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Carolina Serrão sobre Tom Vinagre

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COFFEEPASTE
18 de Novembro de 2023

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Carolina Serrão sobre Tom Vinagre

Pela primeira vez em Portugal estreia-se a peça Tom Vinagre, de Caryl Churchill, uma encenação de Carolina Serrão, a partir da tradução de Vera Palos. Nesta sua criação, a encenadora conta com um elenco exclusivamente feminino de 5 jovens actrizes para dar vida às 14 personagens criadas por Churchill e, ainda, com a música original ao vivo do artista de música electrónica Salbany. Conversámos com Carolina Serrão sobre vários aspetos deste espectáculo, que pode ser visto até 26 de Novembro no Teatro do Bairro.


Fala-nos um pouco do teu percurso

O meu percurso não é tradicional. Primeiro estive em direito e depois acabei por me licenciar em comunicação e, durante a licenciatura, comecei a formação na Act-Escola de Atores. Posteriormente senti falta de uma vertente teórica e ingressei na Escola Superior de Teatro e Cinema, que não cheguei a terminar. Atualmente estou a terminar o mestrado em Estudos e Gestão da Cultura no ISCTE.


Tive a sorte de começar a trabalhar na área e de aprender com as pessoas com as quais me fui cruzando, nomeadamente a Beatriz Batarda, António Pires e Bochra Ouizguen. Porém, o teatro entrou cedo na minha vida porque a minha mãe fazia teatro de revista na Academia de Santo Amaro. Desde criança tive a oportunidade de observar um espetáculo a ser montado. Ficava muito calada na plateia a ver tudo o que me envolvia. Sempre fui uma criança tímida, mas com muita vontade de comunicar. Mais tarde, tive a felicidade de trabalhar como frente sala no Teatro Nacional, São Luiz, Maria Matos, entre outros. Este trabalho foi a melhor escola que podia ter tido, porque continuei a observar. Via os espetáculos várias vezes, as reações dos diferentes públicos, as dinâmicas. Este tempo de observação foi fundamental para me questionar enquanto ser humano e enquanto possível artista ou criadora. Em 2015 quando acabei a Act e entrei na ESTC comecei a dar aulas a pessoas na maior idade e a apresentar dois espetáculos por ano. Com estas pessoas extraordinárias fundei o grupo Teatral’ Idade, um projeto do qual me orgulho muito e que tem sido uma grande escola. Trabalhar com a comunidade é muito prazeroso e é algo de que não abdico pois permite-me sair da bolha do teatro e observar o estado da sociedade, o que as pessoas pensam, o que fazem, como fazem. E aí surgem ideias, questões, vontades de comunicar. A meu ver, a criação não vem de uma parede branca vazia, vem do mundo, do que está à nossa volta a pulsar. Em 2017 ganhei coragem e fiz a minha primeira criação com profissionais e com um texto escrito por Sara Rodrigues da Costa, Morrer é Divertido. O espetáculo foi vencedor do Concurso Jovens Criadores 2017. Este acontecimento foi determinante para eu continuar a explorar este lado da criação/ encenação. Nesse mesmo ano criei um espetáculo baseado no livro Náusea de Sartre que esteve em cena em minha casa. Esta escolha de fazer o espetáculo em casa foi uma resposta às dificuldades que nós, criadoras e criadores emergentes, temos em conseguir espaços de ensaio, espaços de apresentação, financiamento. A meio da crise pandémica criei com outras duas grandes mulheres a Além Mundus – Associação Cultural e desde aí que tenho desenvolvido trabalho de criação. Eu escolhi trabalhar no setor cultural porque quero comunicar com as pessoas através da arte. O teatro foi a forma que eu escolhi de conseguir chegar ao maior número de pessoas.


Como surge a oportunidade de levar à cena a peça “Tom Vinagre”?

Surge de forma simples. O Alexandre Oliveira, sabendo da minha vontade de continuar a explorar este lado da criação/ encenação, convidou-me para encenar um espetáculo no Teatro do Bairro. Sempre quis fazer Caryl Churchill, é uma dramaturga muito pouco apresentada em Portugal e merece ter o seu lugar. Fui a uma livraria e li algumas peças, no meio das leituras encontrei o Vinegar Tom. Fiquei imediatamente atraída pelo texto e decidi fazê-lo. A existência das músicas escritas de forma direta entusiasmou-me. A temática da libertação dos corpos chamou-me à atenção.


