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O circo como fricção: conversa com Margarida Montenÿ

Por

 

Pedro Mendes
29 de Julho de 2025

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O circo como fricção: conversa com Margarida Montenÿ

No cruzamento entre o risco e o pensamento, entre a suspensão e a resistência, Margarida Montenÿ tem vindo a afirmar-se como uma das vozes mais singulares do circo contemporâneo em Portugal. Nascida em Faro em 1999, com formação no Chapitô e na Salto – International Circus School, o seu trabalho atravessa o corpo como linguagem, como lugar de fricção e de escuta, explorando constantemente os limites entre técnica e falha, virtuosismo e vulnerabilidade.

Vencedora do Prémio Jovens Artistas do Coliseu Porto Ageas na área das artes circenses, Montenÿ tem construído um percurso marcado pela experimentação, pela colaboração e por uma clara recusa de fórmulas. Criações como BLUE, Simulacro ou Ordessa demonstram uma inquietação constante em repensar o lugar do corpo na cena e o que pode ser hoje o circo — não como espetáculo fácil, mas como campo de pensamento, insistência e risco.

Nesta entrevista, falámos com Margarida sobre o seu percurso, as suas escolhas estéticas e políticas, o impacto do reconhecimento institucional e os projetos que está a construir. Com uma voz clara e desafiante, partilha connosco não apenas os bastidores do seu trabalho, mas também a visão crítica de uma artista que não tem medo de cair — e de insistir.

Como começou o teu interesse pelo circo e pelas artes performativas?
Interesse é talvez uma palavra demasiado elegante. O que aconteceu foi um acumular de pequenos acidentes. Acho que foi um encontro mais intuitivo do que consciente, não tenho uma história romântica de infância ligada ao circo, mas desde cedo que o corpo foi um lugar de descoberta, de teste, de expressão. O que havia era essa relação com o corpo — intensa, intuitiva, por vezes difícil — e uma vontade de o compreender para além da sua função, a curiosidade de entender os seus limites e potências.

O primeiro contacto com o circo surgiu mais tarde, e foi talvez um encontro de fricção. A descoberta de um campo onde o corpo podia ser expressão e pensamento ao mesmo tempo. Um espaço onde risco, beleza e falha coabitam. Isso interessou-me muito: um corpo que se expõe, que cai, que falha, que insiste. Sempre fui fascinada por esse lugar onde o corpo é também pensamento, e descobri ali um território onde o corpo produz discurso mesmo antes de saber o que quer dizer, e era como ouvir uma música desconhecida com uma cadência que me era próxima.

O circo deu-me ferramentas para trabalhar o rigor, mas também para abrir um espaço de liberdade, para o poder sabotar consecutivamente.

Não foi uma paixão, foi uma colisão. E nisso tudo, alguma coisa começou a fazer sentido, ou pelo menos a produzir movimento, o que já não é pouco.

O resto é só um acumular de quedas — e de insistências.

O que te levou a escolher a acrobacia aérea como especialização?

Foi uma aproximação progressiva, por afinidade. A escolha foi menos uma decisão do que uma consequência.

Interessa-me muito a tensão entre controlo e colapso, entre coreografia e sobrevivência. Estar suspenso é também um modo de estar em risco — de ter de ouvir o corpo em tempo real, sem filtros e sem grandes metáforas. É quando o corpo começa a negociar com o cansaço, com o medo, com a falha, que as coisas se tornam interessantes.

Claro que há o virtuosismo, claro que há a técnica, mas o que me interessa mesmo é quando a técnica começa a falhar. Quando já não sei se estou a executar ou a resistir. É aí que aparece alguma coisa que vale a pena continuar a procurar.

Que impacto teve a formação no Chapitô e na Salto na construção da tua linguagem artística?

As formações são sempre zonas de fricção. No Chapitô aprendi a olhar para a criação como uma possibilidade de prática relacional. E na Salto, talvez, a desobedecer à técnica por dentro. São dois momentos que me ensinaram coisas diferentes: um sobre generosidade, o outro sobre precisão.

Sentes que houve algum momento-chave que marcou uma viragem no teu percurso artístico?

Talvez não uma viragem, mas vários pequenos desvios. Acredito em acumulações, em infiltrações lentas, em contaminações graduais. Penso que, para todos os efeitos, o meu percurso artístico acaba de começar. Cada projeto obriga-me a reformular o que pensava saber sobre o corpo, sobre cena, sobre linguagem. Colaborar com outras pessoas, sobretudo com artistas que admiro, tem sido o maior motor de transformação, a oportunidade de beber dos seus imaginários e de encontrar uma linguagem comum. Encontrar estas pessoas e lógicas tem sido o meu maior interesse e combustível dentro deste percurso.

O que significa para ti ter vencido o Prémio Jovens Artistas do Coliseu Porto na área das artes circenses?

É um gesto de reconhecimento que recebo com gratidão, mas também com espanto. Não por falsa modéstia, mas porque sinto que o trabalho que faço habita uma zona de incerteza — não procura agradar, nem cumprir expectativas. Fico contente que essa proposta tenha sido escutada. E mais do que isso, que uma linguagem de circo menos convencional, menos “espetacular”, possa ser também validada como artística e relevante.

