TUDO SOBRE A COMUNIDADE DAS ARTES

Ajuda-nos a manter a arte e a cultura acessíveis a todos - Apoia o Coffeepaste e faz parte desta transformação.

Ajuda-nos a manter a arte e a cultura acessíveis a todos - Apoia o Coffeepaste e faz parte desta transformação.

Selecione a area onde pretende pesquisar

Conteúdos

Classificados

Notícias

Workshops

Crítica

Entrevistas

Cláudia Berkeley: O circo como gesto político e poético

Por

 

Pedro Mendes
15 de Julho de 2025

Partilhar

Cláudia Berkeley: O circo como gesto político e poético

Na sua 11.ª edição, o Festival Internacional Vaudeville Rendez-Vous - que decorre entre 16 e 19 de Julho, nas quatro cidades do Quadrilátero Cultural: Vila Nova de Famalicão, Braga, Barcelos e Guimarães - entra num novo ciclo, não como uma repetição, mas como um espaço de rutura e reinvenção. Com uma programação que continua a desafiar os limites do circo contemporâneo, o festival reforça o seu compromisso com a experimentação, o pensamento crítico e a proximidade com o território. Em conversa com o Coffeepaste, Cláudia Berkeley, diretora artística do festival, reflete sobre as escolhas desta edição, a importância do espaço público, os desafios da acessibilidade e o papel crescente da criação nacional num panorama cada vez mais internacional. Uma entrevista que revela os bastidores de um projeto cultural ousado e transformador no panorama artístico português.

Esta 11.ª edição marca o início de um novo ciclo para o festival. Que tipo de renovação é que procuraram trazer este ano?

Nesta 11.ª edição, escolhemos pensar o “ciclo” não como algo que se repete, mas como uma possibilidade de rutura, de recomeço e de reinvenção. Um ciclo que nos obriga a olhar criticamente para o caminho feito, e a abrir espaço para mudar — na relação com os públicos, com os artistas, com o território e com as próprias cidades.

Por isso, podem esperar um festival que continua enraizado na sua geografia, que se constrói com cumplicidade e continuidade, mas que permanece inquieto, permeável ao inesperado, e sempre disponível para acolher o que ainda está por vir.

Entrar nesta nova década é, para nós, mais do que uma celebração — é uma oportunidade para pensar o tempo e o percurso do festival com maior profundidade. Queremos continuar a ser um espaço onde se experimentam formas, formatos e ideias, mas com uma consciência cada vez mais nítida de que os ciclos artísticos não existem isolados: são também políticos, sociais e afetivos.

A nova identidade visual é bastante marcante. Podes falar-nos sobre a inspiração por detrás desta imagem e o que ela pretende comunicar?

A nova identidade visual foi pensada como um verdadeiro ponto de viragem, algo que assinalasse, de forma inequívoca, este novo ciclo do Vaudeville Rendez-Vous. Partimos da ideia de movimento, de transição e de disrupção, três conceitos que sentimos muito presentes tanto no universo do circo como na forma como posicionamos o festival no território artístico e cultural.

Visualmente, a proposta joga com a distorção, a sobreposição e o ruído gráfico como metáforas para a complexidade do presente, mas também para a potência criativa que existe no caos e na provocação. As cores fortes e os contrastes acentuados falam de energia, urgência e vitalidade, e procuram captar um olhar mais atento, talvez até desconfortável, mas sempre curioso.

Há também uma clara recusa do decorativo e do “bonito” em favor de uma estética mais crua, mais próxima do inconformismo que associamos a muitas das propostas artísticas que acolhemos. Esta imagem quer provocar, agitar, e sobretudo abrir espaço para múltiplas leituras.

Trabalhámos de forma muito próxima com a Luísa Martelo – designer do festival – desafiando-a a pensar o circo não como uma estética fechada ou retro, mas como um lugar de invenção, risco e possibilidade. O resultado é uma identidade que nos orgulha e que sentimos estar muito alinhada com a direção que queremos afirmar nos próximos anos.

