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Hipertexto - Festivais Gil Vicente

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Mafalda Banquart e Raquel S.
9 de Junho de 2025

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Hipertexto - Festivais Gil Vicente

Hipertexto - Festivais Gil Vicente

Mafalda Banquart e Raquel S. escrevem, depois de verem “Se não for tu”, Era Rolim, no dia 05/06/2025 no Centro Cultural Vila Flor, Guimarães.

 

Raquel,

Entre os programas impressos (Maio-Julho) da Oficina, reparei no que se chamava "Antes ver" e que acaba assim: “a ver se vemos, e a ver se vamos juntos”. Achei curioso, porque mesmo antes de o espetáculo começar, eu e tu folheamos o programa, e (sem ler nada) ficamos a comentar o design: as transparências e as letras metalizadas. E, nesse momento, deu-me muita vontade de ver, justamente. Tanto com os olhos como com as mãos. Isso fez inclusivamente com que aquele momento presente se suspendesse por um bocadinho - é que ainda me surpreendo de cada vez que o meu corpo aparece para mim mesma. Não no sentido em que consigo ver a sua imagem, num espelho, numa story. Mas no sentido em que um pequeno brilho me consome, convocando o meu corpo a fazer movimentos. No caso, tocar na página. E mais intenso ainda se torna, quando, entre o ver e o tocar, aparece a minha vontade (“quero” tocar em vez de, por exemplo, “devia” tocar).

Já escrevi noutro texto, uma vez (para a folha de sala do espetáculo da Cátia Pinheiro, “Carta à Matilde”) que vejo a experiência da cor como uma experiência política, feminista (entretanto também ando a ler o “Chromophobia” do David Batchelor e essa ideia tem-se consolidado). O ponto da relação que fiz entre as duas coisas é a condição de dissociação do meu próprio corpo (que tem como consequência um desconhecimento total do que é a minha “vontade”). É um byproduct da minha socialização, de que falámos imenso ontem, no meu carro, a caminho de Guimarães. Por isso, ter uma experiência estética intensa que começa com um brilho e com um material (metal), que me faz querer correr atrás dos reflexos como se fosse um gato (eu ainda acho que posso vir a ser um, como no filme de anime “Os gatos também choram” que também referi ontem, já a caminho do teatro); sentir a interrelação de todos os sistemas do meu corpo, a organizarem-se para me devolver uma relação situada com o exterior (em vez de uma distanciada, em elefantíase mental); tudo isto, é um resgate da minha sensualidade - aquela que envolve ter um corpo que se move, toca e corre atrás de um reflexo (com vontade!) e não aquela que aparece no espelho ou numa story. Claro que agora já te estou a falar da imagem da Era Rolim (e não só das letras metalizadas do programa, que btw, também dizem: “olhar é permitir-se ser capturado pelo que se vê”). Refiro-me àquela em que ela está com um vestido metalizado, a lavar uma pia de metal, uma imagem que apenas se sucedeu a outras, antes dela. O que quero dizer é que senti que no espetáculo as imagens estavam lá todas por direito a estar ali, e não por obrigação ou força narrativa. Até porque a Era se está a permitir usar a ordem dos sonhos, aquela em que o anjo da guarda nos abandona para ir ver outras coisas e depois volta para nos contar o que viu. E estava a ler agora as tuas mensagens sobre teres ficado a pensar na dor que a Era experienciou por causa do problema de saúde que teve a meio deste processo, e a pensar que todas estas imagens que se iam sucedendo, e que eu ia vendo, me lembravam do corpo (o sangue a cair da boca, com os dentes, por exemplo). E que, tanto pelo que te descrevi até aqui, como por essa dor intensa pela qual ela terá passado, isso não é pouco. Eu gostava de ter visto mais dessas imagens, de experienciar mais essa ordem de composição, em que me estou sempre a perder em significados, para me voltar a encontrar na sensação específica de saber o que é estar de cabeça para baixo, a sentir água fria no pescoço, só por ver a Era lavar o seu próprio cabelo na pia de metal. De confiar nessa ordem do que não se diz mas que se vê, e que era o principal ponto que eu fazia no texto que escrevi à Cátia, e que, já agora, estou sempre a fazer com o Manu (@emanuelsantoz), com quem tenho agora um namoro artístico que já começa a ser longo <3. Eu gostava de ter visto mais, sim, e não sei se não vi mais por causa do corpo da Era, precisamente, que acabou por ter que ser a medida de todas as decisões artísticas. Mas isso também me parece importante. Porque embora quisesse, sim, ver mais, ser lembrada de que há corpo - apenas isso - parece-me imenso.

