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Fátima Marques Pereira: “No Museu Zer0, o digital não apaga o rural, amplia-o”

Por

 

Pedro Mendes
17 de Outubro de 2025

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Fátima Marques Pereira: “No Museu Zer0, o digital não apaga o rural, amplia-o”

Entre o campo e o código, o Museu Zer0 ergue-se em Santa Catarina da Fonte do Bispo como um lugar singular: onde os antigos silos agrícolas da cooperativa local se transformam num centro de arte digital vivo, experimental e profundamente ligado ao território. A sua abertura marca um momento decisivo para o panorama cultural português — um gesto que liga o passado rural à inovação tecnológica e à reflexão contemporânea sobre arte, comunidade e sustentabilidade.

Conversámos com Fátima Marques Pereira, programadora geral da abertura do Museu Zer0, sobre esta metamorfose entre tradição e futuro, o papel das residências artísticas, a importância da hospitalidade criativa e o desejo de fazer da arte digital uma experiência humana e partilhada.

O Museu Zer0 nasce da transformação de antigos silos agrícolas num centro de arte digital. Como é que este diálogo entre passado rural e futuro tecnológico influencia a identidade do projeto?

O Museu Zer0 nasce num lugar carregado de memória - na antiga Cooperativa Agrícola de Produtores de Azeite de Santa Catarina da Fonte do Bispo (CAPA) -, particularmente nos antigos silos, e transforma essa herança rural, simbólica e social num espaço de criação e produção artística, centrado na arte digital, sem abdicar do conhecimento. Passamos do armazenamento do cereal, maioritariamente trigo, para o armazenamento do pensamento, da criação e da produção artística. Esta passagem, para mim, não é apenas poética, é também reveladora do ADN do Museu. O diálogo entre o passado rural e o futuro tecnológico, sempre em aberto aos diferentes desafios contemporâneos, não é meramente formal ou arquitetónico, é um princípio conceptual. No Museu Zer0, o digital não apaga o rural, amplia-o, transforma-o, reconfigura-o, inova-o, liberta-o. A arte digital é usada como linguagem para revisitar o território, a memória e a identidade do lugar. É desse cruzamento entre história e inovação, natureza e algoritmo, que o Museu Zer0 constrói a sua singularidade, um espaço onde o tempo é metamorfose, onde o futuro se escreve a partir da terra, do cereal, das máquinas e das pessoas.

 

Dizes que “no Museu Zer0, cada projeto não se visita, vive-se”. Podes explicar melhor o que significa esta experiência imersiva e como se diferencia de um museu tradicional?

Quando digo que “no Museu Zer0, cada projeto não se visita, vive-se”, refiro-me a uma mudança de paradigma em relação ao museu “tradicional”. Aqui, o público não é mero espectador, é parte do processo. O Museu Zer0 é um organismo vivo, em que cada proposta artística se constrói a partir da experiência, da escuta e do envolvimento direto com o espaço e com o território.

As obras não se limitam a ser expostas: habitam o edifício, ocupam os silos, transformam a arquitetura e não só se envolvem, como também surpreendem o visitante num diálogo sensorial e cognitivo. A arte digital, enquanto território de fusão entre imagem, som, espaço e interação, permite essa dissolução das fronteiras entre o real e o virtual. Cada projeto é, por isso, uma experiência diferente, que se atravessa, e que nos atravessa de múltiplas formas, por exemplo: com o corpo, com o pensamento, num ato de criação artística ou de cocriação entre artistas, comunidade, tecnologia e público.

Cada museu tem o seu propósito e o seu espaço, muitos, pela sua própria tipologia, preservam a distância entre a obra e o visitante. O Museu Zer0, pelo contrário, procura um modelo de aproximação, quer ser um lugar de experimentação, de partilha e de descoberta, onde o digital é apenas o ponto de partida para uma experiência profundamente humana, onde a arte é o vórtice.

 

A programação de abertura inclui instalações, performances, vídeo mapping, concertos e experiências imersivas. Que critérios guiaram esta escolha e que atmosferas se pretende criar neste momento inaugural?

