pais, nos Olivais Norte. Sim, estamos a falar de fofoca da mais alta qualidade, com vizinhança de luxo. Sim, a minha curiosidade pelo teatro não nasceu numa aula de português ou de teatro, nasceu na sala de jantar de um actor e de um autor e arquiteto que me ensinaram o que era um dramaturgo muito antes de eu perceber o que era uma peça, e o que era ser outro quando ainda não sabia o que poderia ser um eu. Tinha então eu uma dúzia de anos, descia as escadas do prédio depois dos trabalhos de casa feitos e batia-lhes à porta. Se estivessem em casa, abriam sempre, e em vez de me dizerem quem dormia com quem no bairro, revelavam-me quem tinha só três vinténs lá pelas alemanhas, o que era um rinoceronte de Ionesco ou de que era feito um sonho numa noite de verão. Podia levar livros emprestados para o sexto andar se prometesse que os devolvia (ainda tenho um sobre improvisação que foi o livro ilustrado mais fascinante que li na altura!) e ouvia, embevecida leituras em voz alta das últimas peças escritas. Com a generosidade dos anjos terrenos de asas gregas, ofereciam-me sempre bilhetes para as suas estreias. Um dia insisti com os meus pais para ir ao tal teatro dos vizinhos e lá fui. Enquanto as minhas amigas iam nesse domingo de manhã ao cinema ver um filme de aventuras no Cine da Encarnação, eu prometi que dormia até mais tarde se me deixassem sair pela primeira vez num sábado à noite. O meu pai levou-me até à porta de um tal teatro com um nome de uma forma geométrica que eu trazia estampada na saia. Um teatro que me pareceu enorme, até um pouco vermelho, numa rua muito pequenina, muito longe de minha casa, lá quase no Bairro dito Alto, ao pé de um arco de um aqueduto igual a um que vira num desenho do meu manual de geografia. Descia-se assim para uma cave, achava eu, o bilhete estava em meu nome (querem mais chique?), eu escolhi uma amiga mais velha para vir comigo e até trazia uma nota para adquirir o programa (que era mais um livro cheio de informações preciosas) e comprar um queque ou uma água durante o intervalo. Era uma peça muito escura, recordo-me, quase não se via nada, por vezes até só se via uma boca que falava sem parar, e era escrita por um certo autor que, diziam, era absurdo mas ganhou com isso um Nobel. Lembro de só ter olhos para o meu vizinho, apesar de ele parecer estar todo pintado e com um ar um pouco mais grave do que o habitual; mas ele era o melhor ator do mundo, achava eu, (e continuo a achar até aos dias de hoje) e a certa altura ele estava sentado à frente de um outro senhor, também ele grave, acho que até era o encenador da peça, um senhor com o nome de uma terra no apelido, e apenas recordo esta frase: Não somos mais do que dejetos do universo… Ou algo parecido.

Aquela frase condenou-me os dias.

Rogério VIeira (1948-)



Fui para casa e até hoje ando de rastos, talvez por isso escreva. Lá está, tudo por causa da má vinhança, dos teatros independentes, dos incontornáveis autores irlandeses, os tais que nos desobstruem as vias respiratórias, que nos dão um murro no estômago como se massajassem o esterno, e nos atiram aos leões com o carinho de quem só pode fazer o que faz porque sabe que todos nós queremos ser mais do que somos, especialmente quando ainda, e só, com doze anos.

Boca A Boca é dedicado ao ator Rogério Vieira e ao dramaturgo Augusto Sobral. Não só pela excelência da sua obra, um enquanto exímio ator da Cornucópia, entre outras companhias, outro por ter sido o grande renovador do teatro português com peças como Quem Matou Alfredo Mann? ou  Memórias de Uma Mulher Fatal, mas sobretudo porque eram meus vizinhos e a vida real pouco rigorosa que se vive todos os dias e se sente com todos as partes do corpo tem destas coisas, faz prioridades afetivas com a História local de todos nós.

Afinal, afinal, se pela boca morre o peixe também é por ela que o peixe come. É Boca A Boca que se aprende com o corpo todo, se ouve e se vê ao vivo, ao invés de ler através de uma máquina como esta que agora usas, meu caro leitor, para me leres. Porque é Boca A Boca que se passam as histórias aos que ainda não sabem escrever, histórias que veem agarradas a cheiros e a sensações dignas mas impossíveis de registar nas enciclopédias universais e que por isso devem ser ditas. Oralmente. Em tom de conversa de café, como se nos reanimassemos quando perdemos os sentidos da vida, limpando o ar que nos rodeia, por dentro, e por fora, com a celebração do ar dos outros que é afinal, o nosso.

“O mundo findará, ainda que daqui a milhões de anos, sem ter sido acabado.” dizia Merleau Ponty enamorado de Cézanne. Até lá… tudo pode ser reescrito. Repensado. Refeito. Sentido. Nunca exigindo de nada nem de ninguém a verdade absoluta ou a perfeição mas uma imensa fidelidade a essa pouco rigorosa efémera realidade.

Ah! Também se pode beijar Boca A Boca. E estas crónicas são beijos, abraços, sinais de vida, cartas de quem tem saudades de todos, querida e saudosa vizinhança.

Antuérpia, 8 de junho de 2017

Patrícia Portela
Patrícia Portela nasceu em 1974. Vive entre Lisboa e Antuérpia. Escreve para vários formatos. http://www.patriciaportela.pt/

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