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Entre Bach e o jazz: A viagem de Daniel Bernardes

Por

 

Pedro Mendes
26 de Junho de 2025

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Entre Bach e o jazz: A viagem de Daniel Bernardes

A música de Johann Sebastian Bach e o conceito de quodlibet são o ponto de partida para o novo projeto de Daniel Bernardes, uma abordagem ousada e inventiva que cruza a tradição barroca com a linguagem do jazz contemporâneo. Partindo de uma encomenda do Festival Around Classic, o pianista e compositor não se limita a recriar as partituras originais — transforma-as, justapõe-as e reinsere-as num contexto atual, explorando a politemporalidade e a improvisação para revelar novas dimensões sonoras.

A técnica do quodlibet, que assenta na combinação de melodias díspares, inspira aqui uma prática de colagem musical, em que corais e prelúdios de Bach ganham uma nova vida. O resultado não é uma simples homenagem, mas uma reinvenção crítica e pessoal, tão marcada pela reverência ao compositor barroco como pela irreverência necessária para levar a sua música a territórios inexplorados.

A interpretar esta visão, Daniel Bernardes junta-se a uma formação de excelência do jazz português: Ricardo Toscano (saxofone e clarinete), João Barradas (acordeão), Demian Cabaud (contrabaixo) e Joel Silva (bateria). O resultado é um diálogo vibrante entre passado e presente, escrito e improvisado, que dá a conhecer uma outra face de Bach e reafirma a vitalidade e atualidade do seu legado.

A escolha de Bach e o conceito de quodlibet são centrais para este projeto. Poderias explicar mais detalhadamente como o conceito de quodlibet se manifesta na tua abordagem à música de Bach neste álbum?

Quodlibet é uma forma musical em que são misturadas diferentes melodias — de origem profana ou religiosa — apresentadas em sequência ou em justaposição. Quando me foi feita a encomenda para este projecto, senti desde logo vontade de ir além da simples fórmula do arranjo. Ou seja, quis operar transformações mais profundas nas composições de Bach, justapondo diferentes peças, alterando o papel estrutural de alguns elementos — como, por exemplo, uma melodia que passa a assumir a função de linha de baixo — e utilizando certas composições para explorar um universo politemporal, em que dois ou mais tempos se fazem ouvir em simultâneo.

Mencionaste que "abordar a música de Bach num contexto Jazz é uma proposta, no mínimo, ousada". O que te motivou a aceitar este desafio e a explorar esta fusão específica?

Há várias motivações fortes que este convite espoletou. Diria que a primeira é a vontade de homenagear uma figura basilar da história da música tal como a conhecemos. Todos os alunos de música, numa cultura ocidental, contactam com a música de Bach em diversos contextos: seja na prática instrumental, no coro ou no treino auditivo, onde os seus corais são incontornáveis na aprendizagem da transcrição polifónica.

Pessoalmente, convivo com a música de Bach desde os meus primeiros tempos na música. Há cerca de um ano que tenho por hábito começar os meus dias com a leitura à primeira vista de um coral, seguida da sua rearmonização. Nos últimos anos, tenho vindo a explorar a politemporalidade — a sobreposição de duas ou mais correntes temporais — e confesso que, dada a idiossincrasia e a complexidade dos resultados que esta técnica potencia, é muito aliciante, para um compositor, partir de referências reconhecíveis pelo público e misturá-las com outros universos.

Bach equilibra como ninguém a dicotomia razão/emoção — ou, se quisermos, intelecto e sentimento. Era um arquitecto genial, como provam as suas fugas, e um improvisador ímpar, patente nos seus prelúdios. Um músico de jazz equilibra sempre estes dois polos: para sermos verdadeiramente livres a improvisar, temos de dominar profundamente os materiais basilares da música — ritmo, melodia, harmonia, entre outros. Procuramos constantemente expandir a nossa zona de conforto nestes domínios para não sermos limitados pelas nossas próprias lacunas no momento de fazer música.

Há muitos paralelismos entre a prática harmónica nos teclados do período barroco e a do jazz: encontramos processos muito semelhantes, embora com conteúdos e vocabulários distintos.

