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Entre o mito e o meme: conversa com Odete

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COFFEEPASTE / Pedro Mendes
4 de Junho de 2025

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Entre o mito e o meme: conversa com Odete

Mais de dois mil anos após a estreia de Thesmophoriazusae, de Aristófanes, a artista e investigadora Odete devolve esta comédia clássica ao palco com uma nova urgência. As Mulheres que Celebram as Tesmofórias, em cena no Teatro Nacional D. Maria II de 11 a 15 de junho de 2025, não é apenas uma reescrita contemporânea - é uma convocatória radical à reflexão sobre linguagem, poder e identidade numa sociedade em colapso.

Fruto de três anos de investigação no âmbito do projecto europeu STAGES, a peça propõe-se como uma “arqueologia experimental” e constrói uma assembleia caótica onde se debate o futuro da retórica política, a partir da margem. Neste novo Tesmofórion, o riso é nervoso, parasítico, e o alvo da tensão discursiva são, mais uma vez, os corpos trans - ora acusados de radicalismo, ora usados como pretexto para manter tudo igual.

Nesta conversa, Odete fala sobre o processo criativo, as influências que atravessam a peça, e as escolhas formais e políticas que moldaram esta “para-tragédia” onde o meme português encontra o teatro grego - e onde a comédia serve para revelar, e não suavizar, o absurdo do presente.

Descreves As Mulheres que Celebram as Tesmofórias como uma "arqueologia experimental". Como é que este conceito se concretiza em cena e que papel tem na relação com o passado e com o presente?

A ideia de uma arqueologia experimental foi importante no início do processo, quando era necessário perceber a peça original do Aristófanes. Não é que eu seja a maior defensora de respeitar textos clássicos, mas havia algo no original que estava completamente datado.

Referências, piadas, conceitos que já não são entendíveis se não formos peritos naquele período ou se não tivermos notas de tradutor e editor. E isso interessou-me. Porque muitas coisas envelheceram mal, sobretudo o humor de há milénios atrás. E queria desenhar com esse pó. Quanto à maneira como se concretiza em cena: foi sobretudo um jogo visual e linguístico de atualizar referências e de encontrar equivalentes que conseguissem completar o puzzle das intenções da peça. 

 

Escolheste uma peça clássica para falar de temas muito actuais. O que te interessou na Thesmophoriazusae, de Aristófanes, e como foi o processo de a reescrever para um contexto contemporâneo?

Sinto que não escolhi a peça. Que a peça me escolheu. Já não sei porque que caminhos me deparei com a peça na mão há uns anos atrás e, na minha tentativa de encontrar encenações dela, acabei por perceber que não haviam encenações porque a peça era o horror.

Homofóbica, transfóbica, misógina, etc. O humor ali era uma desculpa para o ódio, ou vice versa. E isso sim, lembrou-me muito todos os humoristas que ficam indignados com ideias de politicamente correto e de já não poderem gozar "livremente" hoje em dia. Então decidi revelar Aristófanes como esse humorista de podcast quase, coitadinho. De revelar que o humor dele é herdado como aliado de uma estrutura política que considera uns em prol de outros. E o processo foi sobretudo sublinhar essa minha visão do humor e julgar (sim, julgar) a minha própria vontade de encenar o problema. 

 

No centro da peça está uma pergunta provocadora: queremos integração num sistema falido ou procurar outro caminho? Como é que essa dúvida se reflecte nas escolhas cénicas, no texto e nas personagens?

Acho que se reflete sobretudo no formato de assembleia. No original as personagens femininas também usam do "debate" enquanto modo discursivo para colocar certos problemas em cena, sendo que o Aristófanes as faz dizer um monte de absurdos com o intuito de fazer rir. Porque o próprio conceito, para ele, de mulheres a debater política é risível. Esse é o centro cómico da peça. O que, hoje em dia, é completamente impensável. Pelo menos para as pessoas à minha volta. Sei que para muito homem ainda é uma ideia ridícula. Quanto à pergunta em si, creio que o arco narrativo da personagem principal vai apontando caminhos para possíveis respostas. Sobretudo na relação com as personagens femininas que debatem  entre si. Mas também não quero dar spoilers!

 

A peça inscreve-se numa realidade onde a linguagem e o poder estão em disputa. Que relação propões entre retórica, política e representação de género neste espectáculo?

