Por Inês LampreiaEra uma jovem editora de uma revista de jornalismo de investigação dedicada aos assuntos do mar. Todos os meses arquitetava uma edição com artigos relacionados com política e economia de mar, biologia e geologia marinha, tecnologia, desporto, viagens e literatura relacionada. Diferentes jornalistas e fotógrafos, uns em Portugal outros espalhados pelo mundo, contribuíam com as suas investigações para essa informação especializada, preenchendo uma lacuna da comunicação social portuguesa. Embora estivéssemos num país cuja costa marítima ascende a mais de 1600 000 quilómetros, incluindo ilhas, praticamente não se escrevia sobre o mar.
Estávamos em 2004 e foi quando, pela primeira vez, ouvi falar da ilha no Oceano Pacífico. Nessa imensidão de mar, existe o remoinho subtropical do Pacífico Norte, uma espiral de correntes marinhas que a 500 milhas náuticas (900 quilómetros) da Califórnia, cria uma gigante ilha de lixo flutuante. Na sua maioria é plástico que se acumula.
A ilha de lixo havia sido descoberta em 1997, pelo oceanógrafo Charles Moore que numa regata náutica encontrou este mar de plástico e levou sete dias a atravessá-lo. A descoberta de Moore mobilizou a comunidade científica na altura e tornou pública a ilha.
Em 2004, enquanto editora da revista, incluí uma notícia sobre esse fenómeno na página dedicada a “insólitos”, como um prelúdio e sintoma significativo da crise ecológica.
Anos mais tarde, seguia as novidades sobre a grande ilha, muitas vezes enunciada como um escandaloso exemplo das consequências da mão humana na natureza. Segundo o programa ambiental da ONU, o plástico é a maior fonte de lixo que habita os oceanos e é ele o responsável pela morte de aves e de mamíferos marinhos.
Eu, que pesquisara sobre a ilha anos antes, acedia às informações para asseverar que a ilha não tivesse crescido de tamanho. Passaram a chamar-lhe o ‘sétimo continente’ porque a mancha de plástico que flutua no Pacífico tem três vezes o tamanho da França e é o maior depósito de lixo oceânico do mundo com triliões de pedaços de plástico.
Hoje o sétimo continente é do conhecimento de todos e, apesar de algumas tentativas e de projetos que procuram resolvê-lo, a grande sopa de lixo continua a flutuar entre o Havai e a Califórnia.
Num outro lugar, bem mais distante, algo semelhante ocorre, mas a tipologia de lixo é outra. Segundo a NASA, desde 1957, cerca de 4.000 satélites foram lançados na órbita do planeta Terra, muitos deles atualmente desativados. Por exemplo, em 1958, os Estados Unidos lançaram o seu segundo satélite, o Vanguard 1, que operou durante 6 anos no espaço. Após a sua desativação, o Vanguard 1 tornou-se uma das mais antigas peças de lixo espacial.
Satélites desativados, fragmentos de satélite ou de foguetes, e até mesmo instrumentos e ferramentas perdidas por astronautas durante missões espaciais vagueiam em orbita à volta da Terra compondo um lixo próprio, espacial, que é continuamente monitorizado. A velocidade a que viaja este lixo ascende a mais de 30000 quilómetros hora e apenas uma pequena porção cai na Terra. Quanto maior a altitude a que o lixo espacial vagueia, maior o tempo que permanecerá em órbita. Alguns destroços que estão numa altitude mais próxima da Terra levam anos para entrar na atmosfera, mas aqueles mais distantes demorarão séculos.
Acontece que sempre que algum satélite ou foguetão espacial se lança para o espaço pode colidir com esse lixo deambulante criando ruturas nos equipamentos ou mesmo provocando o chamado síndroma de Kessler – a criação de lixo espacial em cadeia que afetará a exploração espacial, inviabilizando futuros lançamentos.
