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Cartas ao Panteão

Cartas ao Panteão (I)

Por

 

Ricardo Cabaça
25 de Outubro de 2022

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Cartas ao Panteão (I)

Escrevo esta carta enquanto homens lutam contra homens, numa tentativa de perceber quem será o primeiro a destruir o planeta. Há muita coisa a acontecer ao mesmo tempo, mas isto é um cliché, na tua época deviam dizer a mesma coisa.

Tu conheces-me, sabes que gosto de observar o mundo, e no momento em que o faço, não posso deixar de compará-lo com os teus textos. Sempre olhei para ti como alguém que é a minha bússola no mundo, pelo menos aquela que me pode afastar ou aproximar do absurdo. Alegoricamente falando, claro.

A densidade que percorre o espírito das pessoas e das coisas traz-me algum desânimo, confesso, não consigo ignorar o filme dos dias. Assisto a notícias sobre acontecimentos hediondos, sonho sobre isso e então não há qualquer fronteira entre o real e aquilo que vejo enquanto durmo.

Acredito que o teu humor seria um bálsamo para esta minha melancolia, sei que estar contigo só me faria bem, rir das tuas piadas à beira da praia ou mesmo no sanatório, qualquer dos ambientes seria propício para os teus divertimentos. Não posso ser egoísta, o mundo também precisa de ser curado com o teu humor. Creio que assim é mais justo.

Este verão tinha planeado visitar-te, tinha as malas praticamente feitas, mas imprevistos de última hora levaram-me para outras geografias. No entanto, não deixei de pensar em ti, talvez tenha começado a projetar esta carta há uns alguns meses.

Como te disse, não consigo ressignificar o mundo sem ter ao meu lado – o que quer dizer, em boa verdade, a memória que tenho dos teus livros – as tuas palavras, elas são o meu principal dicionário de compreensão da humanidade. Adaptei para a televisão pública uma série baseada na Odisseia de Homero. Este projeto foi a minha estreia no argumento e na realização, mas isso não importa para aquilo que quero partilhar contigo. Quando filmava o sétimo episódio, lembrei-me da tua história com as sereias e Ulisses, e da forma como tanto o silêncio como a canção podiam estar presentes. Para o silêncio não há qualquer defesa, afirmas, a não ser fingir que se acredita ouvir uma canção quando os lábios estão selados como uma carta nunca aberta. A propósito, não tens de responder à minha carta, escrevo-a como um pensamento dirigido aos deuses, uma necessidade de testar a minha paciência.

Seria a burocracia do teu mundo igual à burocracia do meu mundo? Estamos irremediavelmente enleados nos labirintos deixados à nossa passagem, somos os ratos que consideram o mundo demasiado grande para, logo em seguida, considerar que, afinal de contas, ele é pequeno para fugir à boca do gato. Eu e tu passámos a vida a escrever entre um telegrama e uma carta comercial.

Meu querido Franz, sei que já não podes responder a esta carta, mas percebi finalmente a ironia no teu Processo! Jamais teria imaginado a possibilidade de auto-calúnia, mas isso é evidentemente culpa minha, como descartar qualquer solução na tua obra?

Existem alguns sítios em Lisboa que são motivo para romarias ocasionais: a Assembleia da República e a Procuradoria Geral, tanto uma como outra podiam ser o cenário de Diante da lei. Agricultores e pescadores, lesados e marginalizados manifestam-se de forma silenciosa – tal como as sereias -, mas o portão nunca se abre, o guarda vigia a entrada até ao fim dos dias. Acredito que ias gostar de conhecer o meu país.

Precisamos do tempo para existir, sem ele nunca chegaríamos a ser um nome, também precisamos de tempo para erguer as coisas belas. Erguer e concluir. Um dos primeiros livros que li foi o teu América e devo dizer que me fascinou profundamente, não só a errância das personagens e da vida, mas sobretudo o facto de estar inacabado – este adjetivo é estranho para uma obra de arte -, esse elemento, que ao princípio me transtornou, levou-me depois a pensar possíveis finais, fez-me sentir um criador invisível da tua obra.

Comprei há pouco tempo o livro que Max Brod escreveu sobre a tua vida e obra, ainda não o li, mas saber que está no meio dos teus romances e contos deixa-me feliz e ansioso por começar a (re)conhecer-te pelo pensamento do Brod. Espero que tenhas ultrapassado o facto dele não ter queimado a tua obra, isso salvou o mundo de alguma maneira.

Enfim, preparo-me agora para o outono, começo a fechar as janelas do meu corpo e a reforçar as defesas, o inverno vai ser longo. Continuo sem compreender o sentido da vida e aquilo que as pessoas realmente desejam, por isso enquanto nevar neste interior desabitado, não deixarei de ter os teus livros abertos na minha secretária, a única forma humana de me aproximar da estranheza da existência.

Teu amigo e admirador,
Ricardo Cabaça

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