TUDO SOBRE A COMUNIDADE DAS ARTES

Ajuda-nos a manter a arte e a cultura acessíveis a todos - Apoia o Coffeepaste e faz parte desta transformação.

Ajuda-nos a manter a arte e a cultura acessíveis a todos - Apoia o Coffeepaste e faz parte desta transformação.

Selecione a area onde pretende pesquisar

Conteúdos

Classificados

Notícias

Workshops

Crítica

Artigos
Crítica

O que é que vês? Vermelho!

Por

 

Joana Neto
21 de Setembro de 2025

Partilhar

O que é que vês? Vermelho!

Que lugar ocupa a arte no sistema capitalista? O encenador Carlos Pimenta quer, a partir do palco, devolver ao público, esta pergunta. O espetáculo "Vermelho" é uma adaptação da obra do norte-americano John Logan, em que se interpela o lugar da arte e a dialética da arte contemporânea.

O discípulo Ken (Daniel Silva) e o mestre Rothko (João Reis) travam um diálogo filosófico sobre o lugar da arte.

ROTHKO. O que é que vês?

KEN. Vermelho

ROTHKO.E gostas?

KEN. Sim.

ROTHKO. Claro que gostas. Como podes não gostar? Toda a gente gosta de tudo hoje em dia (...) Cristo, quando alguém me diz que uma das minhas pinturas é 'bela' tenho vontade de vomitar!

ROTHKO. Eu estou aqui para parar o teu coração. Percebes isso? Eu estou aqui para te fazer pensar. Eu não estou aqui para te fazer pinturas bonitas.

Rothko está de costas para o público, sentado na sua cadeira, contemplativo.

A chegada de Ken é o início do conflito que marcará todo o espetáculo. O seu assistente será, na verdade, a sua derradeira batalha contra o esquecimento.

Ken, subjugado por um mestre que lhe afirma o seu poder de chefe, vai desbravando o seu lugar na pintura pelo exercício intelectual de pensar a arte. Apenas e só. Não fosse o mestre não querer saber, de todo, o que pinta, ou quem é, a não ser que tal lhe sirva para se ver a si mesmo. Rothko é patrão, pois então. Rocthko é mestre, pois claro. O tal que diz ao subordinado: "Eu não sou o teu rabino, não sou o teu pai, não sou o teu psiquiatra, não sou teu amigo, não sou teu professor. Sou o teu patrão. Percebes?” Recorda-lhe , sim, que não é seu amigo, é seu patrão, impõe-lhe um horário de bancário, das 9h às 17h, explica-lhe que lhe trará comida e cigarros e o que quer que ele queira. É pegar ou largar.

Pintor favorito? O maldito Jackson Pollock. E Nietzsche? "A origem da tragédia"? E Freud? E Jung? Rothko grita a plenos plumões, porventura para esconder a vergonha do seu sentimento de decadência perante a alvorada da mudança.

Pergunta a Ken se conhece Byron, Wordsworth, Sófocles, Schopenhauer. Vasculha filósofos e dramaturgos para confrontar o discípulo com a sua débil formação nas Belas-Artes. E Shakespeare? Pelo menos, Hamlet. "Cita-me Hamlet. Agora." "Ser ou não ser, eis a questão", ousa, timidamente, o aprendiz. "É essa a questão?". "Não sei."

Rothko não quer que a sua pintura seja convertida no adorno por cima do sofá de sala de jantar, muito menos se transforme numa disputa de vizinhas burguesas, só pelo gosto de exibirem, mesquinhamente, o poder do dinheiro.

Rothko, contudo, digladia-se com as suas contradições e é Ken quem o confronta com a sua hipocrisia. Por muito que grite: “Espero pintar algo que arruíne o apetite de todo o filho da puta que algum dia faça uma refeição naquela sala”, fá-lo como se quisesse expurgar a culpa de ser refém do mercado que lhe enche os bolsos.

A verdade é que Rothko vai vender os seus quadros ao restaurante "Four Seasons", frequentado por super ricos, os administradores, os investidores, os que fazem tilintar os copos.

O mesmo mestre que procura o interior, o interior de um lugar para pintar e para trazer a luz à pintura, um lugar que possa iluminar uma cave, como aquele Caravaggio de Santa Maria del Popolo, em Roma. A luz exterior que rejeita pode assustar as suas pinturas em diálogo.

Rothko vomita frases, incessantemente, como se o mundo fosse só ele, como se o silêncio lhe trouxesse uma verdade incómoda incapaz de suportar, tentando que o falso deslumbre consigo mesmo lhe alivie a impotência. A prepotência mascara a mágoa do envelhecimento e escuda-o desse admirável mundo da Pop Art, das latas de Andy Warhol. Essa nova era na pintura torna-o passado. O mesmo passado, o do Impressionismo, o tal que, um dia, com o gosto sádico de um contemporâneo, o seu Expressionismo abstrato, ultrapassou.

