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“Gato Fantasma Anzu” é uma daquelas obras raras que desafiam fronteiras - entre tragédia e comédia, entre o real e o fantástico, entre imagem e animação. Realizado por Yôko Kuno e Nobuhiro Yamashita, o filme adapta o mangá de Takashi Imashiro, transformando-o numa viagem delicada e poética sobre a perda, o reencontro e a amizade improvável entre uma rapariga e um gato-fantasma.
Filmado em imagem real e redesenhado através da rotoscopia, “Gato Fantasma Anzu” combina a doçura dos contos de fadas com um realismo emocional pouco comum na animação. Após a estreia mundial na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes 2024, o filme chega agora às salas portuguesas, convidando o público a mergulhar num universo onde até o Inferno pode ter a banalidade de um escritório.
Nesta conversa com o Coffeepaste, Yôko Kuno fala sobre o equilíbrio entre tragédia e comédia, os desafios da rotoscopia, a criação das personagens Karin e Anzu, e a surpreendente receção internacional desta sua primeira longa-metragem animada.
O filme é descrito como oscilando entre a tragédia e a comédia. Como equilibraste essas mudanças de tom, sobretudo nas cenas que envolvem luto ou perda?
O equilíbrio entre tragédia e comédia reflete fortemente a sensibilidade do argumentista Shinji Imaoka. De certo modo, ambas as emoções partilham a mesma temperatura – os momentos trágicos não são excessivamente enfatizados –, o que, de forma positiva, cria um tom que soa refrescantemente “diferente da animação típica”.
O motor central da história é o desejo de Karin de voltar a ver a mãe falecida. O que te atraiu nesse núcleo emocional e como o moldaste através das personagens de Karin e Anzu?
No mangá original, Anzu é a personagem principal e a história é uma comédia de vida quotidiana. Para a adaptação cinematográfica, introduzimos uma personagem original – Karin.
Anzu é caprichoso, despreocupado e sem pretensões, mas não é particularmente proativo. Por isso, imaginámos o seu oposto: uma rapariga que raramente expressa as suas emoções, parece carrancuda, mas alberga um desejo profundo e silencioso – assim nasceu Karin.
O realizador Yamashita e o argumentista Imaoka sempre adoraram a rapariga adolescente melancólica interpretada por Tomoko Tabata no filme em imagem real Moving (Ohikkoshi, 1993), e essa personagem também influenciou a criação de Karin.
Falas em combinar “a doçura de um conto de fadas com um realismo mais avançado do que o da imagem real tradicional”. Podes desenvolver essa ideia e explicar como orientou as decisões criativas?
Quis aproveitar o melhor da animação e da imagem real. As interpretações e o ritmo dos atores reais conferem credibilidade a um ser como Anzu, mas se o tivéssemos filmado apenas em imagem real, ele seria ou uma pessoa mascarada ou uma criatura em CGI – o que criaria uma clara distância em relação às personagens humanas.
A rotoscopia permitiu-nos alcançar ambos os efeitos: personagens que parecem animadas, mas que sentimos poder existir mesmo ao nosso lado.
Ao redesenhar as filmagens, dedicámo-nos a traduzir as interpretações dos atores em animação, mantendo o realismo emocional genuíno.
A narrativa leva Karin e Anzu ao “Inferno” na tentativa de reencontrar a mãe de Karin. Quão literal ou metafórica é a tua conceção de “Inferno” no filme, e o que representa na narrativa?
É bastante literal. No budismo, até matar um simples inseto pode condenar alguém ao Inferno, e acredita-se que a maioria das pessoas para lá vai após a morte. Aplicámos essa visão no filme, pelo que o Inferno não é um lugar particularmente especial – a mãe de Karin está lá, simplesmente, e os demónios vivem vidas banais, quase como trabalhadores de escritório.
A produção usou rotoscopia, filmando em imagem real e redesenhando fotograma a fotograma. Quais foram os maiores desafios em traduzir a ação real para animação sem perder autenticidade emocional?
No caso das personagens humanas, foi relativamente fácil transportar as nuances faciais dos atores. Mas Anzu, sendo um gato, foi muito mais difícil. No mangá original ele é bastante inexpressivo e não tem sobrancelhas. Acabámos por decidir dar-lhe pequenas rugas na testa, que funcionam como uma espécie de “substituto das sobrancelhas”, ajudando a transmitir melhor as suas emoções.
Sendo esta a tua primeira longa-metragem animada em colaboração, como é que a tua experiência anterior com animação rotoscópica influenciou a abordagem e que novas lições surgiram?
A minha primeira experiência com rotoscopia foi em The Case of Hana and Alice (2015), de Shunji Iwai. Ao início, pensei que a técnica seria simples – apenas traçar sobre as imagens reais –, mas percebi rapidamente como é difícil decidir que partes da atuação de um ator manter ou eliminar.
Comparadas com personagens de anime, as pessoas reais movem-se com menos contraste, por isso, se as desenharmos tal como são, a animação pode parecer sem vida – mesmo que a interpretação seja interessante.
Em Gato Fantasma Anzu, concentrei-me em dar um ritmo claro aos movimentos – mover decisivamente quando se move e pausar com precisão quando se pára – para que a animação mantivesse a vivacidade do anime sem perder as nuances da imagem real. Como muitos planos do filme são longos, estive especialmente atenta a este sentido de ritmo e contraste.
