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Entre o campo e o código, o Museu Zer0 ergue-se em Santa Catarina da Fonte do Bispo como um lugar singular: onde os antigos silos agrícolas da cooperativa local se transformam num centro de arte digital vivo, experimental e profundamente ligado ao território. A sua abertura marca um momento decisivo para o panorama cultural português — um gesto que liga o passado rural à inovação tecnológica e à reflexão contemporânea sobre arte, comunidade e sustentabilidade.
Conversámos com Fátima Marques Pereira, programadora geral da abertura do Museu Zer0, sobre esta metamorfose entre tradição e futuro, o papel das residências artísticas, a importância da hospitalidade criativa e o desejo de fazer da arte digital uma experiência humana e partilhada.
O Museu Zer0 nasce da transformação de antigos silos agrícolas num centro de arte digital. Como é que este diálogo entre passado rural e futuro tecnológico influencia a identidade do projeto?
O Museu Zer0 nasce num lugar carregado de memória - na antiga Cooperativa Agrícola de Produtores de Azeite de Santa Catarina da Fonte do Bispo (CAPA) -, particularmente nos antigos silos, e transforma essa herança rural, simbólica e social num espaço de criação e produção artística, centrado na arte digital, sem abdicar do conhecimento. Passamos do armazenamento do cereal, maioritariamente trigo, para o armazenamento do pensamento, da criação e da produção artística. Esta passagem, para mim, não é apenas poética, é também reveladora do ADN do Museu. O diálogo entre o passado rural e o futuro tecnológico, sempre em aberto aos diferentes desafios contemporâneos, não é meramente formal ou arquitetónico, é um princípio conceptual. No Museu Zer0, o digital não apaga o rural, amplia-o, transforma-o, reconfigura-o, inova-o, liberta-o. A arte digital é usada como linguagem para revisitar o território, a memória e a identidade do lugar. É desse cruzamento entre história e inovação, natureza e algoritmo, que o Museu Zer0 constrói a sua singularidade, um espaço onde o tempo é metamorfose, onde o futuro se escreve a partir da terra, do cereal, das máquinas e das pessoas.
Dizes que “no Museu Zer0, cada projeto não se visita, vive-se”. Podes explicar melhor o que significa esta experiência imersiva e como se diferencia de um museu tradicional?
Quando digo que “no Museu Zer0, cada projeto não se visita, vive-se”, refiro-me a uma mudança de paradigma em relação ao museu “tradicional”. Aqui, o público não é mero espectador, é parte do processo. O Museu Zer0 é um organismo vivo, em que cada proposta artística se constrói a partir da experiência, da escuta e do envolvimento direto com o espaço e com o território.
As obras não se limitam a ser expostas: habitam o edifício, ocupam os silos, transformam a arquitetura e não só se envolvem, como também surpreendem o visitante num diálogo sensorial e cognitivo. A arte digital, enquanto território de fusão entre imagem, som, espaço e interação, permite essa dissolução das fronteiras entre o real e o virtual. Cada projeto é, por isso, uma experiência diferente, que se atravessa, e que nos atravessa de múltiplas formas, por exemplo: com o corpo, com o pensamento, num ato de criação artística ou de cocriação entre artistas, comunidade, tecnologia e público.
Cada museu tem o seu propósito e o seu espaço, muitos, pela sua própria tipologia, preservam a distância entre a obra e o visitante. O Museu Zer0, pelo contrário, procura um modelo de aproximação, quer ser um lugar de experimentação, de partilha e de descoberta, onde o digital é apenas o ponto de partida para uma experiência profundamente humana, onde a arte é o vórtice.
A programação de abertura inclui instalações, performances, vídeo mapping, concertos e experiências imersivas. Que critérios guiaram esta escolha e que atmosferas se pretende criar neste momento inaugural?
A Abertura do Museu Zer0 foi pensada pelo fundador Paulo Teixeira Pinto e por mim em dois momentos complementares: o primeiro, a 27 de setembro, e o segundo, a 18 de outubro. Entre estes dois tempos, dois gestos, o Museu permanecerá aberto ao público em plena produção, montagem e criação. Este intervalo não é um tempo “morto”, mas um tempo de movimento, de construção partilhada, um espaço vivo, em que escolas, instituições e visitantes puderam acompanhar bastidores, conhecer artistas, dialogar com processos artísticos, descobrir como se constrói uma exposição, conversar com a programadora ou com o produtor executivo. Esta abertura progressiva afirma o compromisso do Museu Zer0 com a mediação cultural e a formação de públicos, mostrando que a arte é tanto o resultado como o percurso.
