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A sobreposição visual de grelhas brancas (parte efeito da acomodação da peça estreada em Avignon, em julho, ao palco da Culturgest), encarcera, recorta e desdobra as figuras. Quarto hospitalar, court de ténis, biombos, jaula, as miragens dessa matriz suportam as histórias que garantem a noite seguinte nas 1001 noites de NÔT, de Marlene Monteiro Freitas. O quadriculado arma o palco como máquina de adiar a morte do espetáculo. “Espetáculo”, aqui servido ao quadrado, à voracidade dos ‘reis’ sentados que assistem e exigem entrega e resistência por turnos. Essa presença programada (escuta sugestiva de “Computer blue”, de Prince, enquanto nos sentamos) dita que já lá estejam todos, em vigília, prontos para o nosso querer ver e ouvir outras tantas Xerazades.
Um ditador de bolso (Rui Paixão em clowning ácido e assertivo), instala-se em cima de um banco como cicerone. Num monólogo mudo agita a impotência fálica dos grandes discursos, enquanto se aproveita da disponibilidade para sermos animados. Pede um minuto de ovação ou de silêncio; sobe e baixa o volume da sala; coreografa a nossa prontidão para a obediência, porque pagámos para ver alguém no palanque a bater-se pela premissa de nos entreter – ironia que NÔT subverte para fabricar aos seus primeiros momentos, a partir do nosso reflexo condicionado. O riso extraído será combustível, o incómodo (induzido ou projeção nossa) também.
Como prova escatológica do entretenimento, um penico vira gag fisiológico e chapéu, circula como moeda de troca com o público. Entre excreções imaginárias, cavalgar quem se ofereceu, esguichar-nos com água, o mimo dá a provar e devolve cru, o contrato implícito entre apoio e cilada. O número respira uma náusea que NÔT não pretende arejar.
Propagando-se, a partitura religa figuras, danças, materiais, substâncias e sons, numa sinestesia involuntária: quem limpa o espelho não produz o som da esfrega; quem bate com a toalha, faz de palheta no baixo; quem limpa, suja. Quem sujeita o corpo não é quem vive. Mover-se não é sinónimo de agir. A ação e o efeito divorciam-se como vítimas de ventriloquismo; de uma alienação tátil assimétrica à nossa presença inane, ávida por dispositivos estilizados e corpos que animem e articulem as nossas pulsões acanhadas.
Alarmes, metais, rufos, arrufos, luzes intermitentes (iminência entre perigo, noite e dia), atravessam o coro militar-doméstico, de presenças síncronas e ansiedades rítmicas, no limiar da síncope. Quando as máscaras se duplicam, a primeira mascarada cai; consagração do sacrifício íntimo ao histórico. É substituída pela próxima cara a que acaba por se juntar – intermutável, pessoal e transmissível. A febre orquestrada e a composição expandida, galvanizam e pulverizam os oito. A criação instala, sustém e exaura uma evidência sistémica que serve de nervos à obra: que as narrativas vitais, subjetivas, podem ser roubadas.
Lavadeiras vendadas abrem camas e revelam lençóis manchados. Cada dobra e mudança de enxoval destapa e higieniza um crime e a memória. O quarto – e o corpo – serão arquivos dessa violência repetida.
A multidão de sinais garante que ninguém adormece, mesmo que a fadiga e a razia sejam formas dançantes. Nas horas mortas, o regimento encosta a cabeça aos tambores, imagem de um corpo coletivo esgotado, que mal repousa nem desperta ninguém. Onde Mal – Embriaguez Divina (2020), erguia uma tribuna vertical à ambiguidade e dormência moral, NÔT baixa-nos ao nível dos efeitos sobre o outro, da gestão autoritária, militar e social dos corpos. Entre a ordem e o transe, o corpo parece dançado por fora – técnico, obediente, político, místico e animal; dar o litro (e o sangue) será uma estranha forma de urbanidade entre todos nesse regime.
Mais do que literalizar o sangue e a qualidade industrial do movimento, NÔT oferece condições de legibilidade da violência: entrega-nos a imagens mentais que ameaçam constantemente implodir a grandiloquência do espetáculo que pedimos para ver, para não ter de ver. Com uma frontalidade exigente, acelera a mecânica neural das questões: de que vazio se ocupa o ritmo? que realismo se deve à repetição? que histórias contamos para salvar das imagens?
Ordem ferida
A rigidez muscular e o porte austero, por vezes com ar de motim interior contra o próprio impulso, concentram uma dignidade árida que humaniza e resiste precisamente nessa rigidez, quando o corpo parece possuído. Postura que revela e oculta o motor do gesto. Uma existência coreografada: tão simulada como irreprimível. Falte a auctoritas do corpo sobre si (ou reste apenas ela), o jogo passa por ceder e tomar o impulso para reapropriá-lo. Há um valor estético, icónico, imenso, torcido. A erudição (Stravinsky, as nuances líricas) serve essa estranha prova de vida onde instinto, biologia e inconsciente, não bastam. A dúvida sobre quem age e com que verve, não se resolve. Trabalha-nos, extenua, consome. Vive já nisso.
Na conversa pós-espetáculo na Culturgest, no contexto do lançamento de Dança Fora de Si, de Alexandra Balona (dedicado à coreógrafa), MMF partilha uma impressão recorrente de coreografia como uma espécie de função digestiva: «Os materiais são comida. Come-se, digere-se. O espetáculo são as fezes, o resultado visível. Uma matéria comum, [mas] com características próprias». Uma abertura à impureza, alquimia e resistência ao «lisível».
O enunciado funciona mais como método do que boutade: processar imagens, referências, materiais, até sobrar matéria comum, não dócil, indizível (estratégia tanto mais relevante em NÔT, onde a sensação de familiaridade com a coletânea pode arrastar algumas leituras para a representação de personagens esgarçadas, em detrimento de uma abertura simbólica).
O desconforto de alguma receção virá desse ir atrás de um “direito a ser entretido” e “bem-enganado”, perante o realismo feroz desta dança que adia o fim, contando-o no corpo, noite após noite. O spoiler que se vê para controlar – sofrendo –, o momento da desagradável surpresa. «Tiny people, can you see me? Can you hear me?», suplica que ouviremos desse lugar, desse Mercy Seat, de Nick Cave, desolado e catártico. NÔT destapa a servidão e impotência que existe no nosso riso ocupado. Enlouquece por querer perante o real. Plot twist de ponta-a-ponta, não é Xerazade, mas o rei (como nós), que sobrevive a mais uma noite.
Estreado no Festival d’Avignon (05/07); apresentado na Culturgest (11-14/09) e TMP (19-20/09/2025).
Foto: © Christophe Raynaud de Lage
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