Conteúdos
Agenda
COFFEELABS
Recursos
Sobre
Selecione a area onde pretende pesquisar
Conteúdos
Classificados
Notícias
Workshops
Crítica
Por
Partilhar
O Queer Lisboa e o Queer Porto regressam em 2025 com programação que cruza cinema, política e ativismo, reafirmando-se como espaços de resistência num tempo marcado pelo crescimento das extremas-direitas e pelo retrocesso de direitos fundamentais. Na 29ª edição em Lisboa (19 a 27 de setembro) e na 11ª no Porto (4 a 8 de novembro), o festival traz ao público obras que vão da ficção à performance documental, passando pelo cinema trans em destaque no Queer Focus e pela secção Resistência Queer, agora elevada a estatuto permanente. Conversámos com João Ferreira, diretor artístico, sobre a identidade destas edições, a importância de um cinema que assume a sua dimensão política e os desafios que se colocam ao futuro do festival e da comunidade queer.
O Queer Lisboa e o Queer Porto têm vindo a afirmar-se como espaços de reflexão e resistência. Como descreverias a identidade desta 29ª edição, em Lisboa, e da 11ª, no Porto?
Os festivais acontecem, este ano, numa conjuntura muito particular. Apesar de já termos atravessado momentos políticos complicadas no passado, que puseram em causa a própria realização e futuro do festival em Lisboa, nomeadamente durante o mandato de Santana Lopes na Câmara, estes tempos têm características muito diferentes. O grau de extremismo, de ausência de humanismo, de uma “ideologia” que dispara em todas as direções, violenta e sem nexo, são coisas que eu nunca esperei viver. A “antiga” direita era algo com o qual sabíamos lidar, era clara nas suas intenções ideológicas. Aquilo a que assistimos hoje é muito diferente, e acho que ninguém sabe muito bem o que fazer com isto. Nem quem está dentro da própria extrema-direita. E isso é muito perigoso. Acho que a identidade dos festivais deste ano é uma reação a estes fenómenos. Em quase trinta anos de existência, aos poucos, fomos caminhando num sentido de evolução legislativa, de mentalidades, de conquistas para a comunidade queer e, de repente, percebemos que tudo pode desmoronar de um dia para o outro. Talvez a identidade dos festivais seja a de um certo voltar ao início, de uma regeneração, de um respirar fundo e voltar à luta.
O que significa, para ti, programar hoje cinema queer num contexto político e social marcado pelo crescimento das extremas-direitas?
O fator político sempre esteve presente na nossa programação. Neste contexto que referes, ele ganha uma dimensão que domina toda a programação. É inevitável e é necessário. Mesmo aqueles filmes que não abordam diretamente a situação política e social atual, não há como não os “ler” a partir deste contexto. Estou a pensar na retrospetiva que dedicamos ao Lionel Soukaz. Ao rever os filmes dele e descobrir muitos outros, e preparar este programa, não o podíamos deixar de fazer a partir deste olhar do presente. Não foi um olhar meramente nostálgico, foi um olhar de compreender aquelas lutas dos anos 70, 80 e 90 e pensar que a luta não acabou. Ou seja, acho que há uma responsabilidade acrescida em programar neste contexto. E não falo num sentido pedagógico ou com uma qualquer missão educativa. Isso não é suficiente, já não resulta. Estamos para além disso. A resposta tem de ser mais radical. Não passa por mostrar imagens de “normalização” ou integração de pessoas e comunidades queer, dando a ver que somos todos iguais. Tem é de se desmontar as hipocrisias do discurso conservador e pseudo-católico e mostrar que as vidas queer não são apenas legitimas em todo o seu espectro de identidades, práticas e estilos de vida. Temos de as afirmar como mais verdadeiras, mais legitimas, mais humanistas que essas outras que as tentam censurar e silenciar. É preciso inverter a ordem.
A secção Resistência Queer ganha este ano estatuto próprio. Qual foi o momento em que sentiram que este programa merecia tornar-se uma secção estruturante do festival?
Foi um processo orgânico que se foi desenvolvendo numa evidência. Quando pensámos este programa temático o ano passado para Lisboa e Porto, eram muito evidentes as agressões em zonas como a Palestina e Ucrânia, assim como a violência política em tantos outros países. Passado um ano, tudo piorou, perante a impassividade da larga maioria dos governos democráticos mundiais. Aliás, passado um ano, cresceram as cumplicidades desses mesmos governos com muitos desses agressores. Quase nada foi feito. E com o passar do tempo, o cinema vai tendo ele cada vez mais tempo para representar estes conflitos. Perante os filmes que fomos vendo nestes últimos meses, uma nova Resistência Queer tornou-se necessária. E talvez perante a evidência de que a maioria destas terríveis situações não terá resolução rápida, acho que percebemos que a Resistência Queer vai ser uma secção que vamos ter de manter bastante tempo. É muito triste pensar nestes termos, mas a realidade não nos está a provar nada em contrário.
O programa dedicado à Palestina (“No Pride in Genocide”) é uma tomada de posição política clara. Como é que o festival articula a dimensão cultural com a intervenção política?