Que traços marcantes encontras na escrita de Caryl Churchill?

Principalmente a ironia que está presente em todas as cenas. Este texto tem uma linha muito ténue entre a tragédia e a comédia e esse foi um sítio que procurei explorar nesta encenação, podemos rir de uma parte da História da humanidade que foi tão trágica e que ainda hoje deixa marcas? A caça às bruxas foi um momento da História que é pouco estudado e falado. Muitas pessoas olham para a caça às bruxas como algo pertencente ao universo dos mitos, lendas e, atualmente, relacionam com o Halloween. Mas como disse Churchill, é uma peça sobre bruxas mas sem bruxas. Apesar das personagens serem ficção o texto tem muito de real. Se lermos os julgamentos das mulheres vamos encontrar todas as acusações que estão presentes na peça, a manteiga não saía porque a vizinha amaldiçoou, a impotência de um homem era feitiçaria de uma mulher, entre outras. Outra particularidade interessante é o facto de as cenas começarem sempre a meio, o que permite às pessoas que assistem ao espetáculo fazerem um exercício de imaginação: o que veio antes? Como é que as personagens chegaram ali? Assim, torna-se um texto vivo, onde temos de estar atentas para o acompanharmos e onde podemos encaixar as peças do puzzle que faltam.


Fazes-nos a sinopse do espetáculo?

Um casal de agricultores vive uma sucessão de infortúnios: a morte de animais, desaires na leitaria, a impotência de Jack, as dores de Margery. Considerando que Deus não castiga pessoas de bem, Jack e Margery optam por acusar as suas vizinhas, a viúva Joan e Alice, sua filha, de todos os males que ocorrem na comunidade. O medo das mulheres que vivem fora dos códigos morais intensifica-se, quando chega à aldeia um famoso caçador de bruxas. Nessa altura outras mulheres também são acusadas de bruxaria porque segundo crença da época é uma “a bruxaria é uma infeção que se vai espalhar por todo o reino”. Quase no final surgem Kramer e Sprenger, dois teólogos que escreveram um livro-manual sobre feitiçaria, como identificar uma bruxa, o porquê de existirem bruxas e de serem maioritariamente mulheres, como eliminar uma bruxa. Entre cenas temos momentos musicais que falam de diversos temas, tais como, como ter uma família feliz, onde estão as bruxas de agora, o desejo, entre outros.


Quais as grandes questões abordadas em cena?

Prazer e desejo, aborto, patriarcado, medo e “bodes expiatórios”, corpo, conhecimento das ervas, histeria. Existem duas grandes questões: a prisão a que os corpos estão sujeitos na sociedade patriarcal e capitalista e o medo produzido por narrativas populistas que pretendem responsabilizar comunidades que saem da norma criando, assim, bodes expiatórios . A caça às mulheres partiu dos governos. Através de uma série de decretos-lei foi criado um medo no seio da comunidade que fez surgir os bodes expiatórios, neste caso, as pessoas que saiam da norma aos olhos de uma sociedade patriarcal: mulheres viúvas e pobres, mães solteiras, mulheres que abortavam, mulheres que conheciam as ervas e o seu potencial de cura, mulheres que questionavam a ordem instalada. Era necessário matar estas mulheres para domesticar todas as outras pessoas e, desta forma, aprisionar os seus corpos. A divisão foi feita da seguinte forma, as mulheres eram as cuidadoras e responsáveis pela continuação da espécie e os homens a força de trabalho que faziam avançar a economia capitalista que estava a emergir. Foi nesta passagem do feudalismo para o capitalismo que surgiu a necessidade de matar quem não seguia o que era considerado correto para esta nova ordem económica. O livro O Calibã e a Bruxa de Silvia Federici explica esta relação entre a morte de milhares de mulheres e o início do capitalismo. Este livro foi uma das bases durante o tempo de criação.


Nesta peça também está presente a questão de classe. Betty, a filha do proprietário da terra não aceita casar com o homem que o pai lhe destinou e, por isso, é diagnosticada com histeria. Contudo, não é morta. Isto acontece porque a Betty pertence a uma classe superior. A questão de classe também é fundamental. No fundo, é uma peça feminista.


Foi um desafio distribuíres 14 personagens por 5 atrizes?

