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Fumo e Espelhos

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Por

 

Ivo Saraiva e Silva
29 de Dezembro de 2025

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DZI-DZI DZI-DZI

Temos o futuro assombrado. Talvez a arte potencie uma visão do mundo que ausculte um futuro, no ato esmifrado de refletir sobre o tempo presente. A reflexão, essa, acontece através de vestígios do passado que consciencializa a distinção entre aquilo que se foi e aquilo que se é, que é o mesmo que dizer: de onde se veio e para onde se vai. É olhar-se ao espelho e ver um fantasma.


Nas artes performativas, especificamente, representa-se, quer seja através de uma personagem construída para o efeito ou da biografia da pessoa que cria e/ou interpreta. É a representação de um discurso que se quer firmar, e “representar” significa “voltar a apresentar” ou, em bom rigor, tornar presente. Trata-se de repetição – ou antes, revisão.


Não é por acaso que a “revista à portuguesa” toma o pulso aos acontecimentos presentes ao chamar por agora um conjunto de situações já ocorridas, ainda que recentemente. Muitas vezes, os trocadilhos vão desde figuras da contemporaneidade até personalidades históricas, no entendimento consciente e rigoroso de que não estamos sozinhos e não chegamos até aqui em vão. Aliás, para além das temáticas e dos truques do cómico de situação, a própria estrutura da revista é já uma versão portuguesa da revue française.


Um qualquer acontecimento performativo, ao implicar uma revisão, uma revista, progride na consciencialização contextual daquilo que se está a fazer. Há fantasmas na mira dos processos e na execução dos trabalhos, porque aquilo que queremos que aconteça na efeméride da representação é fruto de uma apreensão ou adquirida através de um percurso ou de uma investigação.


Marvin Carlson teima em concentrar-se nas fantasmagorias que assombram encenações e modos de fazer, no ato em que acontecem: “Assim como parte do prazer de assistir a uma nova Santa Joana assenta na assombração das versões anteriores da narrativa e parte do prazer de ver um novo ator na pele de Hamlet assenta na assombração dos seus ilustres ou não tão ilustres predecessores, também a reencenação de um clássico bem conhecido numa nova abordagem evoca, de modo inevitável e, muitas vezes, deliberado, os espectros das abordagens anteriores. Podemos até salientar, em tempos recentes, o equivalente, ao nível dos encenadores, das famosas rivalidades entre atores do passado, quando os grandes intérpretes levavam à cena a mesma peça deliberadamente em simultâneo, convidando o público a fazer comparações, como os Romeus rivais de David Garrick e Spranger Barry na Londres setecentista, os Macbeths rivais de Forrest e Macready no período romântico e as Marguerites Gautiers de Duse e Bernhardt na Paris de finais de Oitocentos.” (CARLSON, Marvin, 2020, Palco Assombrado – O Teatro Enquanto Máquina de Memória, trad. Paulo Faria, Porto: Empilhadora, p.134).


Um dado espetáculo carrega em si uma memória e as pessoas que o interpretam atravessam-na, dedilhando uma imitação do passado com certas variações. Se o princípio do teatro está na mimesis (imitação), então é na repetição de um gesto que se chega mais agilmente à alusão de um futuro possível. Ainda assim, como é que um futuro que anseia mudança se vigora num processo de repetição? “Representar um futuro” pode então parecer contraditório.


No estalar dos anos setenta, um nome curioso é dado à transgressão e à exploração de uma possível representação do porvir: Dzi Croquettes. Trata-se de um grupo artístico brasileiro que vem soletrar o futuro nos seus corpos ágeis e vibrantes, feitos carne e purpurina. Em palco, corpos peludos e de sunga e salto alto que cantam e dançam ao ritmo de um cabaret ansioso, ao som de saxofone em fervor. O nome, esse, explica Martins Freitas que “Wagner Ribeiro se encontrou com Bayard Tonelli e Reginaldo de Polli e, em meio à aperitivos, decidiram formar um grupo que levaria o nome de Dzi Croquette: uma variação do som do artigo definido inglês (The) com o nome do popular salgadinho croquete. Para além de toda a discussão sobre a semelhança (não apenas no nome) com o grupo norte-americano The Cockettes, de 1968, as primeiras reportagens sobre os Croquettes destacam que a motivação inicial estava associada, sobretudo, à busca de um trabalho que agregasse satisfação financeira com uma busca existencial.” (FREITAS, Talitta Tatiane Martins, 2016, Life is a cabaret: a obra dos Dzi para além das lentes do cinema, Universidade Federal de Uberlândia, p. 97).