Há algo de legitimador num prémio — alguma coisa que diz “estamos a ver o que estás a fazer”. E isso tem peso, sobretudo numa área como as artes circenses, que ainda é muitas vezes tratada como periférica dentro do panorama artístico. O meu trabalho habita mais uma zona de ruído. Ser ouvida dentro desse ruído é um privilégio e uma responsabilidade. Não de representar ninguém, mas de continuar a cavar os meus próprios buracos.

Acho que, para nós, pessoas do meio, é-nos claro que o circo é um organismo vivo, que respira, que se reinventa e que testa os seus limites. Mas infelizmente ainda existe um grande preconceito sobre aquilo que pode ou não ser enquadrado dentro deste rótulo. Isso obriga-nos, muitas vezes, a nomear de formas alternativas aquilo que, na verdade, é a base do nosso trabalho. Há ainda um caminho longo a fazer em Portugal no que diz respeito à visibilidade e legitimidade do circo enquanto área performativa como qualquer outra.

O prémio não muda o meu trabalho, mas ajuda a criar contexto à sua volta. E isso, para quem está a começar, é precioso.

Referiste que este prémio é o reflexo de um esforço coletivo - podes falar-nos um pouco sobre essas colaborações e equipas?

Sim, absolutamente. É-me muito importante dizer que a história do circo em Portugal é grande para a frente e para trás. Este prémio é só possível por ser reflexo de um esforço coletivo de muitos anos de trabalho, de famílias, companhias, estruturas, artistas que têm tecido esta rede de apoio e de impulso para que prémios como estes possam começar a existir em Portugal.

E no meu percurso também: há criadores, técnicos, programadores, professores, colegas, fantasmas, cúmplices – pessoas que me desafiaram, que me empurraram para fora do confortável, que me obrigam a reformular ideias, métodos, certezas. Falo de colaborações que não são apenas funcionais, mas que nascem de uma escuta mútua e de uma vontade partilhada de investigar, de compreender e cartografar os movimentos do circo em Portugal. São equipas — muitas vezes precárias, muitas vezes sustentadas por generosidade e insistência — que fazem com que os projetos avancem, mesmo sem garantias, mesmo quando tudo é incerto. O meu trabalho vive dessas relações. Não existe fora delas.

Achas que este tipo de reconhecimento pode ajudar a dar mais visibilidade ao circo contemporâneo em Portugal?

O reconhecimento é importante, mas não basta ser visto — é preciso ser compreendido, e financiado.

Queria dizer que espero que sim, não por minha causa, mas porque há uma geração inteira a trabalhar com seriedade, inteligência e coragem dentro do circo. E muitas vezes ficamos numa espécie de limbo institucional, a precisar explicar o que fazemos, a traduzir os nossos próprios gestos. Quando um prémio destes legitima esse trabalho, está também a abrir espaço simbólico e prático para que mais gente possa “arriscar” (se bem que arriscar nem deveria de ser a palavra) na programação de circo em Portugal, a pedir que se abra espaço para projetos, nem sempre em espaço público, nem sempre para públicos infantis.

Há cerca de um ano, ouvi o Bruno Martins falar sobre uma “rede sem rede”. É uma imagem certeira. Estamos a tentar construir estrutura enquanto nos penduramos nela. Não se trata só de visibilidade — trata-se de criar condições. Condições para que o circo possa existir sem ter de pedir desculpa, sem ter de se disfarçar de outra coisa para caber na agenda.

“BLUE” é uma criação muito pessoal e física - o que quiseste explorar neste espetáculo?

O BLUE ainda me é um projeto muito íntimo e emotivo. Surgiu de um convite da Mostra Estufa, e eu quis aproveitá-lo como um exercício de questionamento da corda vertical — a disciplina em que me formei: queria desmontá-la, sabotá-la de certa forma, tirar-lhe os artifícios, o brilho, o truque.

Tinha o desejo de questionar a ideia de “solo” — sobretudo aplicada às disciplinas aéreas, onde quase sempre existe um rigger escondido, atrás de uma das pernas do teatro, a sustentar metade de um dueto que raramente se vê. A ideia não é particularmente nova, mas para mim fazia sentido trazer esse corpo para o centro da peça. Não só torná-lo visível, como presente.

Fiz questão que fosse um corpo feminino — e, por lhe ter retirado o conforto mecânico da desmultiplicação, tivemos que multiplicá-lo por três: a Catarina Corujeira, a Mercedes Quijada e a Carminda Soares. São elas quem me seguram durante todo o tempo da peça — há obviamente uma camada muito importante da peça que não é possível descolar dos corpos delas, da sua força e presença.

