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Quase todas as comunidades inserem em si a ideia de intuição. Chamada de perceção, capacidade extracognitiva, premonição ou “terceiro olho”; é a habilidade de chegar a uma conclusão sobre algo de que ainda não se possuem fatos, formais e conscientes. É o tal pressentimento que nos faz sentir o que é, existe ou deve ser. Orí é, então, em iorubá, usada na religião afro-brasileira do candomblé, a intuição especial que nos guia, representando um centro gravítico interno. É a essência do ser, sem que sejam precisas razões ou explicações para tal, embora signifique textualmente cabeça. É neste espaço que Kabeça Orí se move. Apesar do pleonasmo da tradução literal, o trabalho de Aoaní e Joyce Souza incide sobre a dicotomia e contradição que há entre cabeça (intelecto) e cabeça (Orí), funcionando em conjunto e em contínuo com a vídeo-performance Kabeça apresentada o ano passado no Festival Alkantara, em resultado da residência artística realizada no programa Kilombo.
Nesse primeiro trabalho desta dupla era feita uma homenagem à história da presença e resistência negra em Lisboa através do ritual de “bater cabeça” do candomblé (adobás). Nesta nova apresentação, Aoaní e Joyce Souza, bebendo de referências como Beatriz Nascimento, Leda Maria Martins e António Bispo dos Santos (Nêgo Bispo), expandem a simbologia do Orí como regresso ao chão, à terra e, no fundo, a si. Em oposição, contudo, ao que acontece em Kabeça, onde havia sobretudo a ocupação de lugares ancestrais, Kabeça Orí interroga a legitimidade de uma estrutura colonialista e esclavagista que impôs Orí-cabeça como estrutura lógica e funcional. Reivindica espaço, mas em especial o “seu” tempo. Leda Maria Martins, poeta, ensaísta e dramaturga com longo percurso nas artes performativas, desenvolve o conceito de tempo espiralar, em que o corpo e os gestos contêm tradição, cultura e memória. Kabeça Orí concretiza que o tempo não precisa de medidas, regras, organizações formais: o corpo contém passado, presente e futuro condensados em Orí. “Orí é a casa que levo onde vou”.
A primeira cena abre com peças dispersas no chão que se vão refazendo, mimetizando uma tentativa de redefinição de fragmentos identitários, enquanto as intérpretes tiram das cabeças adornos semelhantes a cérebros, talvez numa mostra da perda de Orí. Através dos figurinos, o espectador encontra uma primeira referência aos trajes dos terreiros do candomblé. Deparamo-nos depois com a cor de terra da saia, sobreposta à típica indumentária da religião afro-brasileira, uma alusão a Iansã, divindade (orixá) feminina corajosa que guia as almas do terreno para o divino.
Outro momento forte do espetáculo é a reflexão que Joyce Souza faz sobre o diabo, símbolo do mal na matriz dicotómica cristã (associado pela igreja católica aos índios e aos africanos, tal como referido por Lisandra Pingo em “Uma análise das múltiplas faces de Exu por meio de canções brasileiras: contribuições para reflexões sobre o ensino da cultura e da história africana e afro-brasileira”). Joyce Souza personificará talvez assim Exu, o orixá associado a esta divindade, a quem similarmente se atribui um papel de intérprete e comunicador, tecendo vários paralelismos e brincando com as palavras, num vaivém balançante sobre o significado de diabo. A trajetória do espetáculo segue a rejeição de valores polarizados e da primazia do intelecto, criticando o incentivo à desconexão entre corpo e mente, pontuado pelo trabalho da percussionista Emile Pereira, que constrói imagens sonoras ritualísticas através do uso do atabaque e do berimbau no espaço cénico.
No final, a reconstrução dos fragmentos “encruzilhados”, noutra possível referência a Leda Maria Martins sobre a cultura negra (“A cultura negra é o lugar das encruzilhadas”), em semicírculos complementares e em espelho, transporta o espectador para um novo jogo de significado da comunhão entre Brasil-África, traduzidos pelos corpos de Joyce e Aoaní dispostos frente-a-frente. Será aqui que se faz a comunicação com o divino, através de uma comida ritual e dos adornos de cabeça reaparecidos, signo do regresso dos Orís à origem.
A bicefalia de Kabeça Orí transfigura-se na noção de identidade e de pertença coletiva. É um trabalho cerebral em que as componentes cénicas do espetáculo estão investidas de grande simbolismo da cultura afro-brasileira. Porém, a celebração da memória coletiva e da tradição através dos corpos, enquanto instrumentos de ancestralidade, faz com que Kabeça Orí forneça um entendimento percetível ao espectador que dispensa o uso de cognição.
Crítica apresentada no Seminário de Escrita Crítica para Artes Performativas, orientado por Rui Catalão, que decorreu nos dois fins-de-semana do #ETFEST 2024, festival onde são apresentados os projetos vencedores das Bolsas de Criação d'O Espaço do Tempo, com o apoio do BPI e da Fundação "la Caixa". Nos dias 15 e 16 de novembro, os participantes tiveram a oportunidade de assistir às estreias absolutas de frente-a-frente, de Inês Campos & Vahan Kerovpyan, e Kabeça Orí, de Aoaní & Joyce Souza / Associação Orí.
Foto por Joniricos
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