A busca existencial que Martins Freitas sublinha na sua tese é cúmplice de um questionamento à masculinidade padronizada com que este grupo de homens-dzi não se identificava. É uma provocação anunciadora de um pensamento sério acerca das novas masculinidades, hoje ainda com muito debate por produzir. Ora, às suas masculinidades, os performers criavam possibilidades, como se as ampliassem e lhe achassem outras variações que não as habituais.


Esta é uma preocupação que os Dzi acabaram por partilhar com outros autores e pensadores que, diz-nos Armengol, fora motivada por uma desilusão generalizada relacionada com a figura heroica do homem: “O foco atual nos homens e nas masculinidades também radica na desilusão generalizada com a Guerra do Vietnam pela mesma altura, que conduziu a um questionamento das estruturas de poder patriarcal e dos comportamentos masculinos fomentados pela Segunda Guerra Mundial e pela Guerra Fria (Kidder, 2002, 1).


Tradicionalmente, o corpo masculino fora definido como forte, estóico e impenetrável, salvaguardado de doenças, decrepitude e exaustão. Assim, o soldado norte-americano era representado como musculado, poderoso, viril, agressivo, ou seja, epítome da masculinidade tradicional. No entanto, a derrota de Johnson no Vietnam  - assim como as imagens recorrentes de antigos combatentes mutilados, com os corpos perfurados, castrados ou feridos – puseram em causa a masculinidade e a virilidade do soldado (Jeffords, 1989; 1994). Portanto, todos estes acontecimentos e movimentos sociais da segunda metade do século XX ajudaram a questionar a ideia de masculinidade, especialmente da masculinidade branca heterossexual, e foram determinantes para despertar o interesse pela análise das masculinidades. (ARMENGOL, Josep M., 2025, A Reinvenção da Masculinidade: Homens e Feminismo, Lisboa: Tinta-da-China, pp. 29 e 30).


O ato de desconstrução de uma ideia padronizada a que a masculinidade sempre se observou refém é então já experimentada com virtuosismo e exuberância por este grupo experimental e multidisciplinar brasileiro. Sob a ameaça da ditadura do Brasil, os “Dzi” trocaram o ator executante pelo performer criativo e ativo que interrompe o Teatro viciado em heróis e princesas para escancarar a História, na recuperação de narrativas invisibilizadas. É com humor que o fazem e é com amor à sua própria existência que transformam os brados em refrões: “Dzi Croquettes, Dzi-Dzi Dzi-Dzi, Dzi Croquettes” // “Eu não tenho culpa de ser chique assim / Eu nasci assim, eu vou morrer assim.”


O grupo de performers expõe a sua própria masculinidade e sexualiza-a, na ânsia de a interrogar. É, desta forma, que o coletivo se permite discursar não só sobre as suas próprias existências, mas de outras tantas marginais que acabam por estar representadas naquele paraíso decadente e brilhante. Entre as dissidências representadas, os Dzi conseguem uma verificação histórica que se dirige ao passado e ao futuro ao mesmo tempo: recupera narrativas de identidades apagadas lá atrás e invisibilizadas, à medida que reivindica uma inscrição de todas aquelas que estão por nascer. Isto quer dizer que, apesar de se projetar para o futuro, o discurso do coletivo acontece sob a assombração de memórias. Aliás, é sobre as memórias infelizes coletivas que o grupo ganha a sua importância. Entre as pingas de suor dos corpos nus e vibrantes, estão fantasmas que dançam sob chuva de várias cores.


