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O problema da última milha pode ser traduzido para muita coisa na nossa vida. Apresentou-mo o Luís Belo, na sequência da história de uma viagem minha: aparentemente, no envio de encomendas, levar algo de um país para outro é relativamente barato, transportá-lo entre cidades, também. É a “última milha”, a chegada ao destino, a última parte do percurso, quando o caminho se torna único e pessoal, quando não se dirige para a cidade plural mas para a morada particular, que custa dinheiro; é este último quilómetro e meio simbólico que encarece o envio, que o complexifica.
E todos momentos da nossa vida em que reconhecemos que chegar mais longe numa reflexão, numa relação, na exposição de uma ideia é, de facto, a parte mais difícil. Penso: somos tantos, os que desistem antes deste momento. Os que começaram a escrever um romance e não o terminaram, os que começaram um mestrado e não o terminaram, os que saíram de casa e desistiram a meio caminho do rio. Somos tantos os que desistem, deixam tarefas a meio, se entusiasmam com outras coisas, sem o compromisso de fazer não apenas o suficiente, mas ir além; arriscar ou confiar que há algo que ainda não conhecemos. Ir ao fundo. Deixar que a surpresa apareça de gestos quotidianos: como preparar o almoço, ou arrumar a casa, ou ir para o lugar onde trabalhamos, ou dar continuidade a um pensamento começado.
Numa sequência de ensaios, no teatro, levantamos os princípios das cenas, e tudo se torna claro; a situação é evidente, as relações são visíveis, o tempo é certo; então, começamos a aprofundar, a procurar subtilezas, a surpreender-nos na leitura que fazemos da cena, no jogo que propomos como actores – e, então, tudo se mistura e confunde. De repente, aquilo mesmo que se tinha tornado tão simples, ganha uma exagerada complexidade. Perdemo-nos, ou deixamos de compreender. Confrontados com esta sensação pensamos desistir, não percorrer a última milha. E, tantas vezes, o sentimento é tão profundo e tão difícil a viagem anterior, que podemos até julgá-la percorrida, sem que o esteja. Lembro-me de ensaios com o Luis Miguel Cintra em que uma cena parecia pronta, mas éramos puxados a ir ainda mais longe. Está muito bom, dizia, mas quero que fique genial. Ou, outra fórmula muitas vezes usada, e inspiradora para quem ouve: isto, agora, é trabalho de filigrana.
Quase como se fosse possível ver o invisível. A última milha, o último esforço, o lugar mais escuro da noite, o ponto mais fundo da gruta, a alma. Quem se atreve hoje em dia a tocar-lhe? A percorrer este caminho de vulnerabilidade e exposição, de erro, de espanto, de invenção. Este lugar onde não sabemos a que nos agarrar, por não haver guias para a alma, por não sermos Dante que encontra Virgílio, por ser o lugar original, o da origem, o do olhar ingénuo e disponível.
A verdade é que haverá sempre uma milha em falta no que fizermos; um lugar ainda mais escuro à espera de ser iluminado. Talvez o que conte seja o esforço ou a intenção de procurar ir mais longe. É que o problema da última milha nem é o de ser a mais difícil, o problema da última milha é que é possível desistir antes de a percorrer; passar ao lado da profundidade do que nos rodeia, tornar-se suficiente a superfície das coisas.
Foto de Guilherme Gomes, de um esboço de Gustav Vigeland.
BREVES CRÓNICAS DO TEMPO são pequenos episódios, registos, princípios de reflexão pelo dramaturgo Guilherme Gomes.
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