Outro aspecto fundamental deste projecto foi a carta branca que me foi dada, a mim e ao Ricardo Toscano, para escolher a banda com que queríamos tocar. No jazz — e sobretudo num quinteto — cada músico empresta a sua história ao disco que estamos a criar. É certo que concebi os arranjos e a estrutura do disco, mas cada elemento da banda contribuiu com a sua visão e o seu som. Por isso, optámos por lançar este trabalho em nome colectivo.

Fernando Pires de Lima nas notas do disco refere que “o músico de jazz procura muitos caminhos diferentes para se expressar, e encontra certamente várias razões – não faltam – para se interessar pela música de Bach”. Quais foram as tuas principais razões e descobertas ao mergulhares na obra de Bach para este projeto?
Uma influência importante para o conceito do disco foram as artes visuais, toca-me particularmente o trabalho do João Pombeiro e do Travassos, este último autor do trabalho gráfico do disco. O Pombeiro e o Travassos são visionários, mestres da colagem, e procurei imaginar de que forma poderia obter um resultado semelhante ao longo da narrativa do disco — misturando influências que vão do minimalismo à la Steve Reich, passando pelo piano de Brad Mehldau e com uma pitada (ou duas) de rock.

Penso que esta convivência de influências bastante distintas acaba por conferir ao disco uma estética peculiar, que coloca em causa uma certa noção de identidade estética — e eu gosto disso. Acho que vivemos num mundo feito de colagens, de identidades flutuantes...

O conceito de "reverência/irreverência" é destacado na tua descrição do projeto. Poderias elaborar sobre como equilibras esses dois aspetos – a reverência pela obra original de Bach e a irreverência de a transformar?
O universo da música erudita tende a cristalizar algumas figuras — e, inclusive, certas interpretações específicas de determinadas obras. Já tive óptimas sessões de argumentação a favor ou contra uma dada leitura de uma obra famosa. Aliás, é um “desporto” que adoro praticar — aprende-se imenso sobre música e sobre o outro.

Este enraizamento de certos performers ou paradigmas de interpretação conduz, por vezes, a uma visão dogmática da música e a uma ausência de questionamento do cânone. Há um vídeo maravilhoso do Glenn Gould em que ele destrói uma das últimas sonatas de Mozart, justificando cada passagem e substanciando uma argumentação que descreve aquela obra como música de segunda categoria… Aprecio este questionar do cânone. Acredito que deve ser inerente à prática artística — não como provocação reacionária, mas como uma curiosidade saudável que nos permite aprofundar a noção visão sobre para algo com centenas de anos, há também o efeito de projecção, portanto ao questionar determinada obra estamos também a questionar a nossa visão, e acredito que isso é vital para um artista.

Penso na música como uma aglomeração de elementos, como formas num quadro. Parece-me natural explorar a interação entre elementos, uns com séculos de existência e outros mais recentes. Sem pretensiosismo, acredito que Bach via a música da mesma forma. No fim do dia, são sons — e os significados que lhes atribuímos são projecções nossas, permeáveis a outros tempos e outras visões.

Talvez "irreverência" seja uma palavra forte, mas é nesse sentido que a entendo.

A técnica da colagem, inspirada nas artes visuais, foi fundamental para as tuas composições neste disco, utilizando fragmentos de diferentes peças de Bach. Podes descrever o processo de seleção e recombinação desses fragmentos?

O processo de escolha das peças de Bach foi puramente emocional, percorri grande parte do catálogo do mestre, muitas horas a ouvir o Glenn Gould, e deixei que o coração me falasse, depois foi uma questão de imaginar possíveis transformações... ficaram muitos esboços na gaveta...

Em "Phasing Collage", misturaste o coral "Nun komm, der Heiden Heiland" com o "Pequeno" Prelúdio em Dó menor, aplicando um efeito de phasing entre o piano e o acordeão. Como surgiu a ideia para esta combinação específica e qual o efeito pretendido?
O tipo de textura do pequeno prelúdio, em moto perpetuo, é muito idiomático da música para tecla e, se nos alhearmos do conteúdo harmónico, a base rítmica acaba por ser muito semelhante ao que assistimos no contexto da música mínima repetitiva tal como a Piano Phase de Steve Reich. Experimentei brincar com o pequeno prelúdio e gostei do som dos primeiros esboços  mas estava insatisfeito com a natureza estática da harmonia, muito frequente no minimalismo, e recorri à justaposição para resolver este problema.