Quando vemos um corpo de um Dzi, estamos a lidar com lembranças. O corpo do Dzi reflete memórias assombradas.:


Primeiro, o assombro de uma ideia sexista de masculino, ao reconhecer-se um corpo másculo e observá-lo a transfigurar-se noutras possibilidades que não aquelas que lhe foram definidas por um sistema e por uma História;


Depois, o assombro das personagens que figuram ou as ações a que recorrem: representar o Fuhrer, responsável pelo extermínio em massa, inclusive pelas vítimas que os próprios Dzi representam, é uma forma de reforçar um assombro de um corpo, em modo de humor. Ademais, é a possibilidade de que aquele não é o corpo da personagem (e por isso é metateatral e, em consequência, traz um comentário) mas que aquela personagem teria um corpo físico e humano idêntico àquele. Exerce-se, dessa forma, a um exercício de desconstrução do poder, desmistificando a figura histórica e fascista. Isto quer dizer que, a partir do assombro, a companhia afere que é impossível esquecer o que aconteceu e que é importante estar-se atento ao que pode acontecer de futuro. Não é símbolo, é factual. A pedra de toque de legitimidade do discurso daquela altura são os tempos que vivemos hoje;


Finalmente, insurge-se o assombro da memória de todos aqueles corpos esquecidos da memória, da História, maltratados e humilhados, mortos. Muitos lembrados e reivindicados em Stonewall (1969), outros tantos (demasiados!) esquecidos no seu próprio sofrimento e/ou no esconderijo do seu próprio diagnóstico. É que para além da reclamar visibilidade para as dissidências queer (de que o belo O Bolero, interpretado por Lennie Dale e Wagner Ribeiro é exemplo), o discurso dos Dzi dão conta de outras identidades específicas, consciente ou não, de propósito ou acidentalmente. O facto de um dos principais elementos do grupo, Lennie Dale, artista multidisciplinar, ter sido afetado pelo vírus HIV e vítima de sida, confere ao trabalho uma dimensão que reforça sobretudo o papel imperfeito, ignorante e desrespeitador dos estadistas e dos próprios governos de varrerem para debaixo de um tapete um flagelo aterrador.


O exercício de trazer à tona fantasmas da memória, na lembrança ou na denúncia, para a arte se catapultar para o futuro é um processo que faz com que os trabalhos convivam insistentemente com assombros. Todavia, para lá de uma estética sempre herdeira de um passado, para além das temáticas e das palavras que dialogam com uma História, há no corpo da pessoa que atua uma incandescente presença de memória no momento presente, o de uma qualquer ação performativa. O corpo-performer é um ágil agitador de discurso e de corações que permite cumprir todo um ciclo paradoxal que vai desde os antípodas até ao século mais avançado. O gesto e a sua corporalidade acabam por acusar épocas e (os seus) preconceitos, e exibem comportamentos que consciencializam uma herança que não se pediu e que, por vezes, nem se desejou.


A encenadora portuguesa Mónica Calle, pelo seu extenso e intenso trabalho com o corpo em cena, detetou desde cedo vícios estruturais que um corpo pode adotar e que o leva a fragilidades. Em 1992, aquando da sua estreia como artista em A Virgem Doida (Casa Conveniente), Calle decidiu desmembrar a ideia de uma feminilidade vigente, despindo-se, para assumir a fragilidade de um corpo que leva ao empoderamento da mulher. Ou seja, a fragilidade não associada à feminilidade mas ao seu enrijamento porque experiencia uma intensidade, e então liberta-se, inscreve-se. O trabalho de Calle leva-nos até à cave mais obscura para falar de nós, no íntimo, na palavra sussurrada, no gesto teatral que não se vê mas consegue-se desfrutá-lo. A artista desordena os comportamentos e baralha os códigos das convenções, quer da feminilidade quer do teatro.


A ideia de desordem como veículo primeiro de experienciar o estado mais humano de um ser vivo e de o fazer emergir está cravado numa geração de artistas de que Calle é uma das protagonistas recetoras de um legado que os anos setenta projetaram – e que os Dzi retratam com toda a eficácia. Outra das protagonistas, Vera Mantero, coreógrafa e bailarina, afinca na desordem que conduz ao experimento da intensidade vital de um organismo vivo. A propósito de Para enfastiadas e profundas tristezas (O Rumo do Fumo), diz-nos Mantero: “(...) Neste novo trabalho quis investigar, ou provavelmente confirmar, a necessidade vital para os seres humanos, para a sua sobrevivência psíquica, de uma desordem que se alterne à ordem, de sujidade no meio daquilo que aparentemente parece limpo. O medo de nos sujarmos/desordenarmos impede-nos o acesso à intensidade. Há mais questões. Há sempre mais questões, é impossível nomeá-las todas neste espaço. Ou em qualquer espaço. Entusiasmo-me e resigno-me a procurar através delas um fio que explique a nossa incapacidade de saber. Incapacidade de sabermos mover-nos, existir, agir nesta condição de seres humanos.” (Teatro Municipal do Porto, 2025, História(s) da Dança – Vera Mantero, p.12).


