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Entre a sombra e a luz, entre a forma estanque e a metamorfose incessante, o corpo procura novas maneiras de existir. É nesse território que se inscreve Hide to Seek, a mais recente criação de Júlio Cerdeira, apresentada em maio no Centro de Arte Oliva, depois de um percurso de residências, apresentações intermédias e ações de mediação que passaram por Braga, Porto e Ponte de Lima.
Coreógrafo, intérprete, docente e investigador, Júlio Cerdeira tem vindo a explorar, desde 2019, a ideia de amorfização do corpo, questionando limites entre identidade, máscara e alteridade. Em Hide to Seek, essa pesquisa ganha corpo e voz num espetáculo onde movimento, som e luz se compõem em tempo real, abrindo espaço para novas corporeidades.
Nesta conversa com o Coffeepaste, Júlio Cerdeira fala-nos sobre o processo de criação, as colaborações que moldaram a peça e o lugar que este projeto ocupa no seu percurso artístico e académico.
O Hide to Seek parte de uma reflexão profunda sobre a máscara e a amorfização do corpo. O que te levou a explorar esse universo simbólico e físico?
Regularmente os meus processos criativos contaminam ou motivam os meus projetos seguintes. Quero com isto dizer que este trabalho sobre o conceito de máscara já tinha sido desenvolvido em projetos anteriores como IMAGEM NUA (2022), que apresentava o rosto como máscara, como cristalização de expressão ou identidade na face. Neste caso, não era sobre o uso do objeto, mas sobre a transposição das funções do objeto para o rosto. Era um desafio duplo: perceber como é que este conceito transformava o rosto, mas também como é que o rosto repensava este conceito, impondo-lhe algum movimento e teatralidade.
Para o projeto HIDE TO SEEK (2024/2025), sabia que queria estruturar um trabalho que que pudesse problematizar o conceito de máscara a partir da ideia de “esconder para procurar” em diferentes práticas artísticas. Foi um projeto que surgiu da vontade de ter uma prática artística mais sustentada e menos precária. Então, ao longo destes 2 anos realizamos diversas atividades tais como: a criação e apresentação do espetáculo de dança HIDE TO SEEK, a criação e apresentação de performances originais com artistas convidados, residências artísticas, workshops, performances-conferência, sessões de mediação de públicos, entre outras. As abordagens foram muito distintas, variando consoante o formato e prática artística envolvida.
Para a peça de dança HIDE TO SEEK, interessou-me trabalhar com objetos esculturais, com máscaras propriamente ditas, para permitir aos intérpretes a invocação de corporeidades e identidades distintas. Para isso, convidei os artistas Ed Freitas e Nuno Fonseca para, com o contributo dos intérpretes, criarem objetos que facilitassem este processo de transformação do corpo nesta prática ritual (re)imaginada.
Já na criação de performances originais com os artistas Tales Frey e Lilian Walker, apresentadas em setembro de 2024 na zet gallery (Braga), decidimos desdobrar esta premissa de “esconder para procurar” para dois novos sentidos. Em “Notas Sobre Inventários Disformes”, eu e o Tales Frey despimo-nos das nossas roupas ao som de um metrónomo, para nos acoplarmos em formas compactas, amorfizadas e orgiáticas, escondendo o rosto na procura de novas morfologias do corpo e do afeto. Em “90x180x1,3”, eu e a Lilian Walker revelamos lentamente uma obra pintada sobre uma placa com as dimensões que dão o título à obra. Esta obra pintada estava ocultada sob uma tinta plástica que revestia toda a placa de pladur. Neste gesto de procurar a tinta que está por debaixo da tinta, envolvemo-nos em gestos de distensão para rasgar a tinta acrílica e revelar o trabalho escondido de Lilian Walker.
Procuro com tudo isto dizer, que me interessava, acima de tudo, experimentar diferentes formas de “esconder para procurar”, seja através da máscara, de práticas de dança, de peças de vestuário ou de tinta plástica.
Como foi desenhado o processo de investigação artística que levou a este espetáculo? Houve descobertas inesperadas ao longo do caminho?
O processo de investigação HIDE TO SEEK foi estruturado detalhadamente de forma a que cada atividade pudesse contribuir para a seguinte. Por exemplo, a primeira residência artística, ainda sem intérpretes, permitiu-me perceber que deveria trabalhar 3 tipologias de escrita coreográfica (mista, livre e de autoridade) que pudessem problematizar a amorfização dos corpos e as práticas de embodiment.
Curiosamente, na residência artística realizada no Theatro Circo, eu e o artista-docente Diogo Liberano, ao analisarmos os processos criativos dos projetos HIDE TO SEEK e Declaração De Dependência – Versão 2, percebemos que tínhamos estruturado os projetos com formas de escrita para cena muito semelhantes. Esta foi uma das surpresas mais inesperadas do processo, perceber que em criações de teatro e dança há mais afinidades estruturais do que esperamos. Exatamente por isso, realizamos 2 semanas de residência artística onde pudemos desafiar ainda mais as nossas práticas, com exercícios de improvisação e análise do nosso trabalho artístico e pedagógico.
