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A nossa sede, Guilherme, foi a nossa sede. Ardeu. O Zé disse-me estas palavras ao telefone, quando lhe devolvi a chamada no final do espectáculo. O Zé tinha a voz sumida. Estava desolado. Tanto tempo de trabalho, foi tudo num instante. A nossa sede, repetia o Zé. Falava da sede do Centro Cultural e Recreativo dos Coruchéus, um espaço que conheci no início do ano, e a que me liguei imediatamente. Fiz-me sócio no dia em que cheguei, um brinde de minis como que carimbou a minha chegada. Comecei a fazer visitas semanais, para jogar ténis no campo dos Coruchéus. Claro que acabei por fazer a minha festa de aniversário lá, este ano. O presidente desta colectividade a tratar do grelhado, as mesas debaixo do abacateiro. Ficou escrito em papel, para se concretizar para o ano: o Teatro da Cidade combinou que mensalmente se leria uma peça de teatro nos Coruchéus, ali mesmo, na pequena biblioteca que montaram.
Tudo isto se transformou noutra coisa, esta semana. Os troféus de xadrez desapareceram, como desapareceu a camisola que assinei num dos primeiros dias em que lá estive, uma camisola de 1975, o ano da fundação. Até o arquivo onde estava a minha ficha de inscrição deve ter ficado reduzido a cinza.
Eu digo: Zé, não podem desanimar. Se a sede foi destruída, vamos erguê-la de novo. Vamos fazê-la mais bonita, mais preparada, mais moderna. É uma Fénix. Conheces? A ave mitológica que renasce das cinzas. A nossa sede é uma Fénix.
Ele murmura que sim, mas não o consegue vislumbrar. Diz-me que na sexta-feira treinamos na mesma – e é o único sinal de esperança. E, de facto, sexta-feira, às oito da manhã, vou olhar pela primeira vez para as ruínas dos Coruchéus. Pergunto-me se consigo, quando as vir, imaginar que é possível renascer.
Os fusos horários são coisas incríveis: pensar que em Lisboa são 11h, em Nova Iorque 6h e em Roma estamos em 1922, leio nas redes sociais. Um outro tipo de incêndio, um resultado que, como todos os movimentos do género, se baseia numa atitude de negação somos contra isto; e abaixo isto, quando a política deveria ser uma actividade construtiva movida pelo somos por isto, acreditamos nisto. Volto a lembrar-me das frases que há umas semanas ouvi nas quatro esquinas, em Viseu; lembro-me de ouvir a Sílvia dizer A falta de esperança faz com que uma sociedade apodreça de dentro para fora. E somo a isto a conversa que ainda há uns dias tive no Martinho da Arcada com um editor que me dizia que as pessoas não têm ferramentas para ler, que lhes faltam as ferramentas, que não sabem ler, e eu respondia Pois eu acho que só se aprende a ler através da brincadeira, da nossa capacidade de brincar ao faz-de-conta, de imaginar. E penso: é assim tão fácil perder a esperança? Basta tão pouco tempo? Perante a frustração, perante a incompreensão, perante a discórdia não nos surge por instinto outra vontade que não seja a de destruir, a de fazer mais parecido com o que nós somos?
Zoya tem pouco mais que vinte anos – se é que já tem vinte anos, sequer. Anda na faculdade, e só quando aqui chegou percebeu o impacto que a mãe tem nas escolhas que foi fazendo ao longo da vida. Quando lhe perguntam porque toma tantas decisões pela filha, a mãe responde que Vivemos com medo. Pelo menos, o meu marido e eu – ela não – e por isso, estou grata. Ela é muito americana, nesse sentido. Ela é um pouco destemida. Ela é do género: o que quer que aconteça, encontramos maneira. Mas eu e o meu marido somos imigrantes. Vivemos com medo.
E Zoya, com uma agilidade que ultrapassa qualquer idade, diz Mas eu penso: porque é que as decisões têm de ser tomadas a partir do medo? Todas as pessoas que admiro, as pessoas que me servem de modelos, todas elas fizeram as suas carreiras a partir de algo que amavam fazer, até a minha mãe. Porque é que eu não posso ser movida por isso, em vez de ter de ser motivada pelo medo?
Podem ouvir a história de Zoya no podcast This American Life, um dos que sigo, o link está aqui: https://www.thisamericanlife.org/779/ends-of-the-earth
Como inspirar a esperança? Ou nem tanto a esperança, mas o sentido construtivo perante o mundo. Como podemos acrescentar ao mundo; mesmo sem a certeza do aspecto que tem um mundo acrescentado?
A sede de uma colectividade é um dos corações de uma comunidade. Neste pequeno bairro, ali para os lados de Alvalade, as pessoas cruzam-se nos Coruchéus e dizem bom dia; há umas manhãs, uma senhora perguntou-me O que é que antes de ser já o era? Não sei, respondo enquanto tenho de sobreviver ao seu olhar de expectativa. A pescada!, grita em gargalhadas. A mesma senhora, uns dias depois, pergunta: Quantos ossos há no corpo humano? E eu só consigo pensar nos trocadilhos que a frase há de conter. Mas ela diz o número, apenas. Esta não tinha nada na manga.
Será sempre difícil resistir à tentação da desesperança, mas é preciso amar para se fazer um coração. É preciso amar, e ter esperança. O bom sentimento de uma esperança activa. Porque já se sabe: o sangue gela quando se tem medo.
Imagem gerada por inteligência artificial com recurso ao Dall.E
BREVES CRÓNICAS DO TEMPO são pequenos episódios, registos, princípios de reflexão pelo dramaturgo Guilherme Gomes.
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