Quais foram os principais critérios na escolha dos espetáculos e companhias para esta edição?

Nesta 11.ª edição quisemos reforçar o papel do Vaudeville Rendez-Vous como um festival atento às margens e às zonas de experimentação dentro do circo. Por isso, os critérios de escolha passaram, em primeiro lugar, por uma curadoria que privilegia o risco artístico, a hibridez de linguagens artísticas e a pertinência dos temas abordados pelas obras. Obras que desafiam fronteiras formais e propõem novos modos de relação com o público e com o espaço urbano.

Houve também uma preocupação em manter um equilíbrio entre artistas emergentes e nomes mais consolidados, criando condições para o encontro intergeracional e para a descoberta.

Procurámos ainda propostas que dialogassem com o território, seja pela forma como ocupam o espaço público, seja pela forma como interpelam contextos sociais, culturais ou políticos que nos são próximos.

O Vaudeville Rendez-vous tem uma forte ligação ao espaço público. O que é que te fascina nessa relação entre o circo contemporâneo e a rua?

O espaço público sempre foi, para o Vaudeville Rendez-Vous, muito mais do que um simples lugar de apresentação, é um campo de experimentação artística, política e relacional. O que me fascina na presença do circo na rua é justamente a sua capacidade de provocar encontros inesperados, de interromper o quotidiano e de instaurar outras formas de atenção e de convivência no espaço comum.

Ao contrário da blackbox de um teatro, a rua não oferece o conforto do previsível, o que obriga artistas e público a negociarem em permanência com o contexto, com o tempo, com o acaso. E isso é profundamente vivo. O circo, com a sua fisicalidade, a sua tensão entre risco e controlo, o seu apelo à partilha coletiva, parece-me ter uma afinidade natural com esse tipo de espaço, onde tudo está em aberto e tudo pode acontecer.

Além disso, trabalhar no espaço público é também uma forma de democratizar o acesso, de levar as artes a lugares e pessoas que muitas vezes não se sentem convocadas pelos formatos tradicionais. É uma oportunidade para escutar o território, para ativar relações de proximidade e para reforçar o papel do festival como agente cultural enraizado e não apenas itinerante.

Mais do que “levar” circo à rua, interessa-nos criar situações em que a rua transforma o circo, em que o contexto urbano, social e afetivo entra dentro do gesto artístico e o desafia a ser mais permeável, mais poroso, mais presente.

Como é que o festival contribui para reconfigurar a forma como o público olha para os espaços das cidades?

O Vaudeville Rendez-Vous procura justamente revelar o potencial poético, político e social dos espaços que habitamos todos os dias, mas que muitas vezes atravessamos em piloto automático. Ao ocupar praças, ruas, largos ou até becos com propostas artísticas inesperadas, o festival cria interrupções no fluxo habitual da cidade e convida o público a olhar de novo, a estranhar o familiar.

Essa reconfiguração acontece tanto no plano sensorial como no simbólico. Um parque que serve de cenário a um espetáculo aéreo, uma praça transformada em palco, ou uma fachada que passa a ser ponto de contacto entre artistas e público, tudo isso altera a perceção do espaço e reativa a imaginação urbana. De repente, aquilo que era apenas um lugar de passagem torna-se um lugar de encontro, de contemplação ou de confronto.

O circo, pela sua relação direta com o corpo, com o risco, tem uma enorme capacidade de fazer vibrar o espaço à sua volta. E o festival, ao insistir nessa presença fora dos palcos convencionais, propõe também uma outra forma de viver a cidade,  mais atenta, mais curiosa, mais disponível para o inesperado.

 

Há uma forte presença internacional, mas também uma valorização clara da criação nacional. Como equilibras essas duas dimensões?

