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Noites frias, e a luz da lua. Tu caminhas até à casa do poço. Os sons amplificados pela noite. Cada som um grito. Cada estalar de ramos uma ameaça. Não levas lanterna, caminhas na companhia do medo. E no chão, por entre as pedras ou onde é possível, a marca dos ramos traçada pela luz da lua. Como braços grotescos, ou a sombra de coisas vivas que não consegues explicar. Ali, num dispositivo tão simples, a porta da imaginação.
Num livro de Ann Druyan e Carl Sagan, a que chamaram Sombras de Antepassados Esquecidos, há esta ideia: a memória como a luz de uma vela – quanto mais nos afastamos da fonte de luz, menos visível o que ela ilumina.
Aquele livro de Jun’ichirō Tanizaki, O Elogio da Sombra, um livro com que me cruzei numa livraria de arquitectura, e que me fez apaixonar pela luz, pela forma como a lemos, ou como jogamos com ela. Não o tenho comigo, por isso falo de memória: naquele livro, uma das ideias que mais me entusiasma é esta de que a sombra é um elemento de construção da luz. Um pouco ao jeito das relações entre o som e o silêncio, a memória e o esquecimento. Coisas que são substância do seu contrário. Lembro-me de ler sobre uma jarra com filamentos dourados – sempre que sobre esta pela incide uma luz forte, diz Tanizaki (se não o li mal), a peça fica superficial, perde a sua beleza. Por outro lado, na penumbra, o brilho desses filamentos ultrapassa o mundo conhecido, dá-lhe profundidade e transforma a peça.
Pensas no teatro: uma sala fechada, paredes por todos os lados; desligando-se a luz: escuridão total. Então, um pequeno anúncio quente: uma mão. No centro da cena, uma mão iluminada, como se flutuasse no espaço. Parece magia. Esqueces as paredes do teatro, esqueces a cadeira em que te sentas. Esqueces o que estavas a fazer antes de entrar no teatro, o que vais fazer depois. Ali está qualquer coisa que nunca tinhas visto antes.
Desenhar luz: é ao mesmo tempo o momento mais e menos entusiasmante da criação de um espectáculo. Por um lado, o trabalho de artesão como se desenhássemos com um pincel fino, ou numa pincelada déssemos sentido a qualquer coisa que não o tinha; ainda há uns dias, vi num vídeo do National Theatre de Londres, um movimento de luz que convoca o sonho. Desenhar luz pode ser o momento mais bonito da criação de um espectáculo; por outro, há a paciência de ser parte do quadro: a pessoa que posa para o retrato. Aqui, não é tão evidente: perguntem a actores ou actrizes, creio que não hesitarão em refilar com estes ensaios.
Mas desenhar luz, não o podemos negar, é um caminho para o sonho, e para a significação.
Lembras-te: um dia estás sentado no sofá de um cenário. As luzes de serviço estão ligadas. Olhas em torno, e pensas: este sofá é falso, este chão é falso, estas roupas são falsas. São artificiais, não cumprem a sua função verdadeira. Alguém diz que vai ligar a luz de cena, a luz desenhada. E subitamente, todos os adereços te parecem o que devem parecer: coisas reais.
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Começa a ser uma tradição: lá vamos nós, outra vez com este tempo, disse o Rui Seabra, um destes dias, quando a equipa artística abalou de Lisboa para Viseu. Estava a chover. Tem estado sempre a chover quando nos lançamos à estrada para estas viagens. Na carrinha, onde segue a cenografia, só eu e o Rui. Serão três horas de viagem e conversa. E estas viagens na companhia do Rui, estas em que vamos só os dois, e conversamos sobre coisas da vida, mas acima de tudo falamos de teatro, são dos momentos mais preciosos que experimento.
Conheci-o na Cornucópia – apoiou-nos muito no nosso primeiro espectáculo, e desde então o seu apoio é constante. A sua sensibilidade faz parte da identidade artística do Teatro da Cidade. O Rui, que vive na relação com a luz, que transporta para o palco luzes que conhece no mundo lá fora – e, de vez em quando, quer meter uma luz que lhe lembra o nascer do dia em Alenquer, ou desfruta do lento acender de uma lâmpada antiga de candeeiro de rua. Não esquecerei nunca os dias que passámos na casa que tem em Alenquer, onde construímos o cenário do espectáculo que boa ideia, virmos para as montanhas, e onde pudemos ver, também nós, com que se parece o nascer do dia em Alenquer.
O Rui já trabalhou com muitas pessoas. Por brincadeira diz que somos todos seus sobrinhos. É um agregador. Onde está, é como se abraçasse as pessoas que o acompanham. E, por isso, para além das visões artísticas que partilhamos nestas viagens, o Rui lê o contexto teatral. As coisas a que assiste. De vez em quando interrompe com um “lá estou eu a ser chato” – mas não. Ouvi-lo é ouvir sobre a diversidade de projectos, a importância das instituições na salvaguarda desta diversidade, as dificuldades de estruturas pequenas, e a importância das coproduções para estas estruturas. Ouvi-lo é pensar sobre todos estes temas: pensar no que acontece às escuras; ou no que não vemos, por estarmos ofuscados.
Desenhar a luz tem que ver com a forma como vemos: há jogos e desafios que queremos propor, há símbolos que a luz carrega, a luz, por vezes, dá identidade ao lugar e à hora. Mas, um pouco como Álvaro Siza sugere no Imaginar a Evidência (se quero fazer uma cadeira, antes de ela ser bonita, tem de ser uma cadeira), desenhar a luz é, não pode deixar de ser, reconhecer o nosso direito de ver. Iluminar a cena. Contrariar a escuridão total.
Imagem gerada por inteligência artificial com recurso ao Dall.E
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