E logo depois de o espetáculo acabar, a Era, ainda com o vestido metalizado, estava a desaparecer pela porta da direita, e eu disse-te: “quero ir atrás daquilo, como se fosse um gato” e tu disseste: “acho que devias ir buscar o que é teu”. Aliás, o que é que tu disseste


Mafalda,

Acho que disse exactamente o que escreveste, que devias ir buscar o que é teu. Não digo o vestido em si. Eu sei, é mesmo coisa à filósofo continental barbudo, o “vestido-em-si”: podes tirar-me da FLUP, mas a FLUP pode tirar-se de mim? O vestido que tu viste é teu para sempre.

Há alguma coisa no espectáculo que, para mim, é oferecer imagens: na plateia senti que me sentia a observar e que, em vez de me darem uma ideia com forma de discurso ou um objecto, me deram imagens. Como se alguém me estendesse imagens numa bandeja: claro, uma bandeja que reflecte, polida, esfregada.

Fiquei com algumas: um lava-loiça que desce do céu tem um nexo secreto que eu não descrevo, mas compreendo. Limpa-se, mas não está sujo: a limpeza tem o fim dentro de si. Pensei: esfregar um lava-loiça metalizado, com uma palha-de-aço metalizada, um vestido que parece um emblema, metalizado, que parece um signo do esfregão – de repente, todas as superfícies são reflectintes (outra palavra da FLUP), e depois ainda a água que te faz ver-te reflectida a lavar o cabelo. Se tudo é reflectinte, o lugar onde começa desaparece, ou distancia-se, ou aniquila-se. A Marguerite Porete – Lembras-te dela? Uma beguina filósofa (obviamente atirada à fogueira)? Regresso: – ela escreveu O espelho das almas simples e aniquiladas e que permanece somente na vontade e no desejo do amor. Ela dizia que para acedermos à verdade – que nela é deus, mas também é liberdade, – devemos aniquilar-nos, anular-nos até sermos como um espelho, para podermos reflectir.
(Agora pensei na tua palavra, “socialização”, como se nos pudéssemos descascar dela. Se não for tu.)

Volto. A Era deu-nos imagens reflectintes, como se o significado estivesse tão longe que só assim pudéssemos ir buscá-lo. Como a luz que chega hoje da estrela morta há milhares de anos. Como nas interpretações de sonhos da psicanálise antiga, a procurar sinais, provas de um crime original que explicaria tudo.

A luz ficou comigo: olhei para outro lado, para outra cena, para a sombra, para o reflexo, para o tremer. E esse caminho de sentido também tem a incoerência das imagens dos sonhos que o cérebro nos oferece – que escapam ao nosso cérebro. Uma espécie de desfile dissociativo. Não sei, faz sense?

Pensei: o que faço destas imagens? E não tenho outra solução: vejo-as.

Olha, temos de repetir. Espera por mim no balcão do bar do hotel.


Raquel

P. S.: Afinal fui ler a sinopse. Alguma coisa se aniquila. Alguma coisa se mata. Talvez por isso reflicta.

Durante os Festivais Gil Vicente 2025, estará ativo o "Hipertexto", que nos acompanhará ao longo de duas semanas, colocando artistas (12 vozes do panorama teatral português) a dialogar entre si, em formato de uma imaginada correspondência por escrito, a partir de um espetáculo que tenham presenciado no âmbito do festival. É assim esperado que novas portas se abram para outros mundos, outros modos de ver, num tempo em que escasseia a escrita sobre espetáculos para lá da nota de agenda e da nota de intenções criativa.
O Coffeepaste publica dois desses diálogos.

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