A programação artística da Abertura tem, propositadamente, uma densidade simbólica e uma força experiencial que refletem esta visão. Não quis (nem queremos) que se trate apenas de expor obras, mas de criar atmosferas, provocar deslocamentos e fundar vínculos. Cada proposta artística é um gesto inaugural que revela o ADN do Museu Zer0, um espaço artístico de diálogo, de experimentação, crítico, inclusivo, de transformação e projetado do seu território e lugar para fora — para o mundo — procurando, de forma equilibrada e sem deslumbramentos, parcerias e encontros noutros lugares, começando particularmente pela sua proximidade geográfica com Espanha, dando ainda maior corpo artístico à Península Ibérica.
As escolhas dos artistas e das obras refletem a diversidade de linguagens que tão bem caracteriza a arte digital. Vão desde a instalação à performance, ao vídeo mapping e às obras sonoras, revelando o digital como uma linguagem artística em constante procura, construção, experimentação e diálogo.
As atmosferas criadas neste II Momento foram pensadas a partir das conversas que tive com o Paulo Teixeira Pinto, com aquilo que o Paulo desejava ou deseja para o Museu Zer0, “uma espécie de oficina renascentista contemporânea”, e também com aquilo que eu própria senti quando aqui cheguei: o território, o lugar e a comunidade, sem nunca esquecer o mundo, os desafios contemporâneos e, naturalmente, a arte digital. Portanto, não querendo ser pretensiosa, entramos, se quisermos, em viagens que vão da perceção do imersivo ao íntimo, do coletivo ao contemplativo, do sonho ao questionamento, e até ao que cada um quiser olhar e sentir.
Gosto da ideia de abrir o espaço à curiosidade e à escuta, de surpreender o público num percurso onde cada sala, cada som e cada projeção ecoam o espírito do Museu Zer0, um lugar em permanente metamorfose, onde o futuro se constrói a partir do presente, um lugar de liberdade. De facto, interessa-me mais esta ideia do que apresentar simplesmente obras acabadas.
O Museu Zer0 assume-se como um espaço de “hospitalidade artística”. De que forma as residências e os processos de cocriação com artistas vão marcar a dinâmica futura do museu?
O Museu Zer0 assume a “hospitalidade artística” como um princípio essencial. As residências são, de facto, um verdadeiro “habitat”, não são apenas espaços de trabalho, mas territórios de encontro, partilha, bem-estar, reflexão e experimentação, onde cada artista é convidado a trabalhar com o território, com a comunidade, com o próprio tempo e com aquilo que conceptualmente entender. É nesse movimento de criação, cocriação e investigação que o Museu se reinventa continuamente, cada residência acrescenta um traço, uma ideia, um pensamento que se inscreve na sua identidade viva e em permanente transformação.
O território algarvio é colocado no centro da programação. Como é que o Museu Zer0 pretende envolver as comunidades locais e reconfigurar tradições, memórias e património através da inovação digital?
No Museu Zer0, o território não é cenário, é origem e destino. As residências e os projetos que desenvolvemos partem do Barrocal algarvio, do seu ritmo, das suas gentes, das suas práticas, para pensar e reinventar o modo como o digital se pode inscrever na memória e no futuro deste lugar. O diálogo faz-se com artistas, associações locais, escolas, artesãos, agricultores e diferentes grupos culturais, num processo de escuta, partilha e criação que valoriza tanto o saber-fazer tradicional como a experimentação contemporânea.
Um exemplo é o trabalho da Sonoscopia, que colabora com os Resistentes, grupo de música tradicional portuguesa de Santa Catarina da Fonte do Bispo, num projeto que cruza som, memória e tecnologia, abrindo novas possibilidades de leitura e de criação.
No Museu Zer0, a inovação digital não pretende substituir o passado, mas reconfigurá-lo, revelando novas camadas de sentido. O objetivo é transformar a herança em futuro, o local em universal, reforçando laços, competências e pertenças, sempre com o território no centro da experiência artística e humana.