Essa tomada de posição política é fundamental. Não há lugar a posicionamentos neutros ou dúbios no atual contexto. E isto tem consequências diretas na nossa programação, que tem a obrigação de ir ao encontro das posições que defendemos. É importante que o público sinta que não toleramos determinadas ideologias e ações. E que o cinema queer não é mero divertimento, aliás, nunca o foi. Se ele carrega essa designação de “queer”, ele carrega uma responsabilidade. Ou seja, mesmo aqueles filmes que aparentemente não têm uma marcada abordagem política, ou porque são histórias mais pessoais e familiares, ou histórias de “coming of age”, e por aí fora, não deixam de ser políticos e não deixamos de lhes dar uma capa política na opção de os programar. Todos estes filmes têm uma missão. Não vejo como é possível pensar a cultura hoje sem uma dimensão política, quer como criadores, curadores ou espectadores.
Apesar de vermos mais personagens trans no cinema, continua a haver uma falta de obras realizadas por pessoas trans. O festival pode contribuir para alterar este cenário?
Festivais temáticos como o nosso são fundamentais como lugares de divulgação e cuidado em relação a determinadas criações e artistas. Até há uma década e tal atrás, era muito difícil encontrar um filme realizado por uma pessoa trans. No entanto, a representação de personagens trans nas narrativas cinematográficas começou a ser corrente e até usada com propósitos comerciais, mascarados de uma suposta inclusão. O problema é que essas personagens eram invariavelmente representadas por atores ou atrizes cisgénero, heterossexuais. E as histórias eram contadas quase sempre a partir dessa perspetiva cis. Não havia uma representatividade justa. Acredito que os festivais de cinema foram fundamentais para ir alterando esse paradigma, a par do ativismo trans que ganhou uma justa visibilidade na passada década. É imprescindível que estas histórias sejam contadas por quem as vive, por quem as conhece a fundo. E felizmente cada ano vemos mais pessoas trans, não apenas à frente, mas atrás das câmaras. E se olharmos hoje, retrospetivamente, para esse cinema de há um par de décadas atrás e este, hoje, feito por pessoas trans, são claras as diferenças no que este último tem de verdade.
Fala-nos brevemente dos filmes de abertura e encerramento do festival.
Diria que as escolhas deste ano não foram talvez as mais óbvias, particularmente para o encerramento do festival. O “Plainclothes”, a ficção com a qual abrimos o Queer Lisboa, para mim tem um lado nostálgico do período do New Queer Cinema dos anos 90. Aliás, a ação do filme passa-se precisamente nessa década, tendo inevitavelmente a presença da epidemia da sida como pano de fundo. Acho que é uma história que acaba por ter um apelo para um público alargado, por explorar o amor, a família, o conservadorismo dos meios pequenos. É uma narrativa muito bem escrita e com interpretações fabulosas do Russell Tovey e do Tom Blyth. E depois, apesar desse lado mais clássico, há um experimentalismo estético que me agrada muito e que faz uma homenagem ao cinema queer, no qual este filme se inscreve totalmente em termos de linhagem. Já a escolha do documentário “Between Goodbyes”, para nós fez sentido, não apenas por ser realizado por uma pessoa não-binária e ser de temática lésbica, mas porque nos conta uma história absolutamente arrebatadora, que acreditamos irá ter um forte impacto no público. O filme centra-se em Mieke, uma mulher de origem sul-coreana adotada por uma família nos Países Baixos, e sobre a sua aproximação à sua família biológica, isto tudo consequência de uma prática brutal do governo sul-coreano que a partir dos anos 50 força as famílias mais numerosas a entregarem os seus filhos para adoção, particularmente se forem meninas.
Olhando para o futuro: que desafios imaginas para as próximas edições, tanto em termos artísticos como políticos?
Estes passados dois anos acho que nos ensinaram a não fazer grandes previsões para o futuro. O mundo caminha a grande velocidade para um abismo de autodestruição. Vejo tudo demasiado imprevisível, não estou otimista... Em termos artísticos, além daqueles desafios de já alguns anos, que passam pelos formatos de criação e das plataformas da sua divulgação, preocupa-me também a crescente falta de condições para a criação artística, por um lado, e a censura e falta de liberdade na criação, por outro. E isto está ligado obviamente à situação política. O desafio é mesmo o de conseguir sobreviver, enquanto criadores, enquanto festivais. E também o de garantir os direitos e liberdades de minorias. Quando penso nisso, acho que vamos assistir talvez a um renascimento das subculturas, em todos os seus espectros, como mecanismo de encontrar um lugar de liberdade. Talvez de toda esta adversidade externa, nasça um novo sentido de comunidade, mais reforçado. Mas é muito difícil imaginar o que aí vem...
Foto: Plainclothes, de Carmen Emmi
Apoiar
Se quiseres apoiar o Coffeepaste, para continuarmos a fazer mais e melhor por ti e pela comunidade, vê como aqui.
Como apoiar
Se tiveres alguma questão, escreve-nos para info@coffeepaste.com
Mais
INFO
CONTACTOS
info@coffeepaste.com
Rua Gomes Freire, 161 — 1150-176 Lisboa
Diretor: Pedro Mendes
Inscreve-te na mailing list e recebe todas as novidades do Coffeepaste!
Ao subscreveres, passarás a receber os anúncios mais recentes, informações sobre novos conteúdos editoriais, as nossas iniciativas e outras informações por email. O teu endereço nunca será partilhado.
Apoios