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Nada permanece, tudo se transforma - a música segundo André Carvalho

Por

 

Pedro Mendes
23 de Outubro de 2025

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Nada permanece, tudo se transforma - a música segundo André Carvalho

Compositor e contrabaixista de sólida carreira, André Carvalho tem vindo a afirmar-se como uma das vozes mais singulares da música contemporânea portuguesa. Depois de projetos como Lost in Translation e The Garden of Earthly Delights, regressa agora com Of Fragility and Impermanence, um álbum que mergulha na delicada fronteira entre composição e improvisação, entre o acústico e o electrónico, entre o íntimo e o universal.

Gravado após uma residência artística no Centro Musibéria, o disco reúne músicos de diferentes universos, José Soares, Raquel Reis, Samuel Gapp e João Hasselberg, num diálogo que se constrói a partir da vulnerabilidade, da efemeridade e da escuta atenta.

Em conversa com o Coffeepaste, André fala sobre o modo como a parentalidade, a mudança e o tempo moldaram o seu pensamento musical, o equilíbrio entre estrutura e espontaneidade, e o prazer de descobrir, em palco, novas formas de dizer o mesmo som.

O título "Of Fragility and Impermanence" fala de efemeridade e vulnerabilidade. Como é que essas ideias se traduzem na tua música?
Essa é uma excelente questão. Antes de mais, gostaria de referir que estas duas ideias - vulnerabilidade e efemeridade - têm estado muito presentes na minha cabeça recente, sobretudo nos últimos cinco anos. Foram anos de muitas mudanças, alegrias e frustrações e também de evolução e crescimento. Creio que estes conceitos se tornaram próximos por ter vivido experiências que me levaram a observar a vida de um lugar mais “afastado” tipo "visão de helicóptero", procurando compreender temas como a parentalidade, a mudança, a infância e o crescimento, mas também a morte e, em última instância, a importância da vida.

A forma como tentei traduzir estes elementos foi justamente pensando em cada um deles e observando interiormente como poderia representá-los musicalmente. Partindo de um grupo com uma formação pouco habitual - saxofone, violoncelo, piano, contrabaixo e electrónica - e reunindo músicos de universos distintos mas que aqui se cruzam (José Soares, Raquel Reis, Samuel Gapp, João Hasselberg e eu), procurei explorar as nuances e características únicas que cada um poderia acrescentar às composições.

A música, de forma geral, é estruturalmente bastante livre e aberta. O processo criativo partiu de várias ideias que compus e que foram posteriormente desenvolvidas durante uma residência artística no Centro Musibéria. Durante essa semana tivemos a oportunidade de experimentar, gravar e, pouco a pouco, o som do grupo foi tomando forma. Essa construção, contudo, mantém-se em constante mutação: sempre que nos apresentamos ao vivo, descobrimos novas soluções e novos caminhos.

Quis também trazer à superfície elementos individuais de cada instrumento, muitas vezes menos comuns na linguagem musical e por vezes considerados “não convencionais”. Nesse sentido, tentei que fossem usadas diferentes técnicas que desafiam as normas habituais, como técnicas estendidas nos instrumentos de cordas e saxofone, piano preparado, live sampling e processamento de sinal. Tudo isto dentro de uma linguagem que é a minha - navegando entre momentos de contemplação e de tensão.

Cada faixa funciona como uma meditação independente. Como escolheste os temas que querias explorar?
Sim, cada faixa funciona como uma meditação independente sobre diferentes temáticas. A escolha foi bastante natural, porque se trata de assuntos que estão presentes na minha vida ou sobre os quais reflito com frequência: a infância, a parentalidade, a mudança, a efemeridade, a passagem do tempo, o envelhecimento, o significado da vida, ou ainda a morte.

Trabalhas na fronteira entre composição e improvisação. Até que ponto o improviso molda a forma final das peças?
Molda de forma muito vincada. A composição é fundamental para mim - adoro escrever e, nos últimos anos, tenho-me envolvido em vários projectos que cruzam a música com o cinema, o teatro ou a dança. Mas a improvisação também ocupa um lugar especial e central: cresci musicalmente em contextos onde ela era uma presença constante e aprendi a entendê-la como uma forma de criação em tempo real, em contraste com a composição, que é calma, planeada e desenvolvida ao longo do tempo.

Por isso, para mim é essencial que a espontaneidade típica da improvisação esteja sempre presente. A improvisação abre espaço a momentos que não poderiam surgir se estivessem definidos na partitura. Para mim, o grande desafio sempre foi o mesmo: como equilibrar estas duas dimensões, evitando que pareçam universos separados, e procurar uma linguagem em que os limites se esbatem - ao ponto de, por vezes, não se perceber o que é composto e o que é improvisado.

É claro que existem peças mais escritas e outras mais abertas, mas o objectivo é sempre criar material flexível e adaptável ao momento. E é importante sublinhar que esta abordagem só é possível graças aos músicos com quem me rodeio, que partilham esta visão, contribuem activamente para a criação e estão empenhados em tornar cada performance única. Estou profundamente grato pelo enorme contributo do Zé, da Raquel, do Samuel e do João, e estou certo de que este álbum não seria o mesmo sem a presença de cada um deles.

Misturas acústico e electrónico e exploras sons pouco convencionais. Como escolhes os elementos que entram no teu universo musical?
Na verdade, estou sempre aberto a que os próprios músicos contribuam e sugiram novas abordagens. É claro que, sendo eu adepto de explorar sons menos comuns, por vezes sou eu quem propõe certas ideias ou defino indicações na partitura. Mas gosto igualmente de ser surpreendido - e que eles próprios se surpreendam - ao trazerem sonoridades que talvez nunca tivessem imaginado num contexto musical, ou ao recorrerem “àquele som” que só eles conhecem e que nunca “saiu” da sua sala de estudo e prática musical.

