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João Botelho e o cinema de dissidência

24 de Outubro de 2020

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João Botelho e o cinema de dissidência
Por Ricardo Viel

A rapidez com que João Botelho (Lamego, 1949) fala é inversamente proporcional à velocidade dos filmes que faz. As suas criações, que pertencem ao “cinema do tempo” em contraposição ao “cinema de movimento”, não têm nada a ver com a forma como as ideias surgem na sua cabeça e brotam da sua boca. Quando conversa, Botelho salta, corta, volta, adianta, acelera e parece que se vai perder, mas não se perde.

A pergunta que escolho para começar a nossa entrevista é sobre a sua relação com Fernando Pessoa, mas antes de (ou talvez para) responder sobre o poeta o realizador escolhe levar-nos por um caminho alternativo. Começa por contar sobre o seu amor pelo cinema: “O cinema para mim foi um acidente. Eu nunca pensei em ser cineasta, eu era cinéfilo. Eu era viciado em cinema, como sou em tabaco e café”. Vicio que se potencializou, conta, em Coimbra, quando entrou para a universidade. “Havia uma coisa estúpida que era que os calouros, os gajos do primeiro ano, não podiam sair depois das seis da tarde, porque os mais velhos batiam, rapavam a cabeça. E eu, como sempre gostei de sair de casa, ia para o cinema. Vi 300 filmes num ano”. Nessa época, para sustentar a adição, Botelho trabalhava nas férias. Ia de boleia para Inglaterra, para a Suécia, trabalhar em restaurantes, fábricas, e assim juntar algum dinheiro. Rumava, em seguida, para Paris e em duas semanas assistia a 80 filmes gastando tudo o que tinha conseguido guardar.

Antes de chegarmos a Pessoa, João Botelho ainda contará como e porque, por graça do 25 de Abril, abandonou a carreira de professor numa escola técnica (estava a acabar o curso de Engenharia em Coimbra) e foi estudar Cinema em Lisboa. “Vim para a Escola de Cinema tarde. Tinha 25, 26 anos, os meus colegas tinham 20. Cheguei tarde mas aprendi depressa”, sorri. Contará, também, que durante os estudos fez algumas curtas e criou uma revista que homenageou, no seu primeiro número, Manoel de Oliveira. Foi assim que conheceu (tornando-se depois amigo) o cineasta que viria a ser o seu grande mestre. Com Oliveira, diz Botelho, aprendeu que o cinema é ver e ouvir, que o que importa é o ponto de vista da câmara (e que só há um ponto de vista correto para cada cena), e que se não há dinheiro para filmar uma carruagem filma-se a roda, mas há que filmá-la bem. “Oliveira era um artesão puro”, resume.

Cerca de três cigarros depois chegamos a Fernando Pessoa, personagem (ou talvez objeto) da primeira longa-metragem que o cineasta filmou: Conversa Acabada, de 1980. Pessoa levar-nos-á a José Saramago e à filmagem de O Ano da Morte de Ricardo Reis, mas antes ouviremos uma história absolutamente fascinante e incrível: João Botelho teve em casa a arca de Fernando Pessoa. O famoso baú do poeta, repleto de textos, foi emprestado pela sobrinha-neta do autor de Mensagem ao realizador enquanto ele fazia o filme. “Ainda não tinham vendido a arca do Pessoa, não estava na Biblioteca Nacional, estava em casa dessa senhora e ela emprestou-me tudo. Tive o privilégio de ter comigo não só a arca, mas dois pares de óculos, um boquilha, carteiras do Fernando Pessoa... E a sua biblioteca, além de cadernos do Sá-Carneiro anotados pelo Pessoa. Levei a arca para o estúdio, nunca tive tanto silêncio enquanto filmava. As pessoas tinham um medo e um respeito por aquilo... Ouviam-se as moscas. Era um silêncio, um respeito enorme, parecia uma coisa mística”.

Este facto inusitado e inacreditável aconteceu no início dos anos 80, época em que começava uma espécie de redescobrimento de Fernando Pessoa. Foi por essa altura que José Saramago teve a ideia de escrever um livro chamado O Ano da Morte de Ricardo Reis. O título o escritor já tinha, mas ainda levaria uns anos para dar início à empreitada. Andou às voltas com essa ideia por um tempo e é bem provável que em 1981, José Saramago tenha ido aos cinemas assistir ao filme de um jovem realizador chamado João Botelho que teve a ousadia de, na sua primeira longa-metragem, dialogar com Pessoa.

