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por Miguel Bonneville + Simão FreitasMiguel Bonneville e Simão Freitas escrevem, depois de verem “Matriarca ‘74”, Pedro Nunes e Isabel Passarito, no dia 12/06/2025 no Centro Internacional das Artes José de Guimarães, Guimarães.
No interior do raio verde
✴ Pensámos neste hipertexto como um arquipélago ou uma constelação – um grupo de textos (✴) próximos uns dos outros, sem centro, sem laterais também, separados, mas ligados por afinidade, imaginação ou relação simbólica. É uma composição de anotações, citações e fragmentos, de ideias concretas e abstratas, sobre e a partir do espetáculo e de muitos outros desvios, sem procurar linearidade nem subordinação, sem hierarquias fixas. Cada fragmento propõe um gesto: manter aberta a possibilidade de pensamento, seja em que direção for. Cada espaço vazio é tão importante como os textos em si – conjunto que se sustenta na multiplicidade.
O raio verde acontece num limiar – entre dia e noite, visível e invisível. Tal como os pensamentos que surgem como constelação/arquipélago, o raio está nas margens do discurso, é lateral, sintoma de desvio e de atenção ao detalhe, só se mostra por um segundo. Cada um dos nossos fragmentos pode ser uma espécie de vislumbre de dispersão atmosférica. Mas por dentro?
✴ Em “Matriarca ‘74”, Pedro Nunes estreia-se ao lado da avó, Isabel Passarito, uma de duas presenças no coração de um corredor com duas cadeiras e uma tela. Na parede, um fio (desenho?) cronológico temático que liga um fio dramatúrgico mais próximo de uma cerejeira. Histórias que são como as cerejas, nem entrevista, nem jukebox, antes um elo familiar através do teatro que vem do regime fascista bafiento até aos dias de hoje, até ao “nosso triste fado, endireitar o tempo errado” (citação do espetáculo). Uma vida atravessada por postais de viagem de um neto embevecido com uma avó que procura conhecer. Uma avó que é testemunho.
Colocar o cuidado ao centro de uma democracia (The Care Manifesto) passa, também, por inscrever na memória coletiva um testemunho, cheio de presença, de corpo. Um testemunho ativo. Da mesma forma, virando a mesa prismática, ver-se o mundo do mesmo chão de toda a gente. Daí, postula-se a necessidade de novas revoluções, docuficção revista e aumentada de 51 anos de democracias e uns pozinhos de passado. Karl Valentin troçava: “Dantes, o futuro era melhor”. Espetáculo enraizado na tragédia melancólica dos nossos tempos, as utopias batem de frente, parece-nos, com “novas revoluções” e não tanto a reinvenção, refundação de pensamento e de movimento para um outro tempo, um outro mundo.
✴ "A acção poética implica: para com o amor uma atitude apaixonada, para com a amizade uma atitude intransigente, para com a Revolução uma atitude pessimista, para com a sociedade uma atitude ameaçadora. As visões poéticas são autónomas, a sua comunicação esotérica."
António José Forte
✴ As esquerdas academicizaram-se, foram-se refinando num discurso cada vez mais autorreferencial. Tornou-se necessário dominar um léxico específico para poder entrar nas conversas – léxico que foi afastando e intimidando aqueles que mais precisavam de representatividade. Para engajar com a ideia de "está nas vossas mãos agora". Um pensamento, paralelo, sobre o que tem vindo a acontecer, ao longo dos anos, à contracultura em Portugal (ou seja, no Porto e em Lisboa – porque o resto do país continua a tentar). A contracultura desapareceu praticamente porque a burocratização tomou conta de tudo, só se interessa por números. Os apoios à cultura democratizaram-se (mais ou menos), mas burocratizaram-se, o que levou ao encarreiramento dos artistas; para serem apoiados, têm de cumprir as normas que o Estado dita, adaptarem-se aos temas que o Estado dita. A partir do momento em que os mecanismos de apoio à cultura se tornaram também mecanismos de vigilância simbólica, a arte passou a obedecer. A disrupção é tolerada, desde que seja domesticada. As direitas aproveitaram-se do potencial do espetáculo, deixaram de se preocupar com a coerência e passaram a agir através da provocação e do escândalo, tornaram-se pop, usaram as ferramentas da cultura de massas para espalhar discursos de exclusão – e foram eficazes porque perceberam que as pessoas se querem rever no drama. A suposta realidade dos reality shows passou a ser considerada realidade – realidade que é feita de entretenimento, de momentos virais inesgotáveis.