A relação de poder, a violência da humilhação constante do seu discípulo, é também um exercício de procura desse lugar de disputa, de conflito, em que Rothko espia fantasmas e se encontra, afinal, a partir de um aprendiz que lhe expõe o seu exacerbado fatalismo.

O aprendiz confronta-o com a comparação, que se percebe incómoda para o mestre, entre a paixão patente na obra de Jackson Pollock, "selvagem, rebelde e bêbedo e descontrolado" e a disciplina, a organização de Rothko, "intelectual, rabínico, sóbrio e controlado". Uma comparação que surge a Ken depois da leitura, recomendada por Rothko, da obra "A origem da tragédia de Nietzsche". Rothko tenta convencer Ken que perdeu o ponto, que descurou a complexidade humana, neste seu exercício de polarização simplista entre ordem e caos. Mas, afinal, Ken compreende esta necessidade de Apólo e Dionísio pulsarem juntos. A simbiose que reivindica Rothko, também já a compreendera ainda que não elaborasse sobre ela.

Rothko teme o preto, Ken o branco. Rothko transforma esse temor numa reflexão artística. Ou tenta. Ken explica-a a partir de uma experiência pessoal traumática, a morte dos pais num dia de neve. Sem mais.

A arte surge descrita por Rothko como forma de captar momentos efémeros. Poder-se-ía dizer de escapar à morte, à temível ausência de luz. Ken, na sua juventude, não está refém de fórmulas para ocupar esse lugar desconhecido da arte.

Mas todas as afirmações são reflexões em mutação no texto de Logan.

Neste ir e devir, fraqueza e força alternam também. Assim como as cores, as cores de Rothko.

E que vermelho é aquele que Ken vê desde a primeira hora? O da paixão, do vinho tinto, das rosas vermelhas, do baton vermelho, das tulipas, das maçãs, dos tomates. Ou, como Rothko, o vermelho da tempestade de fogo em Dresden à noite, ou o sol em Rousseau, ou a bandeira em Delacroix?

Assim como assim, no fim, ainda é esse vermelho que Ken vê.

E há sempre o tempo de se largar a mão a um discípulo. O tempo de Rothko já não ter nada a perder, esse tempo tinha passado... O tempo era, agora, todo de Ken. O tempo de fazer algo novo, como Rothko lhe deseja.

O texto é uma provocação permanente e esse interpelação faz-nos rir, agita-nos. Enquanto observamos os quadros no palco, Rothko nega Chet Baker e o jazz ao seu criado, retoma a música clássica, a impressão digital do tempo que carrega consigo e afirma, nessa recusa, também, o seu pequeno poder de chefe.

O palco é, neste espetáculo, esse olhar sobre as hierarquias e todas as dinâmicas que criam. É purga de medos e demónios, de contradições. É interpelação constante. E é por isso que vale tanto a pena ver este espetáculo. O movimento que encontramos é, sobretudo, feito desse diálogo entre duas pessoas inevitavelmente próximas e ao mesmo tempo tão distantes na sua condição.

Os atores? Fazem esse trabalho notável de deixarem sobressair o texto ao ponto de quase nos esquecermos deles.

Em cena de 18 a 28 de setembro no Teatro Carlos Alberto, no Porto, com sessões quartas, quintas e sábados às 19h00, sextas às 21h00 e domingos às 16h00.

Vão ver enquanto é tempo.


Foto: © José Caldeira

Apoiar

Se quiseres apoiar o Coffeepaste, para continuarmos a fazer mais e melhor por ti e pela comunidade, vê como aqui.

Como apoiar

Se tiveres alguma questão, escreve-nos para info@coffeepaste.com

Segue-nos nas redes

O que é que vês? Vermelho!

CONTACTOS

info@coffeepaste.com
Rua Gomes Freire, 161 — 1150-176 Lisboa
Diretor: Pedro Mendes

Publicidade

Quer Publicitar no nosso site? preencha o formulário.

Preencher

Inscreve-te na mailing list e recebe todas as novidades do Coffeepaste!

Ao subscreveres, passarás a receber os anúncios mais recentes, informações sobre novos conteúdos editoriais, as nossas iniciativas e outras informações por email. O teu endereço nunca será partilhado.

Apoios

03 Lisboa

Copyright © 2022 CoffeePaste. Todos os direitos reservados.

Desenvolvido por

O que é que vês? Vermelho!
coffeepaste.com desenvolvido por Bondhabits. Agência de marketing digital e desenvolvimento de websites e desenvolvimento de apps mobile