A repetição e a exaustão surgem como motores de transformação do corpo. Como é que isso se traduz em cena e na relação com quem está a assistir?
O espetáculo tem uma forte relação com a luz, ela é um elemento central da dramaturgia do espetáculo. Em HIDE TO SEEK, os projetores de luz tem uma carga simbólica pesada, são carregados pelo espaço, utilizados para iluminar outros intérpretes e posicionados numa tríade de projetores em torno da qual os intérpretes dançam. Esta sequência coreográfica em torno destes 3 projetores de luz é intensa, exaustiva e repetitiva, é uma coreografia de esvaziamento do corpo e de anestesia da identidade quotidiana. Com esta prática coreográfica procura-se a estruturação de um ritual que (re)imagina as práticas performativas que se encontram na origem do teatro grego.
Neste momento do espetáculo, o público assiste a uma coreografia em triangulação que usa diferentes referências de práticas coreográficas circulares para facilitar o embodiment de corporeidades distintas, para gerar uma experiência alterada do corpo. Da mesma forma que a exaustão esvazia o intérprete, ela também esvazia o olhar do público, tornando-se os corpos dos intérpretes menos distinguíveis entre si neste movimento hipnótico e circular, bem como, na repetição sucessiva de diferentes conjugações de frases coreográficas.
A tua pesquisa sobre a amorfização do corpo começou em 2019. Sentes que este projeto te levou a um novo patamar nessa investigação?
Eu vejo a minha prática artística como uma prática de investigação em artes que se dilatada no tempo, passando por diferentes etapas e diferentes projetos. O projeto HIDE TO SEEK foi particularmente importante no meu percurso enquanto investigador, uma vez que me permitiu a experimentar com 3 intérpretes algumas das premissas de investigação sobre corpos amorfizados que tinha desenvolvido até então. Pelo facto de não dançar neste projeto, consegui olhar a minha prática artística com outra distância e sentido crítico, que me permite agora articular a experiência do artista-intérprete com a experiência mais distanciada do coreógrafo.
Este projeto permitiu-me perceber a proximidade do meu trabalho com diversas técnicas de contato-improvisação e com práticas de artes marciais, motivando assim o meu próximo projeto: MANUAL DE DEFESA, onde procuro aprofundar, reinventar e cruzar estas práticas do corpo para a proteção e afirmação de identidades e narrativas queer. Procuro que cada projeto alimente o processo de investigação, de forma consequente e desafiadora.
Como é que a presença escultórica das máscaras influenciou o movimento e a identidade dos corpos em cena?
As máscaras criadas pelos artistas é Ed Freitas e Nuno Fonseca destacam-se neste projeto enquanto objetos plásticos distintos de imenso detalhe e minucia. Máscaras desenhadas para os rostos de cada intérprete com pérolas, rendas, feltro, missangas e tecido halográfico, para se imporem sobre o espaço, mas também, sobre o corpo todos intérpretes. A proposta era exatamente essa, que estas máscaras transformassem o corpo e a experiência que os intérpretes têm do seu corpo. As máscaras aliadas às práticas coreográficas circulares de repetição permitem o surgimento de alteridade no corpo: movimentos animalizados, rostos transfigurados, espectralidades invocadas e misticismos enfumarados. O momento final do espetáculo é isso mesmo, um momento de contemplação destes corpos na experiência do seu novo corpo, proporcionado pelo anonimato da máscara.
Como trabalhaste com os intérpretes para chegarem a esse “corpo que se procura para lá das formas fáceis”? Que tipo de descobertas ou resistências surgiram?
Acima de tudo, trabalhamos com recurso a muita improvisação, através de exercícios de contato por restrição, enlaçamento de membros e composição de novos corpos na dificuldade de movimentação. A composição de corpos de alteridade parte de um exercício de observação das características e movimentos do corpo humano, percebendo quais são aquelas que o encerram na sua anatomia e nos clichés da dança, remetendo para uma realidade conhecida. Procuro então abordagens que permitam abrir o corpo a novas significâncias e movimentos, através de um contacto-improvisação que usa o conflito como elemento gerador de forma.
Há sempre resistências a esse trabalho, por ele ser contrário às práticas mais comuns contato-improvisação, por isso, é necessário fazer uma introdução à técnica de amorfização dos corpos. Contudo, julgo que os intérpretes conseguiram não só executar este trabalho como complexificar amplamente esta prática.
Como foi colaborar com artistas como o Ed Freitas e o Nuno Fonseca nas máscaras, o Miguel DE no som ao vivo, e toda a equipa criativa?
Trabalho com o Miguel De desde 2022, sendo o meu trabalho extremamente influenciado pelas suas propostas e pela sua identidade estética. Neste projeto, queria trabalhar o som e a luz como matérias fundamentais a criação cénica, por isso, o Miguel trouxe este processamento do som imitido pelos intérpretes ao microfone. Deste modo, tal como os intérpretes, também o som e a luz passam por um processo de transformação intenso ao longo do espetáculo.
