TUDO SOBRE A COMUNIDADE DAS ARTES

Ajuda-nos a manter a arte e a cultura acessíveis a todos - Apoia o Coffeepaste e faz parte desta transformação.

Ajuda-nos a manter a arte e a cultura acessíveis a todos - Apoia o Coffeepaste e faz parte desta transformação.

Selecione a area onde pretende pesquisar

Conteúdos

Classificados

Recursos

Workshops

Crítica

Artigos
Crítica

Corpos Gordos, Gente Magra

Por

 

José Maria Mendia
14 de Novembro de 2023

Partilhar

Corpos Gordos, Gente Magra 

Uma mulher, de costas, nua, corpo possante, gordo, cheio de abismos, caminhos, franjas, entra em palco a carregar um adereço; na outra ponta do adereço, um homem, também nu, com o corpo tatuado, argolas prateadas largas nas orelhas, mas de frente. Este corpo, o de Ana Amaral,  virá a ser Barbary, a criada de Desdémona; este corpo, o de Daniel Moutinho, será Otelo. Os adereços que carregam compõem o cenário de Que Seria?: três escadas cor de laranja e nada mais, para além do fundo também cor-de-laranja. 


Um a um, os protagonistas apresentam-se: Catarina Amaral, uma mulher bela e jovem, ingénua, com uma pose solar, que imagino ser aquela das deusas do antigo Egito, será Desdémona; Júlio Mesquita será Iago. Ator mais maduro e consciente do potencial do seu corpo, articula-o para representar o papel de antagonista no seu cinismo secreto, titubeando, na sua frustração, prenunciando uma agenda apoiada pela sua mulher. O corpo de Manuela Paulo, que será Emília, é outro corpo forte, vibrante, empertigado, atraente. Brilhante. Abertamente cínica, é quase má. Vive um estado de indiferença, de violência passiva contida, com trejeitos de superioridade e comentários indesculpáveis mas protegidos. É uma mulher de alta sociedade, na ignorância de que a sua certeza é o caule da podridão. 


A dupla Júlio Mesquita e Manuela Paulo constrói um centro de gravidade, mantém uma intimidade esculpida pelos interesses, pela intensidade, pela tesão. Os dois têm uma força que é reforçada na comunhão, gerando o ódio para parir a maldade e criar a morte. Marido e mulher, Iago e Emília irradiam uma energia que o outro casal não partilha: Desdémona e Otelo estão perdidos na incerteza e instabilidade do amor. 


Frágil na sua condição biológica, Otelo tem uma valiosa posição profissional, que, contudo, carrega um ressentimento histórico, uma insegurança perante uma corte de privilegiados que não o reconhece. Embora um romântico virtuoso, um poeta do amor, um manipulador do coração, do seu e de Desdémona, desconfia do real valor do último sentimento: o amor. Cássio, interpretado por Pedro Nuno, é o bestie de Desdémona. Move-se como a caricatura de um novo-rico, na ilusão do privilégio justificar as suas ações. Quando não está a caminhar, como se numa passerelle, com um top em rede sob o fato castanho Gucci, ton sur ton, exibe um corpo clássico, perfeitinho, sem reprimenda nem discriminação. Efeminado e assumidamente gay, as suas opções são limitadas: como personagem secundário, é suficiente. 


Como é costume nas tragédias de Shakespeare, o texto começa por nos desvendar o seu segredo e, depois, oferece-nos um conjunto de personagens-tipo em que o enredo as constrói e desconstrói até à morte. Esta narrativa é sintomática de sentimentos de poder, de vingança, de amor, de inveja ou até de maldade. Que Seria? usa a tragédia de Otelo e reforça o tema do racismo. Sobre uma densa camada política, a encenadora acrescenta outra e faz um negativo da peça: as personagens brancas são negras e as personagens negras, Otelo e Barbary, tornam-se brancas. “Que seria”, se o mundo do privilégio, do poder, do dinheiro, do mal, do pretensiosismo fosse, afinal, o dos negros? O texto, atualizado e simplificado, cria um universo empresarial em que, das seis personagens, três vão morrer.  


Assumindo ou não a proposta de Lara Mesquita, experimentamos um discurso invertido, mas substancialmente construído pela encenadora, onde esta faz um exercício de especulação, de articulação de preconceitos e de suposições, na ótica da clivagem racial. Para a construção do texto, Lara Mesquita usa diversos materiais: Shakespeare, naturalmente, inteligência artificial, apontamentos biográficos dos atores e uma peça de Toni Morrison, Desdémona. Ao invés do original de Shakespeare, em que a criada é só uma memória de infância de Desdémona, na Desdémona de Toni Morrison a criada negra é uma personagem em diálogo direto com a patroa. ‘A mini-patroa’. Surge num tempo em que se procura a voz de figuras outrora silenciadas. O exercício de inversão vive em torno dessa premissa: o de colocar o silenciador no lugar do silenciado para, como diz Lara Mesquita, chegar ao estado de humildade. Só que a humildade não pode existir sem empatia.


O Seminário de Escrita Crítica para Artes Performativas, orientado por Rui Catalão, decorre nos dois fins-de-semana do ET/FEST, festival onde são apresentados os projetos vencedores das Bolsas de Criação d'O Espaço do Tempo, com o apoio do BPI e da Fundação "la Caixa", em Montemor-o-Novo. No primeiro fim-de-semana, nos dias 10 e 11 de novembro, os participantes tiveram a oportunidade de assistir às estreias absolutas de Que Seria, de Lara Mesquita, e Toda a luz do meio-dia, de Julián Pacomio. 


Foto: Joana Calejo Pires

Apoiar

Se quiseres apoiar o Coffeepaste, para continuarmos a fazer mais e melhor por ti e pela comunidade, vê como aqui.

Como apoiar

Se tiveres alguma questão, escreve-nos para info@coffeepaste.com

Segue-nos nas redes

Corpos Gordos, Gente Magra 

Publicidade

Quer Publicitar no nosso site? preencha o formulário.

Preencher

Inscreve-te na mailing list e recebe todas as novidades do Coffeepaste!

Ao subscreveres, passarás a receber os anúncios mais recentes, informações sobre novos conteúdos editoriais, as nossas iniciativas e outras informações por email. O teu endereço nunca será partilhado.

Apoios

03 Lisboa

Copyright © 2022 CoffeePaste. Todos os direitos reservados.

Desenvolvido por

Corpos Gordos, Gente Magra 
coffeepaste.com desenvolvido por Bondhabits. Agência de marketing digital e desenvolvimento de websites e desenvolvimento de apps mobile