A Abertura do Museu Zer0 foi pensada pelo fundador Paulo Teixeira Pinto e por mim em dois momentos complementares: o primeiro, a 27 de setembro, e o segundo, a 18 de outubro. Entre estes dois tempos, dois gestos, o Museu permanecerá aberto ao público em plena produção, montagem e criação. Este intervalo não é um tempo “morto”, mas um tempo de movimento, de construção partilhada, um espaço vivo, em que escolas, instituições e visitantes puderam acompanhar bastidores, conhecer artistas, dialogar com processos artísticos, descobrir como se constrói uma exposição, conversar com a programadora ou com o produtor executivo. Esta abertura progressiva afirma o compromisso do Museu Zer0 com a mediação cultural e a formação de públicos, mostrando que a arte é tanto o resultado como o percurso.

A programação artística da Abertura tem, propositadamente, uma densidade simbólica e uma força experiencial que refletem esta visão. Não quis (nem queremos) que se trate apenas de expor obras, mas de criar atmosferas, provocar deslocamentos e fundar vínculos. Cada proposta artística é um gesto inaugural que revela o ADN do Museu Zer0, um espaço artístico de diálogo, de experimentação, crítico, inclusivo, de transformação e projetado do seu território e lugar para fora — para o mundo — procurando, de forma equilibrada e sem deslumbramentos, parcerias e encontros noutros lugares, começando particularmente pela sua proximidade geográfica com Espanha, dando ainda maior corpo artístico à Península Ibérica.

As escolhas dos artistas e das obras refletem a diversidade de linguagens que tão bem caracteriza a arte digital. Vão desde a instalação à performance, ao vídeo mapping e às obras sonoras, revelando o digital como uma linguagem artística em constante procura, construção, experimentação e diálogo.

As atmosferas criadas neste II Momento foram pensadas a partir das conversas que tive com o Paulo Teixeira Pinto, com aquilo que o Paulo desejava ou deseja para o Museu Zer0, “uma espécie de oficina renascentista contemporânea”, e também com aquilo que eu própria senti quando aqui cheguei: o território, o lugar e a comunidade, sem nunca esquecer o mundo, os desafios contemporâneos e, naturalmente, a arte digital. Portanto, não querendo ser pretensiosa, entramos, se quisermos, em viagens que vão da perceção do imersivo ao íntimo, do coletivo ao contemplativo, do sonho ao questionamento, e até ao que cada um quiser olhar e sentir.

Gosto da ideia de abrir o espaço à curiosidade e à escuta, de surpreender o público num percurso onde cada sala, cada som e cada projeção ecoam o espírito do Museu Zer0, um lugar em permanente metamorfose, onde o futuro se constrói a partir do presente, um lugar de liberdade. De facto, interessa-me mais esta ideia do que apresentar simplesmente obras acabadas.

 

O Museu Zer0 assume-se como um espaço de “hospitalidade artística”. De que forma as residências e os processos de cocriação com artistas vão marcar a dinâmica futura do museu?

O Museu Zer0 assume a “hospitalidade artística” como um princípio essencial. As residências são, de facto, um verdadeiro “habitat”, não são apenas espaços de trabalho, mas territórios de encontro, partilha, bem-estar, reflexão e experimentação, onde cada artista é convidado a trabalhar com o território, com a comunidade, com o próprio tempo e com aquilo que conceptualmente entender. É nesse movimento de criação, cocriação e investigação que o Museu se reinventa continuamente, cada residência acrescenta um traço, uma ideia, um pensamento que se inscreve na sua identidade viva e em permanente transformação.

 

O território algarvio é colocado no centro da programação. Como é que o Museu Zer0 pretende envolver as comunidades locais e reconfigurar tradições, memórias e património através da inovação digital?

No Museu Zer0, o território não é cenário, é origem e destino. As residências e os projetos que desenvolvemos partem do Barrocal algarvio, do seu ritmo, das suas gentes, das suas práticas, para pensar e reinventar o modo como o digital se pode inscrever na memória e no futuro deste lugar. O diálogo faz-se com artistas, associações locais, escolas, artesãos, agricultores e diferentes grupos culturais, num processo de escuta, partilha e criação que valoriza tanto o saber-fazer tradicional como a experimentação contemporânea.

Um exemplo é o trabalho da Sonoscopia, que colabora com os Resistentes, grupo de música tradicional portuguesa de Santa Catarina da Fonte do Bispo, num projeto que cruza som, memória e tecnologia, abrindo novas possibilidades de leitura e de criação.

No Museu Zer0, a inovação digital não pretende substituir o passado, mas reconfigurá-lo, revelando novas camadas de sentido. O objetivo é transformar a herança em futuro, o local em universal, reforçando laços, competências e pertenças, sempre com o território no centro da experiência artística e humana.