No arranjo do Largo do Concerto n.º 5 para teclado e orquestra, utilizaste o conceito de politemporalidade. Como funciona essa técnica e o que ela adiciona à atmosfera da peça?

Nerd alert! A politemporalidade na música foi explorada por compositores como Charles Ives, Conlon Nancarrow, György Ligeti, entre outros. Para parafrasear Ligeti,  a politemporalidade consiste na sobreposição de duas ou mais correntes temporais, isto significa que posso ter uma música a 60 batimentos por minuto a coexistir com outra a 100 — ou com uma diferença mais subtil, como 60 e 63 — o que provoca um desfasamento temporal. Este fenómeno dá, aliás, nome às peças de fase (phasing) de Steve Reich.

O tempo é uma das variáveis mais fundamentais da música. Concretizando um pouco e tomando por exemplo um padrão rock de bateria, observamos um conjunto de subdivisões simples, múltiplos de um determinado tempo/bpm. Quando envolvemos a politemporalidade, estamos a paralelizar esta teia de relações em duas ou mais correntes, estamos a justapor diferentes músicas simultaneamente. Uma boa analogia seria a técnica de split-screen no cinema, onde nos são mostradas duas cenas em simultâneo, cada uma com o seu ritmo e arco narrativo.

No arranjo do Largo, interessou-me o jogo de colocar o piano num plano temporal distinto do resto da banda. A linha do piano só se encontra com a do grupo em ciclos de cerca de 30 segundos, e  dentro destes ciclos, os arpejos do piano vão acelerando e desacelerando, o que cria "conflitos" com a métrica imposta pela melodia. Há momentos em que o nosso ouvido percebe o “chão” (a sensação de tempo forte) no clarinete, e outros em que o localiza no piano. Estas ilusões perceptivas são fascinantes para mim. E, aproveitando o facto de se tratar de uma melodia conhecida, pude arriscar bastante no piano.

O resultado é uma sensação de que o piano paira sobre a banda — por vezes relacionando-se com ela, outras vezes habitando o seu próprio universo temporal...

 

O Quodlibet Quintet é formado por cinco nomes sonantes no jazz português. Como foi o processo de reunir além de ti no piano, Ricardo Toscano (saxofone e clarinete), João Barradas (acordeão), Demian Cabaud (contrabaixo) e Joel Silva (bateria) para este projeto?

Foi uma escolha a dois com o Ricardo Toscano e foi maravilhoso porque já nos conhecíamos todos muito bem mas nunca tínhamos tocado os cinco em conjunto o que para mim é óptimo. Acho que a beleza dos primeiros encontros cria algo de especial numa música com esta natureza improvisada, quero sempre gravar os amores à primeira vista e isso passa por ensaiar pouco, por levar para o disco o acto de nos estarmos a conhecer enquanto grupo. No fundo como uma bela conversa de café entre um grupo que ainda não tinha interagido, quando corre bem potencia uma química muito espontânea e estimulante. Depois há também a excitação de tocar aquela música a primeira vez, o que se ouve no disco foi o nosso segundo dia a tocarmos juntos e eu gosto dessa frescura nesta forma de estar na música...

 

Como é que a individualidade e a experiência de cada músico do quinteto, como a ligação de Ricardo Toscano ao bebop, a experiência de João Barradas tanto no jazz quanto na música erudita, e a solidez da secção rítmica com Demian Cabaud e Joel Silva, contribuíram para a sonoridade final do álbum?

Acho que não é exagero chamá-la de uma all-stars band — estamos perante referências incontornáveis nos seus instrumentos.

O Ricardo Toscano é um monstro do saxofone. Já tinha escrito para ele em clarinete no meu disco Crossfade Ensemble e conhecia bem a profundidade da sua expressão nesse instrumento. Penso que a segunda coisa que lhe perguntei foi se alinhava em tocar um tema ao clarinete. Não demorou a dizer que sim — e eu não demorei a perceber qual seria o tema: uma interpretação de Glenn Gould, cuja ornamentação e fraseado transcrevi nota por nota para clarinete.

O João Barradas é um músico extraordinário. Alia a um domínio ímpar do acordeão um sentido estético que prezo imenso. Enquanto autor, é por vezes difícil distanciar-me da música que escrevo, e confio cegamente no instinto do João para encontrar mundos novos nas coisas que escrevi.

