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Cartas ao Panteão

Cartas ao Panteão (IV)

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RICARDO CABAÇA
24 de Janeiro de 2023

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Cartas ao Panteão (IV)

Meu caro Homero,

 

No momento em que escrevo para ti estamos prestes a chegar aos grandes jogos da Esquéria, mas quando for publicada esta carta os jogos já farão parte do passado. Muitas coisas aconteceram entretanto: Telémaco saiu de casa, Ulisses deixou o conforto de Calipso, deuses e humanos misturam-se numa pequena caixa universal. Espero que um dia possas assistir ao Regresso a Ítaca que idealizei para a televisão.


Escrevo para ti, depois de ter escrito a partir da tua obra maior, essa jornada que narra parte da vida de Ulisses, um herói demasiado viril e capaz de sobreviver a qualquer desventura. O meu herói é um pouco diferente, não tão épico nem astuto, mas o meu tempo é diferente do teu.


Uma das coisas mais preciosas na minha vida é aquilo que eu escolho por companhia, seja um livro ou uma música, ou ambos na mesma proporção. Durante mais de três anos foste a minha companhia principal, sempre com a tua Odisseia guardada na mala, rasurada, anotada, desgastada por objetos pouco sensíveis à presença de livros. Muitas vezes ponderei se devia levar-te comigo às costas nas viagens que fazia de bicicleta. Mas venceste sempre e o teu livro era um ânimo que carregava suavemente. Nestes três anos reli muitas vezes os teus versos, tanto que podia descrever os episódios que fixaste, os nomes de homens e mulheres que compõem o quotidiano de Ulisses. Li os teus versos com o encanto da primeira vez, como se a cada leitura me aproximasse mais de ti, como se, de alguma forma, fôssemos companheiros de viagem na tua Grécia.


Antes de fazer regressar o nosso herói a esta Ítaca consumida pelo tempo e pelo progresso, elaborei um projeto de reescrita com mais doze pessoas, uma epopeia exaustiva em direção a um texto que é uma leitura múltipla da tua Odisseia. Todas as semanas relia uma parte da tua obra, gesto poderoso que me dava um prazer absoluto porque sabia que estaríamos um pouco mais próximos um do outro. Uma Odisseia Coletiva. São estes gestos que me importa realizar, juntar pessoas para narrar a vida, o pensamento e as inquietações. Talvez um dia envie as mais de duzentas páginas do nosso texto.


Voltando ao motivo que me levou a escrever esta carta. Em 2021 escrevi e realizei uma série para a RTP2, um dos canais da televisão pública portuguesa, talvez tenhas ouvido falar, é o canal de que gostarias de ser espectador, é a ágora artística do meu tempo, o espaço onde estariam Aristóteles, Sócrates ou Eurípides. E claro, tu, o grande Homero. Saber que estava a escrever um argumento a partir das palavras de Homero, supondo que a série chegaria a milhares de espectadores, não me podia ter sentido mais desafiado para uma jornada que terminou como sempre idealizei. Os meus companheiros de viagem não foram Ulisses, Menelau, Circe, Penélope ou Arete, mas sim Paulo, Ana, Daniela, André, Carlos, Ivo, Haroldo, e tantos tantos outros, e tantas tantas outras. A embarcação navegou no Rio Tejo, sob um sol tranquilo, envolta numa luz pacificadora. Longe estavam os tempos de guerra, longe estavam os tempos dos deuses.


Anseio que consigas ver os episódios, mesmo não percebendo uma palavra de português, isso não é importante, ninguém melhor do que tu conhece a Odisseia, por isso as minhas palavras ser-te-ão entregues no coração, palácio dos irmãos de letras. A série também é tua, naturalmente, fi-la porque um dia exististe, fi-la porque um dia entraste no meu panteão.


Antes de me despedir de ti, preciso de partilhar algumas histórias contigo. Há uma menina que está a acompanhar a série com a mãe, e no último episódio, ela perguntou porque razão as personagens são gregas e estão vestidas com roupas contemporâneas. Além da série, ela também está a estudar as aventuras de Ulisses. Creio que encontrámos uma jovem especialista da Odisseia.


Um dia estávamos a filmar uma das cenas com Atena e Telémaco, e perto do set de filmagens estavam dois homens religiosos, creio que eram padres. Conversei com eles e expliquei-lhes do que se tratava. Um dos padres respondeu que pelo menos estes deuses eram visíveis, resposta que me deixou assombrado o resto do dia.


Deixo para o fim um episódio que me marcou muito: quando vivia em Lisboa, antes de me mudar para aqui, fui a uma mercearia do bairro, com a Odisseia na mão esquerda, e enquanto comprava algumas coisas, um homem perguntou porque é que eu estava a ler a Odisseia, se era para a escola. Eu respondi que há muito havia terminado a escola e a faculdade, que as razões eram profissionais e também da ordem do prazer da leitura. Ele disse que na Rússia todos liam, na escola, a Odisseia, que todos os russos sabiam a história de Ulisses e de Tróia.


Neste preciso instante, a Rússia e a Ucrânia estão envolvidas numa guerra mortífera e interminável. Talvez esteja na essência dos homens a necessidade da guerra, talvez Ulisses esteja em todos nós.

 

Um abraço do teu admirador e leitor,

Ricardo Cabaça


Imagem: Versos de Odisseia em placa de argila

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