“Quando uma pessoa é jovem e começa, ela é radical. E, para mim, o Modernismo, o Pessoa e o Sá-Carneiro, eram as coisas mais radicais que conhecia”, conta Botelho sobre a sua primeira longa. Inicialmente, era para ser um documentário sobre as cartas que Pessoa e Mário de Sá-Carneiro trocaram, mas acabou por ser uma ficção. “De repente, a relação entre eles (Pessoa e Sá-Carneiro) ficou tão intensa que tinha pé para ser uma ficção.” Com esse trabalho inaugural João Botelho foi a Cannes de onde voltou com uma lição: “Era um filme totalmente estranho, diferente. Metade da sala saiu antes do fim e a outra metade aplaudiu durante 15 minutos depois do final. Aí percebi que o cinema era para dividir, não é para unir. É para dividir, para inquietar, não é para consolar”.

Alguns cigarros mais, e Botelho, após detalhar o seu início como cineasta, a sua relação com Manoel de Oliveira e Pessoa, de repente dá um salto: “E então um gajo chega ao Prémio Nobel!”. O Prémio Nobel, no caso, é José Saramago, autor de O Ano da Morte de Ricardo Reis, romance que Botelho acaba de transformar em filme e que estreia em outubro nos cinemas.

O que o realizador chama de “marca da literatura” na sua obra é o que fez com que antes de Saramago o cineasta levasse ao ecrã obras de Fernão Mendes Pinto, Eça de Queirós, Agustina Bessa-Luís, e do próprio Fernando Pessoa (O filme do Desassossego, de 2010, a partir do Livro do Desassossego). Até finalmente chegar a Saramago para adaptar um romance que, embora não seja o seu predileto (esse lugar é de Levantado do Chão), considera ser a obra “mais cinematográfica” do autor de Todos os Nomes. “O Ano da Morte de Ricardo Reis é um guião cinematográfico, tem relações, tem elipses, tem ligações, tem pausas e acelerações, tem uma história de amor entre dois homens e a perturbação das mulheres, tem fantasmas... E tem uma coerência enorme que tem a ver com o facto de o Saramago ter estudado dia a dia com estava Portugal e o mundo naquela altura, um trabalho inacreditável”.

Filmado a preto e branco, no melhor estilo luz e sombra, do cinema do tempo que é o estilo do realizador, O Ano da Morte de Ricardo Reis é um novo reencontro do cineasta com Fernando Pessoa. Desta vez com a intermediação de José Saramago. De certa forma, é como voltar ao inaugural Conversa Acabada, filme que, para Botelho, é o ponto de partida para todos os seus posteriores trabalhos, que seriam todos variações desse primeiro.

Sobre o seu modo de fazer cinema, Botelho prefere a palavra dissidência no lugar de resistência. “O senhor Jean-Marie Straub ensinou-me há muitos anos: se quiseres fazer resistência, perde-se. Não faço nada contra os meus colegas cineastas, faço ao lado, faço diferente. E quem quiser que venha ver.”

O facto é que numa época de tanta velocidade, em que somos bombardeados por fragmentos de imagens e sons a todo o momento, no cinema de João Botelho o tempo é outro. “Hoje não se aprende nada com o cinema. O problema hoje é que os filmes são infanto-juvenis. Há mais cinema nas séries americanas, onde há melhores guionistas e atores. E por quê? Porque os adultos ficaram em casa. 85% das pessoas que vão aos cinemas hoje são crianças de 14 a 18 anos, é o triunfo do entretenimento, não do pensamento.”

Antes de se despedir, o cineasta cujo próximo trabalho será a partir de poemas de Alexandre O’Neill, fuma mais um cigarro e deixa mais uma frase sobre a sua concepção do seu trabalho. “O cinema é ver e ouvir, não é mais nada. São luzes e sombras, e seres humanos aflitos. Os otimistas vão para a luz e os pessimistas para a sombra”, tenta explicar. E continua: “O cinema nunca é a história, é o modo de a filmar. É o ponto de vista, por quê aqui e não ali? Porque eu escolho”.  Como escolheu, por exemplo, uma árvore do Jardim Príncipe Real - lugar que escolheu para realizar esta conversa - como cenário para Conversa Acabada e O Ano da Morte de Ricardo Reis. E se o cinema é uma questão de escolhas e pontos de vistas, é bom que o realizador tenha bom gosto. A enorme árvore do Jardim do Príncipe Real parece-me bela e enigmática, como a obra de Botelho.

Este artigo foi publicado ao abrigo da nossa parceria com a Fundação José Saramago. Foi publicado na Revista Blimunda de setembro de 2020.

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