Esse equilíbrio é, na verdade, uma das linhas mais importantes da curadoria do festival. Desde o início que o Vaudeville Rendez-Vous se posicionou como um espaço de diálogo entre o que se faz lá fora e o que se constrói cá dentro, e temos procurado que esse diálogo seja real, horizontal e mutuamente inspirador.

A presença internacional traz-nos diversidade, novas perspetivas e a oportunidade de confrontar o nosso contexto com outras geografias e práticas. Queremos que esse encontro funcione como motor de desenvolvimento artístico e de reconhecimento para os criadores portugueses, muitos deles ainda a trabalhar em condições frágeis ou com pouca visibilidade.

Nesse sentido, o festival tem vindo a reforçar o seu apoio à criação nacional, seja através de coproduções, estreias absolutas, residências ou momentos de visibilidade internacional como a sessão de pitching e os encontros profissionais. Procuramos dar espaço tanto a artistas emergentes como a companhias com percursos mais consolidados, sempre com o objetivo de contribuir para um ecossistema mais sólido, diverso e sustentável.

Não se trata de fazer uma separação entre "nacional" e "internacional", mas de criar uma programação em que essas categorias se toquem, se cruzem e se desafiem mutuamente. E é aí que acreditamos que o festival cumpre o seu papel: como plataforma de circulação, de pensamento crítico e de reforço da comunidade artística.

 

Como é que a participação em redes como a Circusnext ou a CircusLink tem influenciado a curadoria do festival?

A participação ativa em redes europeias como a Circusnext ou a CircusLink tem sido fundamental para ampliar o nosso olhar e para reforçar o posicionamento do Vaudeville Rendez-Vous como um festival conectado com os debates e práticas que atravessam hoje o circo a nível internacional.

Estas redes permitem-nos acompanhar de perto processos de criação emergentes, descobrir artistas em momentos muito precoces das suas carreiras e aceder a contextos de experimentação que muitas vezes não chegam aos circuitos mais convencionais. Isso tem um impacto direto na curadoria, não só pela identificação de propostas relevantes, mas também pelo confronto com diferentes abordagens estéticas, políticas e metodológicas.

Ao mesmo tempo, estar integrado nessas redes permite-nos contribuir para a circulação de artistas portugueses, tornando o festival um ponto de contacto entre a cena nacional e estruturas de apoio europeu.

As ações de mediação, como workshops e masterclasses, são uma parte importante da programação. Que papel têm na missão do festival?

Para nós, a mediação não é um complemento da programação, é parte integrante da missão do festival. Acreditamos que o encontro entre artistas e públicos deve ir além do momento do espetáculo, criando espaço para o diálogo, para a experimentação e para a partilha de ferramentas, referências e experiências.

Workshops, masterclasses ou conversas informais são formas de aprofundar esse contacto, de tornar o circo mais acessível e, ao mesmo tempo, mais desafiante. Não se trata de “explicar” a obra, mas de criar condições para que ela seja experienciada de forma mais livre, mais informada e mais crítica.

 

Este ano há uma aposta reforçada na acessibilidade, incluindo interpretação em Língua Gestual Portuguesa. Que desafios e aprendizagens têm vindo daí?

Este reforço da acessibilidade representa um passo importante, e necessário, no caminho que queremos fazer enquanto festival verdadeiramente inclusivo. A introdução de interpretação em Língua Gestual Portuguesa (LGP), bem como outras medidas que estamos a testar ou a implementar gradualmente, parte de uma convicção simples: o acesso à programação artística deve ser um direito, não um privilégio.

Claro que este processo vem acompanhado de desafios, desde os logísticos e técnicos até aos mais estruturais, como a necessidade de repensar formatos e modos de comunicação desde a raiz. Mas tem sido, acima de tudo, um processo de escuta e de aprendizagem contínua.

Estamos a trabalhar com equipas que nos ajudam a questionar práticas instaladas e a construir novas possibilidades de relação com públicos que, historicamente, têm sido afastados do acesso pleno à cultura. E isso tem-nos trazido perspetivas valiosas, sobre linguagem, sobre tempo, sobre presença, que enriquecem o próprio modo como pensamos o festival.