Volta e meia surgem invenções de como transformar plástico em combustível ou novas possibilidades de criar o composto químico que o dilua sem poluentes. Da mesma forma, o lixo espacial é monitorizado e os agentes espaciais procuram mitigá-lo.
“Odeio a palavra génio”, como dizia Le Clezio, em o
Índio Branco, mas acredito que continuemos a ser inventivos o suficiente na procura de uma solução para estes fenómenos consequentes da nossa ação. Pergunto-me, no entanto, se a razão técnica alguma vez retirará o plástico das nossas vidas na Terra ou irá, a seu tempo, encontrar uma boa lixeira no espaço, salvaguardando que as nossas vidas continuem intocáveis e o lixo que produzimos vá para bem longe dos nossos olhos.
Por assim dizer, observo a ilha de lixo no Pacífico e a lixeira espacial, não como sintomas, mas como doenças criadas por nós e pelo nosso comportamento.
Respondendo às incertezas da pandemia, na tentativa de não tocarmos em nada e mantermos tudo asséptico, proliferaram luvas cirúrgicas, frasquinhos de gel e máscaras. A restauração, vendendo agora para fora de portas, escoa múltiplas embalagens de plástico. E assim, de um momento, para o outro, anos de políticas de reciclagem e tentativas de mudança de comportamento, são postas em causa sem pestanejar.
Tom Zé canta “Você inventa o luxo, Eu invento o lixo”. Luxo e lixo parecem-me dois nomes que combinam bem. O supérfluo e o lixo. Criámos um mundo de utensílios para servir o nosso comodismo e as nossas ambições. Por mais teorias que existam sobre a importância dos objetos nas nossas vidas, nas nossas memórias e histórias, temos as nossas casas repletas de objetos em que raramente tocamos, utilizamos plástico descartável com grande facilitismo, alimentamos as nossas preguiças não pensando no que acabamos por deitar fora, acumulamos objetos inúteis... E vamos sempre alimentando o nosso luxo que, em muitas das suas facetas, se espraia no consumo de objetos físicos tanto para alimentar o
self quanto o
status.
Wagner via a música de Rossini como entretenimento atribuindo ao compositor o epíteto de “homem que vive no luxo”, cuja característica fundamental seria a alienação relativamente à natureza, ou a sua propensão para o antinatural. Se aqui se referia ao âmbito da composição musical, o que diria Wagner em face do homem que cria carros, barcos de fibra, tupperware para todos os gostos e feitios…
A fome pode ser saciada, é puramente animal… mas o luxo não será bem assim. A inclinação para o luxo é característica do humano: revela-o e revela a sua avidez para o supérfluo, o desmedido, é o mar em que prefere nadar.
A surpresa com que olhei a informação sobre a ilha de plástico pela primeira vez em 2004 foi a mesma com que li recentemente a notícia de que foram descobertos
micro-organismos de plástico na placenta. Esse lugar sagrado onde somos gerados foi finalmente atingido pela nossa mão devastadora… uma espécie de perdição, que os gregos tão bem exploraram nas tragédias.
O plástico que produzimos e lançamos para a natureza enraíza-se agora na origem da vida humana. Imagino que no século XXII seremos, em muitos aspetos, organismos cibernéticos… e de plástico em muitos outros.
Inês Lampreia (Lisboa/1979) foi premiada pela Casa do Alentejo na categoria de conto em 2012 e tem sido publicada pela Edições Pasárgada. A par do conto, os seus escritos atravessam áreas como argumento, instalação literária e escrita experimental.
Conceptualiza e desenvolve projectos no âmbito das metodologias pedagógicas alternativas nas áreas da poesia visual, códigos de linguagem e educação para os media, ao longo dos últimos quinze anos, na Fundação Calouste Gulbenkian e em outras instituições. É uma das escritoras do projeto Young Writers Lab – An international Collaborative Laboratory for Writers&Students.
Foto por Nathan Dumlao