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Cartas ao Panteão

Cartas ao Panteão (VIII)

Por

 

RICARDO CABAÇA
30 de Maio de 2023

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Cartas ao Panteão (VIII)

Meu caro Dostoievski,

 

Escrever para ti é fazer uma viagem profunda à minha adolescência, a um tempo de descoberta e também ingenuidade, onde nem sempre temos noção dos tesouros com que nos deparamos. Assim é ao longo de toda a vida, precisamos do deslumbramento para nos sentirmos vivos, numa ligação maravilhosa com aquilo que nos rodeia.


Ouvi o teu nome, pela primeira vez, em 1991, quando me entregava aos primeiros vislumbres da adolescência, ainda sem barba, ainda sem grandes interesses que me pudessem distinguir num mundo em erupção. Foi no filme Henry & June, de Phillip Kaufman, quando June companheira de Henry Miller, repetia incessantemente que o marido não era um Dostoievski. Percebi de imediato que eras um escritor de vulto. Mas que escritor serias na realidade? Poucos anos depois estava a passar férias na Aroeira - lugar inaudito para ficar ligado a nós os dois -, e num recanto tímido de uma rua havia uma loja de antiguidades, e entre candeeiros, quadros e outros objetos sem grande valor, estava uma caixa enorme com livros, ao monte, como se um camião os tivesse descarregado e assim tivessem ficado até então. Olhei para aquela caixa e vi que havia cadernos no subterrâneo. Remexi os livros, procurava alguma coisa que me fizesse despertar, e acima de tudo, me fizesse sair do torpor próprio da idade. Depois de algumas tentativas para desenterrar o máximo de livros, eis que encontrei um profético, uma obra-prima que foi rejeitada pela crítica da tua época: O sósia. Aquilo que senti foi uma explosão, um big bang literário que começava na minha vida. Agora o filme fazia sentido, agora o teu nome estava na minha mão. Não perdi tempo a procurar mais livros, o meu tesouro havia sido encontrado. Li o teu livro nos dias seguintes e desde então procuro o meu sósia, encontrando-o pontualmente quando me apercebo de que sou eu próprio, sombra e espectro da minha existência.


Aquele momento, num sítio tão inapropriado como a Aroeira, fundou o meu panteão. Sim, foste o primeiro autor a entrar, quer dizer, invadiste um espaço que eu nem sabia que se estava a formar. Desde então, nunca mais nada seria igual. Foi o primeiro passo para, tal como fizeste comigo, invadir a tua obra, saltar as poças de lama para ser um observador da sociedade, um observador de espíritos, diria.


Meu caro, a exigência da literatura transforma-nos em criaturas sedentas das palavras essenciais, não propriamente as belas, mas aquelas que juntas fazem implodir as convicções e abalam a moral de todas as épocas. Contigo aprendi que existem círculos secretos na literatura, onde apenas os iniciados podem adentrar e tocar as paredes cobertas pelos livros mais furiosos já alguma vez escritos.


Os anos passaram, mas senti que ao invés da idade, aquilo que realmente me tocou foram os livros, de alguma forma passei a contar os dias da minha vida pelos livros que li. A minha vida passou a ser totalmente acompanhada por livros, é inimaginável pensar os meus dias sem um ou dois livros na mala. Leio sempre, onde quer que esteja.


Um dia estava no elétrico 15, aquele que liga a Praça da Figueira a Algés, passando por Belém e outros sítios turísticos de Lisboa, a ler Recordações da casa dos mortos, quando ao meu lado se sentou um turista e quase de imediato perguntou que livro eu estava a ler. Expliquei-lhe que livro era, ele conhecia-te e isso deixou-me aliviado. Seguimos viagem juntos desde o Cais do Sodré até Belém, e eu acredito que falei ininterruptamente sobre o teu livro, em última análise, sobre a tua obra que me ergueu num mundo em escombros. Não me recordo de que país era aquele homem curioso pela vida e pela tua obra, mas isso nada importa, não tem qualquer importância o sítio de onde viemos, embora no último ano parte do mundo tenha tentado censurar a arte russa. Lamento dizer, caro Fiodor, mas foste um dos autores que tentaram silenciar. Como vês, tudo continua estranho e a precisar de análise. Seria bom ter-te de volta, nem que fosse por uma temporada curta, talvez a humanidade aprendesse a olhar o interior de cada pessoa. Enfim, senti-me profundamente realizado por ter sido o teu embaixador em Lisboa.


O turista no elétrico 15 sabia quem tu eras, conhecia o teu nome e parte da tua obra, ao contrário dum colega meu na faculdade, no primeiro ano de Estudos Portugueses e Lusófonos. Estávamos à porta da sala e claro, a literatura era o tema da maioria das conversas, falava-se dos livros que tínhamos lido, os autores prediletos, aqueles que odiávamos, o típico entre aspirantes a literatos. Esse meu colega nem sequer conhecia o teu nome, Dostoievski era tão estranho para ele como uma palavra pronunciada em aramaico. Fiquei estupefacto, irado e tomado por uma sensação de desprezo. Como é que alguém afirmava amar literatura sem nunca ter sido tomado pela tua obra? Este sentimento cedo se dissipou porque encontrei uma tertúlia adequada, onde apenas os nomes mais obscuros ou recentes eram uma novidade. Foram bons tempos, sem dúvida.


O teu nome ocupa uma parte importante da minha biblioteca, onde os livros altivos se erguem da estante para o céu. Voltar à tua obra é sempre um desafio e uma vontade incontrolável, porque o teu mundo é um enigma em si mesmo, talvez por ser tão justo e transparente. Por vezes sinto-me Raskolnikov, outras abandono-me dentro dos bolsos e da gola levantada do sobretudo para ser o homem subterrâneo.


Aconteça o que acontecer, serei sempre o teu embaixador no mundo.

 

Com admiração e amizade,

Ricardo Cabaça

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