Sabemos que há ainda muito caminho a fazer. Mas acreditamos que a acessibilidade não pode ser um gesto pontual ou decorativo, tem de ser um compromisso continuado, transversal e, sobretudo, transformador. Esta edição marca um avanço claro nesse sentido, e queremos que seja apenas o início.

Há algum espetáculo desta edição que te tenha tocado particularmente? Porquê?

RIMA, de Alan Sencades e Alvin Yong, produzido pela Erva Daninha.

O que me toca profundamente neste espetáculo, é a forma sensível e poética como os artistas transpuseram a sua própria história para o palco. Através da técnica da Roda Cyr, Alan e Alvin constroem uma narrativa que vai muito para além do virtuosismo físico: partilham a sua experiência de vida, as suas origens tão distantes — Brasil e Malásia — e ao mesmo tempo os pontos de conexão inesperados que os unem.

É fascinante como elementos tão simples — terem a mesma altura e peso, começarem a praticar a Roda Cyr no mesmo ano, e até terem nascido no mesmo dia — se transformam em metáforas poderosas de encontro, de cumplicidade e de partilha, mesmo quando as distâncias geográficas e culturais parecem enormes.

RIMA é um espetáculo que fala da universalidade da experiência humana, da resiliência e do poder das ligações que conseguimos criar, mesmo quando tudo parece diferente ou distante. Essa emoção crua, aliada à mestria técnica e à beleza visual, criou um momento, que para mim, é muito especial.

 

Como vês a evolução do circo contemporâneo em Portugal desde que o festival começou?

Desde que o Vaudeville Rendez-Vous começou, há mais de uma década, tenho acompanhado uma evolução muito significativa no panorama do circo contemporâneo em Portugal. Passámos de um cenário relativamente incipiente e pouco visível para uma realidade muito mais rica, diversa e profissionalizada.

Hoje, temos uma geração de artistas e companhias que já contam com percursos internacionais, que experimentam com linguagens híbridas e que questionam as fronteiras tradicionais do circo. Esse crescimento foi acompanhado pelo surgimento de estruturas de formação, redes de cooperação e apoios institucionais que deram mais solidez ao setor.

O festival teve um papel importante nesta evolução, não só como plataforma de apresentação, mas também como espaço de encontro, partilha e reflexão para a comunidade artística. O Vaudeville Rendez-Vous ajudou a criar uma rede, a dar visibilidade a novos projetos e a estabelecer diálogos entre artistas portugueses e internacionais.

Claro que ainda há muitos desafios, nomeadamente na sustentabilidade económica dos projetos e no reconhecimento do circo como uma linguagem artística legítima e autónoma, mas o caminho feito até aqui é inspirador. O circo contemporâneo em Portugal está hoje mais vivo, mais crítico e mais presente, e isso enche-me de esperança no futuro.

Apoiar

Se quiseres apoiar o Coffeepaste, para continuarmos a fazer mais e melhor por ti e pela comunidade, vê como aqui.

Como apoiar

Se tiveres alguma questão, escreve-nos para info@coffeepaste.com

Segue-nos nas redes

Cláudia Berkeley: O circo como gesto político e poético

Publicidade

Quer Publicitar no nosso site? preencha o formulário.

Preencher

Inscreve-te na mailing list e recebe todas as novidades do Coffeepaste!

Ao subscreveres, passarás a receber os anúncios mais recentes, informações sobre novos conteúdos editoriais, as nossas iniciativas e outras informações por email. O teu endereço nunca será partilhado.

Apoios

03 Lisboa

Copyright © 2022 CoffeePaste. Todos os direitos reservados.

Desenvolvido por

Cláudia Berkeley: O circo como gesto político e poético
coffeepaste.com desenvolvido por Bondhabits. Agência de marketing digital e desenvolvimento de websites e desenvolvimento de apps mobile