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É a última semana de ensaios. Segunda-feira começamos a fazer montagem e a confirmar tudo em palco. Finalmente. A semana derradeira, o último esforço, o sprint final. Um destes dias, antes de um ensaio, encontro uma amiga que está a trabalhar no estúdio ao lado. Falamos sobre os espectáculos que cada um está a fazer. Partilhamos inquietações, as alegrias, as dúvidas ou as dificuldades dos processos.
Qual a pergunta do espectáculo, lembrou-me ela que um dia lhe lancei este enigma quando falámos sobre o projecto que agora está a ensaiar. Qual a pergunta do espectáculo é uma frase que repito muitas vezes para mim mesmo, ao longo de um processo de trabalho. Há que ser justo: é um enigma que me ajuda mais como criador do que como espectador, mas talvez seja um enigma inevitável também neste papel.
No outro dia, em conversa com o Luis Miguel Cintra, falámos sobre os textos que escreveu sob o mote Este Espectáculo. Textos que são, no fundo, como que olhares pela fechadura para os ensaios dos espectáculos, revelações do que se passou nos bastidores, do que se discutiu, das relações que se criaram. Lembro-me de ouvir estes textos e que esse era um momento importante; na fase final do trabalho, a alguns dias de estrear. Ansiava por eles, e um dia, o Luís Miguel chegava um pouco mais leve que o habitual, e dizia Gostava de partilhar convosco uma coisa. Nós sentávamo-nos à sua volta, e ele lia o que tinha escrito, e isso era um momento de claridade, uma luz. Estas palavras esclareciam, alimentavam, semeavam vontade, uniam o grupo. Era em torno delas que agora nos encontrávamos. Era a elas que regressávamos quando tínhamos dúvidas. Era… Digo que era porque eu o fazia. Muitas vezes o fiz. Tinha a folha de sala no camarim, e relia muitas vezes o ensaio. Mas não sei se devo transmitir a ideia de que era um hábito partilhado – sei, isso sim, porque ainda há pouco tempo falámos disso, que para o Luis Miguel, estes textos tinham essa importância. Eu sentava-me, disse-me há umas tardes, sentava-me e perguntava: o que é que andámos aqui a fazer? Então, a escrita ajudava a esclarecer.
Talvez venha daqui a necessidade de reconhecer qual é a pergunta do espectáculo. Mas porque seria bom que o soubesse, como criador? Porque não praticar o que ainda há uns tempos citei que Jorge Luis Borges escreveu: não procurar compreender o que se escreve. Confiar na intuição do gesto criador.
Pensando sobre: parece que aos momentos de intuição se seguem estes, em que somos convidados a sentar-nos à mesa e perguntar o que andámos aqui a fazer, ou qual a pergunta deste espectáculo. Talvez neste momento nos possamos confrontar com as decisões que fomos tomando, e talvez uma decisão não seja responsabilidade inteiramente nossa; somemos-lhe a circunstância e as limitações. Somemos-lhe vontades escondidas, teimosias, ou inseguranças. Talvez a pergunta seja uma pergunta de leitor ou investigador: alguém que, reconhecendo os signos, está à procura do significado do seu conjunto. Como se pudéssemos dar um passo atrás, olhar para nós através do que fizemos, arrumar as ideias para suspender todas as hesitações. Também o Luís Miguel, no dia da estreia do primeiro espectáculo do Teatro da Cidade, nas escadarias do Teatro da Cornucópia (que esta semana faria 49 anos), me perguntou Então, que tal o espectáculo? e à minha hesitação respondeu com um conselho que me esforço por ter sempre presente: o truque é: o espectáculo que fizeram é o espectáculo que queriam fazer.
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Manhã. O campo de ténis. Foram todas à rede. Falta-te qualquer coisa, não falta?, disse o treinador. O que é? Não sei. Pois, sei eu: distância emocional em relação à bola. Compreendo: qualquer hesitação perante a bola é um problema. Tenho de decidir, mal ela começa o seu percurso na minha direcção. Neste jogo, uma hesitação é fatal; penso: vou fazer uma bola curta, não: longa. E, quando lhe toco, é infalível: rede. Não chega a passar para o campo adversário.
Aqui torna-se tão claro: sobre a bola tenho de tomar uma decisão; e o treinador acrescenta que deve ser desinteressada da bola. Interessado em ganhar o ponto, mas sem me apaixonar pela bola. Distância emocional. Ele diz isto, e uma série de relações se iluminam na minha cabeça: está a falar sobre o amor, e sobre a escrita de textos, e sobre a vida no geral.
Mas eu sei, nós sabemos: nada é assim tão racional. E (a mesma coisa no ténis e no teatro), no final, o que nos ampara é uma espécie de intuição esclarecida – uma intuição que se faz da soma das nossas experiências de vida. Uma intuição que nos ensina a pergunta do espectáculo, a melhor forma de jogar a bola, sem que pensemos. Uma intuição, assim mesmo, sem explicação.
Última imagem: manhã. Na estrada. A mota. Finto o trânsito e penso: todos tão hesitantes – porquê? Carros que parece que não sabem para onde ir, que avançam sem objectivo aparente. Reparo no sinal: TVDE. São carros sem destino, à deriva, abstractos. Atrapalhando o tráfego. Longe desta intuição esclarecida, perdidos, à espera, hesitantes. Carros que circulam numa espécie de limbo, e onde nós – os passageiros – só entramos quando finalmente há um destino.
Imagem gerada por inteligência artificial com recurso ao Dall.E
BREVES CRÓNICAS DO TEMPO são pequenos episódios, registos, princípios de reflexão pelo dramaturgo Guilherme Gomes.
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