É curioso que tanto Calle como Mantero exijam uma procura pela intensidade nos seus trabalhos através dessa ideia de desordenar a “casa” e desarrumar o íntimo, como resposta ao conceito de ordem firmado por um passado que elas conhecem ou estudaram. Também não é por acaso que, depois de testarem desordenadamente um passado qualquer nos seus corpos, as duas criadoras voltem a algumas das suas peças, anos mais tarde, reponham-nas ou recriem-nas, com vista a comporem o mesmo exercício, mas com premissas algo distintas. É a fantasmagoria, o tal assombro, a tornar-se matéria criativa.


Mantero associa o assombro de uma encenação à própria memória dos seus trabalhos (e, por seguimento, do seu corpo) quando decide reinterpretar objetos seus de há trinta anos atrás; no mesmo encalço e por sua vez, Calle compõe em cima da sua composição fantasma: subtrai-lhe excessos e antiguidades, adiciona-lhe discurso, amplia ambiguidades. Com este exercício, as duas artistas assumem que a desordem que experienciaram nesses trabalhos transformou-se em ordem evidente por força do tempo ou das circunstâncias e, portanto, o objeto artístico tornou-se ele mesmo uma fantasmagoria. Assim, à prática da desordem associa-se o desempenho da multiplicação pois, ao colaborar com o assombro de si e da sua obra, Calle e Mantero multiplicam-se, e já não é só uma ali em cena, mas uns quantos corpos idênticos a olharem entre si.


Torna-se interessante observar que também Ciro Barcelos, único sobrevivente Dzi, regressa ao trabalho do grupo este ano com o espetáculo Dzi Croquettes – Sem Censura. No entanto, ainda que Barcelos esteja em cena, os corpos que trazem essa memória e a atualizam são outros: jovens, vibrantes, fortes, suados e brilhantes. Na impossibilidade de reunir todo o grupo original no palco, talvez Barcelos tenha aproveitado essa condição para colocar corpos na flor da juventude de 2025 a dialogar com corpos idênticos desse oásis chamado 70. Talvez seja uma tese sobre o que se perdeu e o que se ganhou, que lutas são as de hoje e pelo que vale a pena empenharmo-nos, e que corpos do agora podem prodigalizar um mundo melhor e um teatro mais arriscado. Ainda que seja uma dedicatória ao futuro, nunca deixa de ser um debate sobre o passado e as suas fantasmagorias: se antes o trabalho lidava com o assombro de comunidades minoritárias, hoje, e para além desses fantasmas, lida igualmente com os espetros de Lennie Dale, Wagner Ribeiro de Souza, Cláudio Gaya, Cláudio Tovar, Reginaldo di Poly, Bayard Tonelli, Rogério di Poly, Paulo Bacellar, Benedictus Lacerda, Carlinhos Machado, Eloy Simões, Roberto de Rodrigues, e do próprio Ciro Barcelos. Não é simbólico, mas factual. O porvir acontece sempre na mira de fantasmas que por esse amanhã são lembrados.


Tentar um futuro e fazê-lo acontecer num tempo presente significa estar a ressoar o que se passou, quer numa atitude mais favorável ou numa postura desvantajosa. As artes performativas, que por excelência exploram a efeméride de um presente voltado para o depois, não deixa de socorrer-se da missão de lidar com fantasmas múltiplos – é lidar, irmão. A arte é sempre um passaporte entre passado e o futuro. É como uma passagem de ano, se quisermos pôr o flute na mão, mas tomá-lo no inferno.


Foto: © Paulo Pacheco

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