A relação entre retórica, política e representação de género é o centro do debate. Há uma insistência no poder discursivo, na ideia de quem domina o discurso domina a política. E, neste caso, o humorista que elas estão a pensar matar ou não é o dono da retórica e elas precisam de perceber se só a morte dele trará a vitória delas. Porque elas sabem que um homem que "fale bem" é um homem populista e sedutor porque já tem toda uma história e estrutura social que lhe dá o empurrão. E se não dá para alterar a estrutura do dia para a noite, o dilema delas é que talvez dê para alterar a vida dele do dia para a noite. Fala-se muito na peça, elas passam o tempo a tentar perceber que palavras usar, que coisas dizer de forma a tomarem uma decisão ponderada. Ainda que a própria decisão pareça excessiva e irracional. Elas sabem que se o matarem também serão vistas de determinada forma e que isso terá impacto na sua luta política.

 

O grupo trans surge como alvo simbólico das falhas do sistema - tanto vilanizado como instrumentalizado. Que urgência sentiste em tratar essa ambivalência em cena?

Nos últimos 2 anos tornou-se muito claro que mulheres trans são os bodes expiatórios da política atual. Mulheres trans e imigrantes. Não tenho tempo e espaço aqui para traçar a história do porque é que isto aconteceu (na verdade foi a minha tese de mestrado), mas a urgência vem daí. De perceber como é que a direita nos usou, mas também como é que a esquerda nos instrumentalizou e de como tanto um lado como outro forma puxando por nós como bandeiras quer de uma coisa quer de outra. Sendo que nós só queríamos mesmo viver a nossa vida. E atenção, eu sou uma mulher de esquerda sem pudor nenhum. Mas a verdade é que nos últimos tempos fomos erguidas por todo o espectro político e isso revelou-se fatal. E como a minha relação com essa visibilidade é, como dizes, ambivalente, decidi colocá-la em cena.

 

A peça descreve-se como uma "para-tragédia" onde a comédia se torna parasítica de algo que não tem nada de risível. Como trabalhaste essa tensão entre o riso e o desespero, entre o humor viral e a crítica social?

Foi simples. Foi quase dividir o humor do Aristófanes e o meu humor. Um humor antigo e um humor contemporâneo. Perceber o que não envelheceu bem e aquilo que precisava de "vampirizar" o presente. E nessa tensão surgiu a "para-tragédia", em que estamos a discutir coisas muito sérias mas lá vem o humor de Aristófanes tentar fazer uma piadinha qualquer.

 

Trabalhaste com artistas como Puta da Silva, Tita Maravilha, Cru Encarnação e Ângelo Custódio. Que lugar tiveram essas colaborações na construção da peça - a nível dramatúrgico, performativo ou ideológico?

As personagens foram escritas para estes intérpretes, tendo em conta os seus caminhos e as suas formas de performar. Por isso eles já estavam desde o inicio, mesmo antes dos ensaios. Fazem parte das células da peça. Quanto ao nível performativo, são corpos todos eles diferentes com capacidades diferentes e acho que a cena ela depende também dessa diferença. Ou seja, a encenação ela vem colada à maneira como cada pessoa pisa no palco. Ideologicamente, são tudo pessoas LGBT, e era importante que para mim fossem pessoas cujos debates feitos em cena fossem debates que carregamos todos os dias.


Que elementos cénicos (som, figurino, luz, texto) consideras mais importantes para criar a assembleia caótica que referes? Como foi dar forma a essa cacofonia?

Acho que o único elemento cénico é um microfone. É a única cenografia e também o mote para o caos. Só pode falar uma de cada vez, por isso imagina!

 

Desde Matrafona até este espectáculo, a tua obra tem sido marcada por uma crítica à história dominante e às estruturas de poder. Como é que sentes que esta peça prolonga - ou transforma - essa linha de trabalho?

Esta peça facilita o diálogo, creio. É a peça em que mais se dizem coisas explicitamente políticas. Há personagens muito claramente militantes, e outras que ainda se estão a descobrir. É uma peça que diz tudo de forma literal, quase. Sem medo. Abusa da insistência em algumas coisas, explica demais, grita palavras de ordem, etc. Por isso, sinto que é um desvio do meu trabalho habitual para falar de coisas a pessoas que talvez nunca tenham ido e nunca voltem a ver algo meu.

 

Que temas, formas ou histórias gostarias de continuar a explorar no futuro? Há algo que este projecto te tenha revelado e que queiras aprofundar?

Acho que se tornou claro para mim que o Teatro é a minha arte. É onde posso explorar tudo aquilo que fui aprendendo pelo meu caminho. Posso fazer música, escrever, construir cenários, roupas, ocupar o palco, fazer coreografias, maquilhagens, vídeos, etc. Sempre tive muito medo de voltar ao teatro porque aprendi que não era para mim. Mas estava errada. Volto ao teatro cheia de força. E por muito que queiram, não me pararão.

Foto: © Filipe Ferreira

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