Trabalhar com o Ed Freitas e Nuno Fonseca foi uma novidade e uma surpresa, veio literalmente de um sonho. Enquanto estava no processo de criação da peça, sonhei que os intérpretes dançavam com as máscaras do artista Ed Freitas, que tive o prazer de conhecer no Doutoramento em Arte Contemporânea do Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. Foi uma honra eles poderem embarcar neste projeto num momento já mais avançado do mesmo, mas acho que a qualidade do seu trabalho fala por si, não lhes poderia estar mais grato pelo contributo que trouxeram ao HIDE TO SEEK.
Toda a equipa foi excecional: a Joana Gomes Martins que fez acompanhamento de interpretação, o Rui Macário na produção executiva, o Luís Belo no design de comunicação e vídeo. Não posso também deixar de mencionar a rede extensa de parceiros que contribuíram para as residências artísticas e para uma relação mais sólida com as populações locais.
A peça envolve composição sonora e luminosa em tempo real. Que liberdades ou desafios isso trouxe à criação e à performance?
Trouxe principalmente uma maior humanização da relação dos elementos que compõe o espetáculo. Acaba por ser um espetáculo com 5 intérpretes, extremamente intuitivo e interdependente, onde a escuta é fundamental. O projetor de luz é carregado pelo Rafael Pinto que o manuseia em cena, enquanto o Pedro Abreu gere a intensidade, cor e abertura da luz, consoante as movimentações da Maria R Soares e da Suevia Rojo. Há também uma relação muito forte entre a luz e o som que se sincronizam e dessincronizam, deturpam e sobrepõe durante todo o espetáculo. É um espetáculo de uma alquimia coletiva, onde o contributo de toda a equipa artística é essencial e relacional.
Tiveste o acompanhamento artístico da Né Barros e da Cláudia Marisa — como é que os seus olhares contribuíram para o desenvolvimento da peça?
Ter um acompanhamento destas duas artistas e docentes foi fantástico. A Cláudia Marisa permitiu um olhar muito detalhado e aprofundado sobre meu trabalho, através do acompanhamento de ensaios e da escrita de um artigo sobre HIDE TO SEEK, que sairá em breve. A Né Barros teve também um papel fundamental na forma como pensei, estruturei e estudei os meus processos de investigação, convidando-me para apresentar o processo HIDE TO SEEK na 4ª edição das Performances no Contemporâneo do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto.
O projeto passou por várias cidades e incluiu residências artísticas, workshops e conferências. Como é que essas etapas influenciaram o espetáculo final?
Em todos os meus projetos procuro que os meus processos sejam menos sobre a criação de um espetáculo e mais sobre multiplicar formas de pensar e criar em artes performativas. O contributo de cada cidade foi muitíssimo importante para os diferentes momentos do projeto, porque o abriu a novas dimensões.
O Apoio da Instável - Centro Coreográfico (Porto) foi um dos mais marcantes para o projeto, por ser o primeiro e por ser aquele que o viabilizou. A residência de 2 semanas nos estúdios da Instável - Centro Coreográfico permitiu um desenvolvimento muito expressivo do projeto no momento que antecedeu a primeira apresentação pública de HIDE TO SEEK a 31 de maio de 2024 nos Palcos Instáveis no Teatro do Campo Alegre (TMP).
A residência artística do SUPRACASA da Braga’25 foi também uma oportunidade única para analisar o trabalho desenvolvido e projetar o que ainda iria acontecer em 2025, em atividades de mediação cultural, residências artísticas e apresentações públicas.
Como é apresentar uma peça tão densa e investigativa em contextos culturais tão distintos como Braga, Porto, Ponte de Lima e São João da Madeira?
Julgo que a dança, por ser uma linguagem não verbal, consegue sempre comunicar de forma muito diferente com cada pessoa do público. Ela é fruída, entendida e construída também por esta co-presença e olhar atento. A dança complica-se e descomplica-se assistindo, falando e participando nela, daí termos realizado tantas atividades de mediação de públicos (performances-conferência, worshops, palestras), como forma de mostrar que nem tudo o que é denso é necessariamente difícil ou distante.
Destaco a apresentação com 180 alunos do ensino secundário no Teatro Diogo Bernardes em Ponte de Lima, como um esforço bem-sucedido de aproximação das camadas mais jovens às artes performativas.
De que forma o Hide to Seek contribui para o teu percurso enquanto artista e investigador? Já estás a pensar nos próximos passos?
Julgo que HIDE TO SEEK foi a peça mais impactante no meu percurso, pois achava que a minha investigação corria o risco de estagnar definitivamente. Este projeto abriu a minha criação-investigação a novas práticas do corpo, lançando sementes para próximos projetos como MANUAL DE DEFESA.
Para já, o próximo passo é a apresentação da peça HIDE TO SEEK na 40ª edição do Festival of International Alternative Theater em Podgorica (Montenegro), com o apoio à circulação da Fundação GDA.
E em relação à BANQUETE, que fundaste e integras - que caminhos futuros se desenham para a estrutura?
A BANQUETE continuará o seu trabalho com novas criações em 2026 e 2027 e lançar-se-á em novos desafios, nomeadamente na programação de artes performativas. Brevemente sairão notícias sobre os próximos projetos da BANQUETE.
Foto: © Lais Pereira
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