✴ "O eleitor é, hoje, pouco mais do que um espectador e, no final, ele apenas pode votar a performance do candidato, como se votasse a saída de um participante num qualquer reality show. Não há política ou programa: tudo gira em torno da construção do personagem e da encenação permanente de uma narrativa".
Pedro Levi Bismarck
✴ Em “Banzeiro òkótó”, Eliane Brum menciona, a dado ponto, “o poder da escuta como ato político de resistência”. Uma possível resposta a “Matriarca ‘74”, em que o silêncio tem lugar de menção frequente num espetáculo com (muito) texto, depois de cerca de três horas, é desenhar possibilidades. Aproveitar a porta que se abre à eventual entrada de luz. E avançar.
✴ O que podemos fazer talvez seja não alimentar a nostalgia, não romantizar o passado, não nos conformarmos com o que nos oferecem no presente, encontrar fugas às linguagens que nos procuram dominar: académicas, políticas, publicitárias, burocráticas, encontrar saídas dos formulários, sair do tédio que provoca a romantização das revoluções – porque todas elas falham e morrem. A revolução ou está sempre a acontecer ou então deixa de existir, deixa de fazer sentido por pertencer a um passado ao qual as novas gerações não têm acesso.
✴ Porque às vezes dá vontade de gritar. São 50 anos de vontade de gritar nem que seja para acordar qualquer coisa dentro dos ossos. Porque a porta fechou, foi um sonho lindo que acabou, e ficou a trágica melancolia do que tinha-sido, uma sépia que quase serve de rede mosquiteira para novas ideias.
A Noite (como a via José Mário Branco, figura muito presente em “Matriarca ‘74”) da década de 80, o cavalgar neoliberal e o regresso do fascismo a que hoje se assiste criam um contraste grotesco com comemorações de uma Revolução que, precisando de ser afirmada todos os dias, parece ter sido memorializada, e por isso desprovida de vida. Sobra a espera (a resistência?) para que depois se possa voltar a falar.
✴ É tão grande e sedutor todo este mal que quase sempre o que passa por denúncia é apenas a luxúria de contá-lo. O desejo de forçar a relação entre a linguagem e as coisas, de alimentar o escândalo dos nomes até que de novo seja possível falar.
Andreia C. Faria, Canto do Aumento
✴ Para uma memória crítica, inscrita no e pelo povo e a gente-dentro que ele pode ser, que possa permitir desenhar outros futuros. Com o desejo entregue às estruturas de opressão, é inescapável o arquétipo neoliberal em que o empreendedor emancipado numa busca incessante por se melhorar ocupa todo o espaço onde, dantes, havia comunidade, conversa, partilha (havia?). Onde podia haver comunidade, conversa, partilha. Cuidado, escuta e presença.
Na medida do impossível, qualquer novo sonho que possa ser semeado e crescer não pode ter como alicerce essa relação utópica com o futuro do passado. Que larga códigos simbólicos que servem de amarras. Que deixa de jogar no azar (esse azar esconjurado em palco, também, pelas ações de Pedro Nunes) e no respeitinho
FMI, José Mário Branco
✴ Na cara da realidade, torna-se um cliché notar que uma revolução, como uma casa, não se constrói pelo teto. Pelos tetos, porque talvez seja precisa uma aldeia. Como pensar em abolição, restituição, contradição e revolução? Precisamos de novas ferramentas, de novos corpos, de mais tinta e papel para fazer uns minutos da longa noite da História em que ainda não é possível inscrever testemunhos. Porque não existem, porque estão a acontecer. Imaginar o fim desta estafa sem fim que nos domina é, também e forçosamente, imaginar um desastre.
✴ How might we not only fully crash against the order of this world, but finally break through and reach what lies on the other side?
Ian Alan Paul, sobre “The Future of Revolution”, de Jasper Bernes
✴ Para o final do espetáculo, a ternura e o amor, possíveis falsos amigos de uma criação, tomam o espaço da História. Pedro Nunes reclama para Isabel Passarito "a imortalidade que todas as avós merecem".
✴ Yve em Biarritz: Sabes o que é que Júlio Verne disse? Disse que, quando vês o raio verde, consegues ler os teus próprios sentimentos e os dos outros também.
Sra. Christlein em Biarritz: Isso é maravilhoso. Então teríamos percepções mais apuradas ao ver o raio verde.