Não havendo um acervo permanente, o museu aposta na produção contínua e colaborativa. Como se gere um modelo curatorial em constante movimento?
Como afirmou o fundador do Museu Zer0, Paulo Teixeira Pinto, “O Padre António Vieira escreveu no século XVII uma prodigiosa obra que tinha como título um paradoxo que era uma verdadeira contradictio in terminis: História do Futuro. Assim, também o Museu Zer0 não visa celebrar o passado, antes sim convocar o futuro. Porque, nas lapidares palavras de Paul Gauguin, ‘a arte ou é revolução ou plágio’. O que tanto vale para o pincel como para o pixel.”
O Museu assume exatamente essa condição, não tem um acervo fixo porque o seu propósito não é conservar o passado, mas convocar o presente e o futuro. A curadoria vive do risco, da experimentação e da permanente reinvenção. Cada projeto artístico nasce, transforma-se e deixa vestígios, um arquivo em movimento, feito de processos, de conceptualizações, trocas e encontros que se renovam continuamente.
Que impacto esperas que o Museu Zer0 tenha no panorama cultural português e na projeção internacional das artes digitais feitas em Portugal?
Sinceramente, espero o melhor para o Museu Zer0, que se afirme como um espaço de referência, capaz de marcar a diferença no panorama nacional, tanto ao nível da criação e da produção artística, como na produção de conhecimento em torno da arte digital, e nunca esquecendo que o funcionamento, o dia a dia do Museu é a sua vida. Essa diferença só pode nascer de uma prática quotidiana assente numa oficina viva, em constante movimento, investigação e partilha.
Desejo que o Museu Zer0 não se deslumbre com o excesso de espetáculo que, muitas vezes, rodeia a arte digital. Que cresça com consistência, atento aos desafios contemporâneos, fiel ao seu território, ao seu lugar, à sua comunidade e à sua identidade. Que não tenha pressa em “ser”, mas que amadureça com rigor, profundidade e sentido. Que se construa como um espaço centrado na experiência artística e humana, como referi anteriormente, onde o digital não é apenas uma ferramenta, mas uma forma de pensar o mundo.
O projeto tem também um alinhamento com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e com prioridades da União Europeia. Como é que esta dimensão política e estratégica se reflete na programação artística?
O alinhamento com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e com as prioridades da União Europeia não é apenas uma formalidade institucional, é uma dimensão ética e política que atravessa o próprio pensamento artístico do Museu Zer0. A programação reflete essa consciência, sustentabilidade, inclusão, transição digital, coesão territorial e diversidade cultural são temas que se traduzem em práticas concretas, em modos de produzir e de estar no mundo.
Acredito que os artistas têm também essa responsabilidade, a de pensar o seu tempo, de questionar os sistemas que habitam e de agir de forma proativa, crítica e sensível. O Museu Zer0 quer ser um espaço onde essas questões se tornam matéria de criação, onde a arte não ilustra políticas, mas propõe novas formas de as imaginar, de as pensar, de as refletir e de as viver.
O que mais desejas que o público leve consigo ao sair da abertura do Museu Zer0 - uma memória, uma pergunta, uma experiência transformadora?
Na realidade, não sei o que quero que o público leve da Abertura deste II Momento. Antes tinha muitas expectativas, continuo a trabalhar com a mesma força e dedicação, mas deixei de pensar no que quero que os outros levem, porque, na verdade, quero tudo, e não consigo, nem devo ter essa pretensão. Hoje sou mais recatada, embora não deixe de ter desejos.
O que eu mais desejo é que o público saia do Museu Zer0 com curiosidade, com vontade de voltar, de pensar e de sentir mais. Que se sinta bem e, talvez, até surpreendido. Que perceba que a arte digital pode ser profundamente humana, que pode aproximar e fazer pensar o mundo de outro modo.
Neste II Momento, o que realmente quero é ver a comunidade de Santa Catarina da Fonte do Bispo, o Algarve e todos os que vierem de fora, juntos, a viver arte digital, a conversar e a divertirem-se. Quero ver o Paulo Teixeira Pinto, os artistas e toda a equipa felizes por termos conseguido criar um lugar onde a arte, despojadamente, se encontra com as pessoas, um lugar onde a autêntica conquista é podermos pensar o que quisermos.
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