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Meu caro Cesariny,
Escrevo-te esta carta com alguns anos de atraso, pois devia ter seguido muito antes, não sei exatamente há quanto tempo, mas pelo menos desde a época da Avenida de Berna, quando me cruzava contigo na distância. Ao longe, mas não o suficiente para imaginar-te apenas, via-te como uma pluma branca que flutuava sobre as pessoas e a cidade. Acredito que aquilo que é bem-intencionado nunca chega atrasado ao seu destino.
Um dia comecei a ler os teus livros, e uma nova perspetiva surgiu para mim dentro do panorama da poesia portuguesa, como se provocação, linguagem poética, sexualidade e melancolia pudessem coabitar visceralmente no mesmo poema. A tua obra, admiravelmente portuguesa e senhora do seu tempo, não como tecido feito para aquela época, mas como observadora privilegiada dos teus dias, leva-me sempre para essa cidade dos modernismos e dos surrealismos, duma cidade efervescente vigiada pela imbecilidade da ditadura.
Lembro-me de duas frases tuas que tomei para a minha vida, uma para respeitar e seguir profundamente, a outra para me mostrar aquilo que nos separa.
Escrever no ruído de um café, rodeado pela turbulência que agita clientes e trabalhadores, amantes e marinheiros, meninas e mães, era o único sítio possível para ti, afastado do silêncio ou de uma casa que pudesses dizer tua. Afirmaste que nunca escreveste um poema em casa, e aqui afastamo-nos radicalmente, não suporto o ruído quando quero escrever. Na verdade, repudio o ruído em qualquer contexto. Sempre precisei de uma casa para escrever, talvez a diferença esteja aqui: eu procurava uma, enquanto tu sempre foste a casa que abrigava o mundo. Nas minhas tentativas para escrever poesia eu rodeava-me do conforto e daquilo que me era familiar, talvez por isso nunca tenha alcançado as feridas necessárias para escrever um belo poema sobre a cidade.
Também podia ser uma casa em chamas, um espaço absoluto prestes a ser destruído, um cemitério de memórias. Será possível construir a partir de um espaço consumido pelo fogo e pela matéria incandescente dos dias? Claro que não é possível escrever através das cinzas, disseste-o um dia para encerrar definitivamente a questão de nunca mais teres escrito um poema. Durante alguns anos contestei as tuas cinzas, acreditando que voltarias a partilhar novos poemas com os teus leitores. Eu sabia que não voltarias a fazê-lo, mas o meu lado ingénuo acreditava num hipotético arrependimento. Ainda bem que não voltaste a escrever poesia, assim fico com a certeza da autenticidade da tua obra, os poemas que temos entre mãos fizeram sangrar na altura certa. Não é possível reproduzir aquilo que magoa, a dor da primeira vez é irrepetível.
Eu também tive as minhas cinzas, fiz muitas coisas e abandonei algumas delas, umas por falta de talento, outras por a paixão se ter desvanecido irremediavelmente. Durante alguns anos fotografei todos os dias, andava sempre pela cidade com uma câmera fotográfica, a cidade era o meu café, não precisava mais de uma casa para encontrar o conforto, o meu desconforto estava na nossa cidade em ebulição. Podemos pensar numa cidade que se está a reinventar, envolta em chamas, mas que ninguém consegue ver? A não ser quem ateia esse fogo imenso, claro. Nós, os artistas.
É preciso a paixão que alimenta o artista com vontade insaciável de se prender aos múltiplos braços do labirinto, a arte sobrevive à nossa morte, mas nós, infelizmente, não conseguimos nem sequer retomar das cinzas. O fogo que ardia nas minhas fotografias tornou-se gélido, sem vida. De uma certa forma sei que incendiei a fotografia dentro dos meus músculos e ossos, uma câmara escura de desaparecimento.
A sociedade precisa de revoluções, cada vez mais urgentes, no entanto, parece-me que as pessoas são cada vez mais parecidas, sem nada que as distinga das outras, então para que serve uma revolução? O teu papel foi outro, o grande terramoto da Lisboa cultural que abalou a moral e os costumes. A tua cidade era realmente muito diferente da minha? Lembro-me de ler a tua opinião sobre isso, e como numa frase maravilhosa dizias que a cidade estava no teu quarto, nas paredes onde estavam pendurados quadros de amigos, fotografias do passado, de uma cidade enterrada pelo progresso e pelo turismo. Eu não vivi a tua Lisboa, mas partilho dos teus sentimentos relativos a um tesouro perdido, para mim Lisboa está num lugar muito particular, catalogada em memórias muito minhas. De uma certa forma as paredes de Lisboa existem, mas não o seu interior.
Perdemos Lisboa, mas foi nela que nos encontrámos.
Sabes que, tanto tempo depois, ainda há um milhão de pessoas a sair para a rua a horas certas?
Meu querido Mário, algures na Rua dos Bacalhoeiros, poucos meses antes de (...), eu e um amigo fizemos uma sessão sobre o Mário Cesariny, o enorme artista surrealista. Falámos de ti, da tua obra, partilhámos os teus poemas. Foi uma noite muito bonita, eu recordo-me de cada pormenor da sessão, da nossa ânsia ao trabalharmos nas semanas anteriores à apresentação, afinal de contas íamos falar publicamente sobre ti. Devíamos ter-te convidado, não era? Lamento imenso a nossa timidez e falta de coragem. Eu era outro naquele tempo, acredita.
Mais tarde, ainda hoje, vou ouvir a tua voz no coração da cidade e lembrar-me dos teus passos enquanto caminhavas acima das pessoas, lá ao fundo, como uma fénix que se levantava das cinzas. As árvores a criar a moldura, o fogo no teu olhar, a passividade das pessoas sem saberem quem tu eras. Tão triste mário sobre o Tejo um apito.[1]
Um abraço afetuoso do teu amigo,
Ricardo Cabaça
[1] Cesariny e o retrato rotativo de Genet em Lisboa, Al Berto
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