Foi um desafio que eu decidi criar a mim mesma. Ao ler a peça deparei-me com uma frase que a Ellen (mulher de virtude) diz à Betty (filha do proprietário da terra): “hás de contar aos teus filhos sobre as bruxas”. Aqui surgiu-me a ideia de a Betty, a única sobrevivente, convocar as quatro mulheres enforcadas por bruxaria para contarem a sua história. A partir daí decidi que a mesma personagem seria interpretada por várias pessoas. Por exemplo, o Jack é feito por três das intérpretes e a mudança de figurino é feita em cena, na presença do público.


É importante a decisão de ter um elenco exclusivamente feminino?

Sim. Não é só importante como é essencial. Nos cursos de teatro as turmas são maioritariamente compostas por pessoas do género feminino, mas depois, no mercado de trabalho, as oportunidades são maioritariamente para pessoas do género masculino. Nas produções onde tenho trabalhado a maioria das pessoas que compõem as equipas são do género masculino. É fulcral inverter esta tendência. E não é só nos elencos, as programações também seguem esta lógica. Se as analisarmos observamos que a maioria dos espetáculos programados são de pessoas do género masculino. Sempre que saem as programações dos espaços faço essa análise. Desafio as pessoas a fazerem o mesm.


Linda Nochlin tem um texto, Porque não houve grandes mulheres artistas?, onde entendemos o impacto que o passado tem no presente e a importância de alterarmos algumas práticas instaladas para que no futuro exista verdadeiramente igualdade de oportunidades para todas as pessoas, independentemente do sítio onde nasceram, de onde estudaram, de quem são filhas, do género, da idade, da etnia, da classe social, etc. Mas para existir igualdade no futuro é necessário lutar por justiça no presente.  


Como está a correr o processo criativo?

Está a ser prazeroso, estou a trabalhar com profissionais incríveis e a deparar-me com muitos desafios. Este espetáculo tornou-se numa grande coreografia com quatro elementos essencias: música, interpretação, luz e cenografia. Todos estes elementos bailam em conjunto e dialogam entre si. Criar o espetáculo foi como fazer um puzzle de 1000 peças. Quando falha uma temos de desmanchar tudo e voltar ao início. E isso atrai-me enquanto criadora/ encenadora. Os problemas são o melhor impulso para o ato de criação porque nos obrigam a encontrar soluções. E neste processo da busca de soluções a nossa mente, espírito e coração têm de estar alinhados. Quando estamos a criar ou a encenar não temos “anexos” com as soluções certas, como quando andamos na escola e fazemos os exercícios nos livros de atividades. Quando eu era criança era muito batoteira e ia sempre ver a solução e depois é que fazia o exercício, no caso da matemática por exemplo. Aqui não tenho oportunidade de fazer isso. E ainda bem.


No texto sobre o espetáculo cita-se Caryl Churchill que diz, a certa altura, que é perigoso ser uma mulher sem marido. Sentes que ainda é assim?

Respondo com outras perguntas, quantas mulheres foram mortas este ano? Quantas mulheres são vítimas de violência de género? Quantas mulheres são vítimas de violência doméstica? O Pedro sabe porque é que eu não consigo dizer estes números, porque são atualizados diariamente. Começamos o ano a zeros e terminamos sempre com um número demasiado elevado. Churchill disse e eu concordo, é perigoso ser mulher, é perigoso sair da norma, é perigoso ser diferente, é perigoso dizer o que pensamos publicamente. Ser mulher e escolher abortar continua a ser mal visto. Todas as mulheres que já fizeram um aborto sentem vergonha e ficam caladas com medo do que a sociedade possa pensar. Não é por existirem evoluções na lei que a sociedade muda. Continuamos a viver numa sociedade patriarcal, conservadora e numa economia capitalista. Os ingredientes do período da caça às bruxas continuam cá. As pessoas que saem da norma não são enforcadas e queimadas na fogueira nesta sociedade ocidental mas são colocadas à margem: não conseguem arranjar trabalho, alugar uma casa, viver a sua sexualidade em pleno, etc. Isto cria problemas de saúde mental. A maioria das pessoas com quem convivi na juventude fez o percurso de vida tradicional: terminar a licenciatura, trabalhar, casar e ter crianças. Quem não o faz paga uma fatura alta.


A tua expectativa relativamente ao futuro é positiva, ou nem por isso?

Não sei. Há dias em que sim, há dias em que não. Eu trabalho muito com a comunidade e estou muito consciente de que as mentalidades não evoluíram o necessário. Eu, enquanto trabalhadora da cultura, tenho como missão intervir no mundo e fazer as pessoas questionarem a ordem instalada.

 

Foto: António Delicado

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