O Demian impressiona-me pelo timbre — adoro o som que retira do contrabaixo. Pedi-lhe, relativamente cedo no processo, que olhasse para a secção inicial da Partita VI em mi menor com vista a criar uma longa introdução para contrabaixo solo, improvisando com base em material da peça. Foi a primeira coisa que gravámos no segundo dia de estúdio. Ele fez três takes, mas o primeiro já estava perfeito — e foi esse que ficou.

O Joel Silva foi o baterista com quem cresci. Muitas vezes, tenho a sensação de que ele sabe o que vou fazer antes mesmo de se tornar claro para mim. Sinto sempre uma simbiose única quando tocamos juntos. Para além dessa química na nossa interação musical, tem uma sensibilidade rara — como comprova o seu trabalho como produtor — e recorro muitas vezes a esse seu talento quando não encontro...

O álbum é resultado de uma encomenda do Festival Around Classic. Como é que essa encomenda influenciou ou moldou a direção criativa do projeto?

Da melhor forma possível: uma carta branca. Fui convidado enquanto compositor e o Ricardo Toscano enquanto solista. A partir daí, decidimos em conjunto a banda com que queríamos trabalhar, e tive rédea solta para definir o conceito do disco, bem como o repertório de onde partiria.

É uma forma de estar perfeita para mim, pois permite que todo o processo seja guiado por reações afetivas e pela imaginação. Estudar composição implica analisar estratégias e processos de outros, assimilá-los até que se tornem formas de operar inconscientes e espontâneas. Não quero pensar em regras, nem em maneiras de "dar a volta" a uma composição. Se me puder envolver emocionalmente com o material, esse processo faz-me voar.

Quando, porventura, não consigo criar essa ligação afetiva com a música, o processo torna-se muito mais auto-consciente — o que também é uma aprendizagem valiosa. Mas, pessoalmente, prefiro ser arrebatado por música que me tira do sério,  do palpável...

Além das influências de Bach, Fernando Pires de Lima sugere que se pode vislumbrar no disco elementos de Steve Reich, Brad Mehldau ou Glenn Gould. Confirmas essas influências e haveria outras que gostarias de mencionar?

Acho que, pela dimensão da politemporalidade, este é um disco que afirma uma postura de exploração que absorvi de compositores como Charles Ives, Henry Cowell ou mesmo Karlheinz Stockhausen. Apesar de nos situarmos em universos sonoros completamente distintos, foram criadores que investigaram a natureza das coisas a um nível muito profundo — e encontraram mundos novos dentro de um universo musical já de si extremamente rico.

Ao longo da minha carreira, tenho procurado uma originalidade que nasce do cruzamento de técnicas e estéticas diferentes. Interessa-me aplicar abordagens herdadas de uma certa forma de estar na música a contextos completamente diferentes. É esse diálogo entre linguagens, essa procura constante, que mais me estimula.

Quais são as tuas expectativas para a receção do álbum e do concerto ao vivo, especialmente considerando a proposta de dialogar Bach com o jazz contemporâneo?

Ainda não perdi uma certa ingenuidade infantil de acreditar que o próximo disco vai abalar a realidade tal como a conhecemos... A verdade é que, se não estiver em êxtase ao trabalhar num novo projecto, para quê avançar?

Ter a liberdade de criar, misturando referências com algum grau de popularidade e técnicas de composição mais complexas, é uma amálgama que me estimula imenso. Sentir que estes ímpetos pessoais encontram eco nos músicos e no público é, para mim, uma fonte profunda de realização artística.

Existem planos para levar este projeto a outros palcos ou desenvolver novas explorações da música de outros compositores no futuro?

Sim, estamos a trabalhar na divulgação do projecto e na digressão de apresentação para 2025-26, e tenho a certeza de que o projecto fará bastante caminho.

Ao longo dos últimos anos, tenho-me dedicado intensamente à criação a partir de objectos pré-existentes — seja música de outros compositores, como em Beethoven... Reminiscências ou Liturgy of the Birds, dedicado a Olivier Messiaen; seja a partir de outras formas artísticas, como nos filmes do João Botelho ou em City of Glass, inspirado em Paul Auster.

Este diálogo com outras obras é algo que me estimula profundamente, e por isso imagino que continuarei a desenvolver projectos de natureza semelhante no futuro… veremos!

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