O primeiro single inspira-se numa reflexão de Heraclitus. Que outros conceitos filosóficos ou literários te inspiram na criação musical?
Creio que, ao contrário de trabalhos anteriores, este álbum não nasceu de uma inspiração directa num conceito filosófico ou literário específico. Naturalmente, tudo aquilo com que me rodeio - livros, ideias, obras de arte - acaba por me influenciar de forma subtil, mas neste caso a motivação foi sobretudo interior. Mais do que um diálogo com referências externas, “Of Fragility and Impermanence” resulta de uma observação íntima, de uma tentativa de traduzir sonoramente certas ideias, emoções e estados de espírito que habitam dentro de mim.

Colaboraste com José Soares, Raquel Reis, Samuel Gapp e João Hasselberg. Como se dá o diálogo criativo com cada um deles?
Já toquei com praticamente todos eles no passado e, mesmo com o João Hasselberg - o único com quem nunca tinha tocado -, sou muito amigo e conhecedor do seu trabalho. Apesar de virem de universos diferentes e terem experiências contrastantes, são todos músicos profundamente conhecedores do seu instrumento, com um background musical muito vasto e, sobretudo, atentos ao que os rodeia.

Por isso, muitas vezes não há propriamente algo que se estabeleça ou algo que se diga, mas sim espaço que se cria para que as coisas aconteçam de forma espontânea e natural. Chamei-os porque confio plenamente no seu julgamento musical, e é dessa confiança que surge grande parte do diálogo criativo. A maior parte das ideias brota de forma orgânica, durante a própria experiência de tocar juntos.

A tua experiência em música para cinema e teatro influencia o teu trabalho pessoal?
Sim, creio que sim. Estamos sempre influenciados por tudo o que nos rodeia, quer estejamos conscientes disso ou não. Estou certo de que a experiência de escrever para meios visuais e muitas vezes narrativos, como o cinema ou o teatro, me influencia imenso.

Aliás, os meus três últimos álbuns têm uma componente visual, conceptual e narrativa bastante presente. Muitas vezes, as minhas ideias musicais surgem de imagens que imagino, histórias que me aconteceram ou reflexões sobre determinados conceitos. Por isso, seria inevitável que este novo trabalho não tivesse influência das outras formas artísticas.

Por exemplo, há um tema no álbum intitulado “The Journey of Kanji Watanabe”, inspirado na história do personagem Kanji Watanabe, do filme “Ikiru” de Akira Kurosawa. O filme conta a história de um homem que descobre ter uma doença terminal e como decide viver os seus últimos momentos. Neste caso específico, fui inspirado pelo filme, pela sua fotografia, pela representação dos actores, mas acima de tudo pela história que conta e pela reflexão que me levou a ter.

Há por exemplo outro tema no álbum, tocado a solo pela Raquel Reis, intitulado “Study for a Bullfight #4” que é uma ode ao trabalho de Francis Bacon, em particular os seus quadros #1, #2 e #3, que abordam a ideia de vida e morte.

Relativamente a música para cinema, esta tem características muito específicas, em que a imagem - ou, mais amplamente, a história, a personagem, o ponto de vista de cada cena e o arco narrativo - muitas vezes lidera a criação musical. Todas estas ideias e formas de observar influenciam diariamente no meu trabalho pessoal.

Que desafios e surpresas esperas nas apresentações ao vivo deste álbum?
Alguns temas apresentam desafios na conjugação das várias partes, mas creio que são pormenores que se ultrapassam com ensaio e preparação. Destaco estes temas em particular porque têm características composicionais muito específicas que os diferenciam do repertório habitual.

Quanto às surpresas, adoro ser surpreendido, por isso procuro deixar fluir e permitir que as coisas surjam de forma natural durante a performance.

Aproveito para deixar o convite para os concertos que temos para já agendados: Guimarães Jazz (8 de Novembro 2025), Festa do Jazz - CCB (21 de Dezembro 2025), BOTA Anjos (28 de Fevereiro 2026) e Teatro Municipal de Bragança (18 de Junho 2026).

Depois deste álbum, que caminhos ou projetos estás a explorar?
Essa é uma excelente pergunta. Em relação aos projectos que lidero, gostava de dar continuação ao meu trio “Lost in Translation”, formado pelo José Soares e pelo André Matos, gravando o terceiro álbum do grupo. Adoro tocar com o André e com o Zé e já temos uma longa história juntos que quero continuar.

Tenho também a ideia de gravar outro trio, que já se apresentou ao vivo algumas vezes, composto pelo João Hasselberg e pelo José Soares. É um trio que combina electrónica com saxofone e contrabaixo, estando aberto a que cada um explore outros instrumentos, gadgets e “adereços”. Este projecto poderia, de alguma forma, cruzar-se com meios audiovisuais.

Paralelamente a estes dois projectos, quero continuar a escrever música para cinema, um meio que me tem dado grande satisfação e onde me sinto motivado a aprofundar, conhecer mais pessoas e explorar novas possibilidades. O mesmo se aplica a outros cruzamentos artísticos, como o teatro ou a dança.

Mais tarde, gostaria também de desenvolver um projecto a solo em que não tocasse necessariamente contrabaixo - ou pelo menos não de forma exclusiva. Tenho muita vontade de explorar elementos electrónicos, texturas, timbres e ambientes, recorrendo a outras formas de produção sonora, incluindo computador e instrumentos analógicos.

Foto: © João Hasselberg

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