Yve em Biarritz: Que é precisamente o que acontece à heroína no livro, embora ela nunca veja o raio verde. Mas consegue compreender os seus próprios sentimentos e os do jovem que conhece.
Le rayon vert, Eric Rohmer, 1986
✴ Em relação à revolução parece-me que se fala sempre mais no desejo de utopia, na ilusão, do que na desilusão – no que não funcionou, de facto, como se desejava, nos entraves, no que não permitiu avançar com o sonho. Ficou-se na possibilidade do sonho, mas de um sonho antigo. A adaptação à realidade é um ajustamento cruel.
✴ Pensar num objeto concreto como se fosse abstrato e descrevê-lo – isso era o que queria fazer.
Eu, como o espetáculo, sofremos do vício da subjetividade. No entanto, partimos de e para lugares muito diferentes. A lente do ódio não é mais ampla do que a do amor, mas a da ausência sim, porque se abre, presta-se a tudo ou quase.
Falo da ausência como lugar da criatividade – eu duvido sempre dos lugares cheios de certezas.
A imagem que surge é a de uma camada de pó que não pára de fazer-se. De um lado e do outro a luz é escassa e o pó imenso. Para mim, as histórias – incluindo a disciplina – estão todas cheias de mofo, não só por se parecerem umas com as outras, mas sobretudo pelo modo como são contadas. Por mais que até exista complexidade, o ângulo não muda nada.
País: ditadura, revolução, esvaziamento da promessa democrática, histórias de família. Depois: procura criar-se uma genealogia íntima onde a escuta parece querer tornar-se estratégia de resistência, mas acho que não há escuta, apenas uma forma. Ouvir: a revolução como fetiche simbólico, evocada como nostalgia ou usada como slogan. A forma: prometer que se vai chorar e não chorar não é justo; precisamos de chorar em conjunto, muito. Chorar as derrotas e os sonhos desfeitos, esgotar as possibilidades de história até não sobrar nada, abandonar as referências aos passados. Tarefa impossível, talvez, e por isso mesmo é que a tentamos. O possível já foi feito e não foi suficiente. Mas que isto não seja lido de um ponto de vista derrotista, porque isso implicaria que haveria outro, e não há. Basta olhar à volta e também olhar para dentro. Na verdade, são reflexos um do outro.
Sem cinismo, mas também sem esperança. Podemos fazer isso?
Revolução e teatro são palavras cobertas de pó. Coberta de pó também: a era do artista enquanto ativista. Para além de fazer arte, porque é que tem de ter outra função? Essa é sempre a discussão entre os movimentos artísticos, ou melhor, porquê acrescentar uma função à função que já está implícita? Porquê ilustrar a arte? Não é isso que a pode tornar, de facto, inútil – no mau sentido?
Alguém decidiu que o artista não pode ser ambíguo – tem de ser concreto, de servir ao público uma ideia, e de estar no lugar do que está certo. Mas há teatro de direita em portugal? E qual é a sua estética? Estou a perguntar sinceramente – sem cinismo e sem esperança. Há muitas coisas que eu não sei.
A utilidade sobrepõe-se à criatividade – se é uma obra importante não interessa se é inventiva, se abre possibilidades. Então, toma-se o caminho que nos mostraram: o caminho mais seguro. A obra afasta-se da crítica, aproxima-se dos sentimentos mais fáceis de manipular - de uma ideia de bem universal, uma ideia de emoção transversal. Em vez de questionar, reafirma, enrijece, e começa a degradar-se.
É uma escola – a de estar-se do lado certo da história. Seria bom poder questionar todas as escolas e depois, talvez, erradicá-las de vez. Porque são lugares cheios de violência. Direita, esquerda, pai, mãe, a verdade é que exercem poder sobre nós e nos limitam – tanto que nos impossibilitam de sonhar com outros futuros diferentes. As soluções são sempre as mesmas porque os problemas também.
Durante os Festivais Gil Vicente 2025, estará ativo o "Hipertexto", que nos acompanhará ao longo de duas semanas, colocando artistas (12 vozes do panorama teatral português) a dialogar entre si, em formato de uma imaginada correspondência por escrito, a partir de um espetáculo que tenham presenciado no âmbito do festival. É assim esperado que novas portas se abram para outros mundos, outros modos de ver, num tempo em que escasseia a escrita sobre espetáculos para lá da nota de agenda e da nota de intenções criativa.
O Coffeepaste publica dois desses diálogos.
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