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Cartas ao Panteão

Cartas ao Panteão (XVI)

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Ricardo Cabaça 
22 de Fevereiro de 2024

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Cartas ao Panteão (XVI)

Meu caro Andrade,

 

Escrevo uma vez mais com algum atraso, esta é a segunda vez em que as minhas palavras chegam demasiado tarde ao destinatário, a ti. A primeira oportunidade foi na faculdade quando escrevi um texto que era um elogio à tua poesia, uma homenagem que eu queria fazer ainda em vida. O texto foi publicado no jornal da faculdade, porém, o atraso na publicação fez com o jornal saísse depois da tua morte. Fiquei destroçado com o teu desaparecimento, frustrado com a saída tardia do jornal, mas pelo menos referia no pequeno ensaio que o texto era uma homenagem em vida. Enfim, o insondável da vida não esteve do meu lado, por isso fui obrigado a resignar-me e aceitar a impossibilidade de termos dialogado de uma outra maneira. O texto era também uma crítica às homenagens tardias, aquelas onde o homenageado está invariavelmente morto. Será que só podemos ser lembrados quando já não estamos vivos? Será essa uma fatalidade da humanidade? O texto que escrevi chama-se Ele, Génio. Talvez tenhas tido a oportunidade de o ter lido, tal como terás a ocasião de ler esta carta. Escrever para mortos é um risco de silêncio, não esperar por nenhuma resposta ou reação. Fico feliz por ter escrito esse texto, de alguma forma serviu para falarmos sobre ti, alunos e professores. O meu coração ficou um pouco mais aquecido.


Comecei a ler literatura pouco depois dos dez anos, por isso quando estava na escola preparatória já conhecia alguns autores que não seria nada habitual naquela fase da vida. Destavaca-me dos restantes alunos por ser o único que lia de uma forma completamente viciada, ler era talvez a minha única paixão, por isso não era de espantar que eu já tivesse ouvido falar de alguns escritores que os professores mencionavam nas aulas, alguns conhecia o nome, outros a sua obra. Enfim, durante alguns anos a minha alcunha nas aulas de português era o Poço, desconheço se isso era de facto um elogio, sei que alguns colegas diziam que eu conhecia mais autores do que os meus professores de português. Sempre me pareceu uma afirmação exagerada, mas como contestar se estava a ser admirado e elogiado por colegas?


Comecei a ler os teus poemas quando eu era um adolescente a descobrir o mundo, inocente perante a dimensão da vida, mas pronto para ser devorado pelas palavras. A tua poesia permitiu-me entrar numa atmosfera de paixão e amor pela natureza, a forma como escrevias para os mistérios do mundo era um bálsamo que eu não podia recusar, pelo contrário, aceitava tudo e de certa forma, tentava incorporar nos meus dias. Sei que partilhei a tua obra com muitas pessoas, tentava decorar os teus poemas para dizê-los de cor, tarefa onde nunca fui muito bem sucedido, talvez por ter uma certa dificuldade em decorar textos. Fica sempre bem dizer poemas dessa forma, contudo, não tive a oportunidade de brilhar nessa função.


Ficava encantado nas aulas de português quando falávamos sobre os teus poemas, ouvir as minhas professoras de português a analisar os teus poemas, a trazerem outras referências. Sempre que ouvia um título que não conhecia, tentava ao máximo encontrá-lo, mas a biblioteca da escola era muito escassa, por isso a frustração era quase sempre avassaladora. Tive de esperar alguns anos até ler a tua obra completa, mas valeu a pena, sem dúvida alguma.  


Acredito que as pessoas gostam do exercício de juntar poetas, como se fossem um espelho um do outro, no teu caso, andaste sempre a par da Sophia de Mello Breyner, os dois poetas unidos pelas palavras uns dos outros. Não me parece um casamento fantasioso, pelo contrário, consigo ver-vos juntos numa viagem pela Grécia. Será que viajaram juntos pelo mundo helénico?


Querido Eugénio, antes de me despedir de ti, preciso falar-te de um amigo, um grande admirador da tua obra, talvez o maior embaixador que alguma vez tiveste. O Fernando, sempre que falávamos sobre poetas, colocava-te como o maior entre todos, enquanto eu ia para o Herberto ou para o Pessoa, o Fernando fazia questão de defender apaixonadamente a tua obra. O Fernando, um amigo que gostarias de conhecer com toda a certeza, é um apaixonado pela vida, um homem que sabe os teus poemas de cor, ao contrário de mim que tenho sempre de ir buscar os teus livros para ler algumas das tuas palavras delicadas e vertiginosas. Sinto saudades do Fernando, um amigo que não vejo há algum tempo.


Meu querido Eugénio, enquanto houver amor no meu coração, na sua mais profunda demonstração, então terei sempre o privilégio de pensar nos teus poemas e pular para o mundo de forma apaixonada e leve.

 

Um abraço do teu amigo admirador,

Ricardo Cabaça 

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