És conhecido sobretudo pelo trabalho em imagem real. Como é que o teu instinto de realizador se adaptou ao trabalhar num formato híbrido ou animado, e que princípios trouxeste do cinema em imagem real?
(resposta por Nobuhiro Yamashita)
Um aspeto distintivo da rotoscopia é que temos oportunidade de realizar o filme uma segunda vez, através da animação, depois da rodagem. Raramente uso storyboards detalhados, mesmo nos filmes em imagem real, por isso, também desta vez, filmámos primeiro as interpretações e depois, na montagem, planeámos os cortes em conjunto com a Kuno, já a pensar na animação.
A animação tradicional tende a ter cortes muito mais curtos do que as obras em rotoscopia, provavelmente por eficiência ou ritmo. Mas, como demos prioridade ao fluxo natural da interpretação, os nossos planos muitas vezes duravam 30 ou 40 segundos. Mesmo em cenas simples, como uma personagem a caminhar, poderíamos tê-las fragmentado, mas preferimos dar tempo e mostrar o momento por inteiro. Como a animação foi criada traçando imagens reais, o nosso sentido de tempo é provavelmente diferente do da animação convencional. Acredito que este ritmo mais lento ajuda a ancorar o realismo das personagens, tornando a sua presença mais convincente.
Anzu, como gato-fantasma gigante, é “bem-disposto e cooperante, mas caprichoso”, enquanto Karin se rebela contra o seu destino. Como encontraste um ponto intermédio para que as suas personalidades colidissem mas criassem um vínculo significativo?
Como referi antes, Karin e Anzu são opostos completos, por isso encontrar o equilíbrio no argumento foi difícil – houve muitas discussões entre o realizador, o argumentista e os produtores.
No fim, foi Mirai Moriyama, que interpreta Anzu, quem encontrou esse equilíbrio. A sua interpretação captou algo que não é nem paternal nem puramente amigável, mas uma ligação silenciosa e gentil entre um humano e um gato que simplesmente partilham o mesmo espaço.
Ao adaptar Gato Fantasma Anzu, de Takashi Imashiro, que elementos do material original consideraste essenciais preservar, e onde sentiste liberdade para divergir?
Como o título é Gato Fantasma Anzu, preservar a personalidade e a presença de Anzu era essencial. Por outro lado, desde que ele permanecesse no centro da história, senti liberdade para mudar o cenário para a cidade ou acrescentar sequências de ação mais dinâmicas.
O filme apresenta uma pequena aldeia habitada por espíritos. Como concebeste o mundo espiritual e que referências culturais ou estéticas usaste?
Mantivemos basicamente os designs dos espíritos (yokai) tal como aparecem no mangá original. O filme inclui uma variedade de espíritos, mas os seus visuais não se baseiam nas figuras folclóricas mais conhecidas do Japão. Têm um aspeto algo desajeitado e tosco em comparação com os famosos, o que se torna num elemento humorístico para o público japonês.
O filme tem 97 minutos de duração. Houve decisões difíceis sobre o que omitir ou condensar na narrativa? Que cenas custou mais eliminar?
Originalmente existia uma cena de despedida entre Karin, Anzu e o Deus da Pobreza. Era uma cena noturna em Tóquio, onde o invisível Deus da Pobreza chamava por Karin, dizendo: “Estás aí? Obrigado por hoje”, antes de desaparecer na cidade.
Era uma cena emocionalmente bela, mas enfraquecia o impacto dos momentos seguintes entre Karin e Anzu. No final, decidimos deixar o Deus da Pobreza bem mais cedo, durante a sequência do Inferno.
O filme foi selecionado para a Quinzena dos Realizadores de Cannes 2024 e também exibido em Annecy. Como reagiram o público e a crítica nesses contextos, e esse feedback influenciou a tua reflexão sobre montagem ou distribuição?
Ser convidada para a Quinzena dos Realizadores logo após a conclusão do filme foi uma enorme honra e deu-lhe visibilidade internacional. Senti-me profundamente grata por a minha primeira longa-metragem animada ter recebido tantos convites de festivais.
Tive oportunidade de participar em vários festivais e ver o filme com públicos de todo o mundo, e o que me surpreendeu foi como as reações foram semelhantes entre países – riam e choravam nos mesmos momentos que o público japonês. Ouvi frequentemente que, em muitas animações japonesas, as reações variam bastante consoante o país, mas Gato Fantasma Anzu não mostrou essa diferença. Não sei se isso é bom ou mau, mas fez-me sentir que este filme é realmente uma obra curiosa.
Sendo uma coprodução japonesa-francesa que chega agora às salas portuguesas, o que esperas que o público português retire do filme, especialmente quem talvez não esteja familiarizado com a animação japonesa ou com a rotoscopia?
Embora o filme use rotoscopia, a história em si não é nada difícil. Espero simplesmente que o público a desfrute como um conto de verão, sem preconceitos.
E se depois ficarem curiosos, adoraria que vissem os bastidores ou as filmagens em imagem real disponíveis no YouTube – é aí que podem realmente apreciar o encanto e a profundidade da técnica da rotoscopia.
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