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Connor Scott entra com um fato dobrado levado em braços com a solenidade de quem tem um corpo em mãos. Senta-se numa ponta da bancada em L que fecha a black box do CCB e troca meticulosamente de roupa. Gravata, colete, calças, a lentidão instala uma travessia temporal e um pequeno ritual de possessão histórica em que o centro não é tanto o personagem evocado, mas o que o gesto de evocar convoca, desvia ou transfere entre corpo, modo e ação. É nesse eixo corpo-tempo – precursor, percursor ou sucessor –, que se desenrola Cat-Gut Jim, apresentado na Casa da Dança em Almada (2024) e integrado na edição de 2025 do Festival Cumplicidades. Como alguém que recebe em testamento uma folha amarelada em branco, a partitura desdobra-se e coexiste num corpo atravessado pelo arquivo espectral e pela potência contingente de agir sobre si próprio.
A figura inspira-se em Edward Corvan, comediante e violinista de rua britânico do séc. XIX, antepassado direto de Scott. Ambos estão lá, num dueto metafísico animado pela instabilidade e incerteza da herança, numa árvore invertida em que a memória oscila entre enraizar-se no passado, propagar-se ou tomar posse de uma resolução e ficção vital: apanhar o instante da transformação em personagem ou abraçar a angústia de que nunca se é inteira ou completamente nada, estável ou pleno, em sentido rigoroso.
A luz oblíqua que divide a sala com a escuridão delimita esse crepúsculo do ser e do tempo: ilumina metade eclipsando a outra, como o corpo que dança e (des)equilibra à vez, em ambos lados, encostado à fronteira. O rito e o ritmo são telúricos, quando não tétricos. O performer contorce-se, flete, range, como quem desperta – ou desperta no íntimo – um corpo estranho que requer concentração para lidar com a interferência. Tiques, espasmos e reverberações soltas de uma memória física e identitária, operam o dilema físico entre recordar, criar em relação ou repetir. Transmitir sem inscrever-se num qualquer determinismo. A impressão é a de uma dança exigida pelo corpo e abrigada pelo intérprete, ainda que desejasse cumpri-la por outra escolha de gestos e movimentos possíveis, enganando-a ou enganando-se com isso.
Essa contrariedade existencial como prática faz-se de movimentos regressivos e frases aparentemente escritas da frente para trás, em reverse, sem a literalidade do movimento rebobinado ou a capacidade de adivinharmos o curso da ação.
Se arrasta o violino pelo chão, o chiar do instrumento serve em sentidos opostos ambos os tempos e personalidades coreográficas, entertainer histórico e performer, com uma certa teatralidade arrepiada, ocupada com a assombração. Não se trata de um número, não existem personagens. Ou são só elas que existem para lidar consigo.
À semelhança, Cat-Gut Jim é um híbrido entre contemporâneo, teatro físico, butoh; sem grandes vocações virtuosas ou pedagógicas, mas enunciados expressivos. Entre tempos, automatismos mecânicos, mediúnicos e uma consciência reflexiva, a contorção persegue, recria e interrompe constantemente a sensação de transe ou de cedência identitária. Há uma astúcia difusa nas intenções que se dissolvem e misturam nos deslizes: o corpo mortiço consome-se pelo espaço e aproveita para mover. A lassidão serve de disfarce para se recompor, ajustar o rosto e acertar a maquilhagem. Um rasto de persistência que converte a errância em método e o peso-morto em marcador do peso das referências, da timidez, da imanência do tempo e da erosão indómita da presença – a natureza compósita da existência.
Quando despe a camisa perto do fim, a aparente desmontagem já não parece implicar um regresso ao original, mas a um corpo ali, esgotado pela tentativa, longe de uma libertação estética ou de uma autenticidade ingénua, apetecíveis pelo esforço e pela identidade sobrecarregada: uma síntese da liberdade, frágil, precária e errante, oposta a uma nostalgia indolor, ancestralidades salvíficas, ou à ilusão de uma subjetividade isenta de circunstâncias pessoais e contextos históricos. Ciente do que fomos para ser. Do que somos para ser. Mas é nessa encruzilhada que esta Dança encontra a urgência e o devir que dispensam um sossego final.
Cat-Gut Jim, Connor Scott
16, 17 de maio 2025, CCB (black box)
Cumplicidades Festival 2025 (10 mai-2 jun)
Foto: © Rute Leonardo
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