 

Não havendo um acervo permanente, o museu aposta na produção contínua e colaborativa. Como se gere um modelo curatorial em constante movimento?

Como afirmou o fundador do Museu Zer0, Paulo Teixeira Pinto, O Padre António Vieira escreveu no século XVII uma prodigiosa obra que tinha como título um paradoxo que era uma verdadeira contradictio in terminis: História do Futuro. Assim, também o Museu Zer0 não visa celebrar o passado, antes sim convocar o futuro. Porque, nas lapidares palavras de Paul Gauguin, ‘a arte ou é revolução ou plágio’. O que tanto vale para o pincel como para o pixel.”
O Museu assume exatamente essa condição, não tem um acervo fixo porque o seu propósito não é conservar o passado, mas convocar o presente e o futuro. A curadoria vive do risco, da experimentação e da permanente reinvenção. Cada projeto artístico nasce, transforma-se e deixa vestígios, um arquivo em movimento, feito de processos, de conceptualizações, trocas e encontros que se renovam continuamente.

 

Que impacto esperas que o Museu Zer0 tenha no panorama cultural português e na projeção internacional das artes digitais feitas em Portugal?

Sinceramente, espero o melhor para o Museu Zer0, que se afirme como um espaço de referência, capaz de marcar a diferença no panorama nacional, tanto ao nível da criação e da produção artística, como na produção de conhecimento em torno da arte digital, e nunca esquecendo que o funcionamento, o dia a dia do Museu é a sua vida. Essa diferença só pode nascer de uma prática quotidiana assente numa oficina viva, em constante movimento, investigação e partilha.

Desejo que o Museu Zer0 não se deslumbre com o excesso de espetáculo que, muitas vezes, rodeia a arte digital. Que cresça com consistência, atento aos desafios contemporâneos, fiel ao seu território, ao seu lugar, à sua comunidade e à sua identidade. Que não tenha pressa em “ser”, mas que amadureça com rigor, profundidade e sentido. Que se construa como um espaço centrado na experiência artística e humana, como referi anteriormente, onde o digital não é apenas uma ferramenta, mas uma forma de pensar o mundo.

 

O projeto tem também um alinhamento com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e com prioridades da União Europeia. Como é que esta dimensão política e estratégica se reflete na programação artística?

O alinhamento com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e com as prioridades da União Europeia não é apenas uma formalidade institucional, é uma dimensão ética e política que atravessa o próprio pensamento artístico do Museu Zer0. A programação reflete essa consciência, sustentabilidade, inclusão, transição digital, coesão territorial e diversidade cultural são temas que se traduzem em práticas concretas, em modos de produzir e de estar no mundo.

Acredito que os artistas têm também essa responsabilidade, a de pensar o seu tempo, de questionar os sistemas que habitam e de agir de forma proativa, crítica e sensível. O Museu Zer0 quer ser um espaço onde essas questões se tornam matéria de criação, onde a arte não ilustra políticas, mas propõe novas formas de as imaginar, de as pensar, de as refletir e de as viver.

 

O que mais desejas que o público leve consigo ao sair da abertura do Museu Zer0 - uma memória, uma pergunta, uma experiência transformadora?

Na realidade, não sei o que quero que o público leve da Abertura deste II Momento. Antes tinha muitas expectativas, continuo a trabalhar com a mesma força e dedicação, mas deixei de pensar no que quero que os outros levem, porque, na verdade, quero tudo, e não consigo, nem devo ter essa pretensão. Hoje sou mais recatada, embora não deixe de ter desejos.

O que eu mais desejo é que o público saia do Museu Zer0 com curiosidade, com vontade de voltar, de pensar e de sentir mais. Que se sinta bem e, talvez, até surpreendido. Que perceba que a arte digital pode ser profundamente humana, que pode aproximar e fazer pensar o mundo de outro modo.

Neste II Momento, o que realmente quero é ver a comunidade de Santa Catarina da Fonte do Bispo, o Algarve e todos os que vierem de fora, juntos, a viver arte digital, a conversar e a divertirem-se. Quero ver o Paulo Teixeira Pinto, os artistas e toda a equipa felizes por termos conseguido criar um lugar onde a arte, despojadamente, se encontra com as pessoas, um lugar onde a autêntica conquista é podermos pensar o que quisermos.

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