Através deste dispositivo, tentei também dilatar o tempo, romper com o ritmo típico de um “número” aéreo e perguntar até onde o meu corpo podia aguentar estar suspenso. BLUE constrói-se através de duas ações que coexistem: um corpo suspenso, cujo movimento é lento, leve, subtil, e um corpo coletivo — cru, resistente, veloz. São duas performances simultâneas, que tensionam entre si ideias de solo, de limite, de exposição. Foi um exercício sobre o tempo, o esforço, o afeto, o cuidado, o limite. E é-me estranho, bonito até, que um projeto tão pessoal esteja agora a circular e a encontrar ressonância.

Fala-nos um pouco de “SIMULACRO”, que criaste com Carminda Soares

Simulacro é um exercício de intimidade, repetição e resistência. Um corpo a dois, que se testa pela insistência, pelo atrito, pelo cansaço. Parte da fricção — literal e simbólica — entre dois corpos que se conhecem profundamente e que, em cena, ensaiam um encontro: passando por observações, vestígios de memórias, falhas, aproximações, simulações de um possível diálogo.

Durante grande parte do processo tentámos fugir daquilo que era a nossa relação pessoal, desviámo-nos para outras imagens, gestos, camadas, mas a certo ponto percebemos que não podíamos ignorar o que tínhamos nas mãos: a intimidade, a escuta, a confiança, a homoafetividade. E que havia força em levá-las para cena — sem as dramatizar, mas sem as esconder.A peça vive entre o desgaste e o cuidado. Entre duas forças que se apoiam e se confrontam. É um exercício sobre o encontro constante, que pode ser suave ou intenso, mas que mantém sempre uma tensão real e honesta.

Que aprendizagens retiraste das colaborações com companhias como a Erva Daninha e o Ballet Contemporâneo do Norte?

São duas experiências muito distintas e, por isso, difíceis de juntar numa só resposta.

Com a Erva Daninha comecei a “trabalhar” ainda antes de ter terminado o Chapitô — era um bebé autêntico. Eles andam a ver-me a patinar, a tropeçar e a cair há quase 10 anos. Acho que há muito mais aprendizagens aí do que aquelas que eu própria consiga percecionar, é realmente uma âncora conviver e trabalhar com eles, é ao mesmo tempo um apoio e um abanão.

Já com o Ballet Contemporâneo do Norte é uma relação mais recente, principalmente através da peça Alba, criada pela Susana Otero, em conjunto com a Orquestra Filarmónica Portuguesa, mas também por causa do RE=INICIAR — Encontro de Artes Performativas. Foi uma experiência diferente, onde pude estar mais próxima de uma linguagem mais formal, estruturada, que me desafia a ver o movimento e a performance de outra forma.

São aprendizagens que vêm de contextos e abordagens muito distintas.

Atualmente, quais são os temas ou questões que mais te interessam explorar artisticamente?

O que me interessa agora é trabalhar a partir da reação. Procurar contextos, dispositivos ou relações que me obriguem a responder, a estar disponível para o que acontece, sem prever tudo. Tenho procurado formas de aceder à verdade — isto é, aquilo que escapa à composição, ao controlo. Tenho pensado muito também no impacto, no impulso, no corpo como algo que se transforma no encontro com a matéria, seja ela o chão, o ar, alguém, uma estrutura, ou sobre como é que se constrói verdade a partir do embate. Encontrar esse território de constante negociação.

Volto recorrentemente às ideias de risco, de cadência e de desgaste. E à pergunta sobre como habitar o corpo feminino que tenho — não só como ele é percebido, mas como resiste, como se expõe, se defende ou se entrega.

E depois há temas que estão sempre lá: a tensão entre ficção e verdade, o poder e a impotência e, inevitavelmente, o desejo — não como adorno, mas como motor.

Tens algum novo projeto em desenvolvimento que possas partilhar connosco?

Na verdade, sim — estou neste momento em criação com Clamor. Ainda estou a tentar perceber o que quero dele e o que é que ele quer de mim. É um projeto que parte da mecânica dos sinos de contrapeso e da vontade de os retirar das suas retóricas habituais — do ritual religioso, do alarme, da cerimónia oficial.

Interessa-me perceber como é que estes objetos — os sinos — carregam consigo um imaginário coletivo, histórico e simbólico tão denso, e como os posso colocar em diálogo com o corpo.

Clamor vai estrear em dezembro, no âmbito da Outdoor Arts Portugal, em Ílhavo e em Pombal. Ainda não sei exatamente o que é que ele é, nem o que é que precisa de mim — mas estamos a tentar decifrar-nos mutuamente. É talvez um projeto sobre eco, sobre ruína, sobre fratura — mas também sobre memória, sobre tradição e sobre identidade.

Pode ser um grande flop, mas, por agora, é-me um grande desafio.

Como imaginas o futuro do circo contemporâneo em Portugal - e qual gostarias que fosse o teu papel nesse futuro?

Acho que não sou ninguém para poder prever o que será o futuro do circo contemporâneo em Portugal — espero, acima de tudo, que ele me surpreenda. Que seja mais plural, mais permeável, mais irreverente — que me prove errada de tudo aquilo que creio saber sobre ele e que continue a reinventar-se sem pedir desculpa.

Foto: © Lara Jacinto | Coliseu Porto Ageas

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