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Oração

Por

 

Guilherme Gomes
2 de Setembro de 2022

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Oração

Talvez tenha havido um tempo, anterior a todos os rituais, em que alguém testemunhou o abraço demorado de dois amantes e esta foi a primeira forma de um casamento. Em conversa com um amigo recente sobre a preparação do dia em que se vai casar, ouço as suas dúvidas sobre a melhor forma de o celebrar – ao dia, certo, mas ao amor, principalmente. Estivemos com o padre, ontem. Ele disse: eu não vos vou casar, não caso ninguém. Vocês é que se casam um ao outro. A fé, dizemos, é um dom. Qualquer coisa que não se coordena com os contractos do mundo. Há de ter havido um tempo, anterior a todos os rituais, em que alguém testemunhou o abraço de dois amantes e isso foi a primeira forma do casamento, nascendo de um dom: não há a celebração ainda, mas a necessidade urgente de a inventar. A fé é um dom com muitas formas.

Lembro-me de O Mentiroso (ou O Incrédulo), um texto de Luciano de Samósata, um diálogo entre dois companheiros que começam a descrever um conjunto de coisas inacreditáveis. A conversa leva a uma reflexão sobre a verdade e a mentira. E o tema é a narrativa de um velho cidadão que diz que foi à lua. Ora, Luciano, com toda a sua reflexão, abre caminho para que quem leia ou ouça este diálogo comece a colocar a hipótese de que as coisas sejam reais. Chamam-lhe, na literatura, suspensão da descrença. Sempre que começo a procurar os caminhos de um espectáculo, penso neste conceito. A fé é um dom com muitas formas.

Assistir a um espectáculo de Bob Wilson ou um filme de Roy Andersson são convites para esta reflexão. Ali, à nossa frente, no ecrã ou no palco, aquelas figuras pálidas, num lugar que não se sabe ao certo quando é ou onde é e por isso pode ser tudo. A sensação que tenho ao ver os filmes de Andersson é a de estar perante a humanidade inteira concentrada numa figura de cada vez. Algo que também se sente no Parque Vigeland, em Oslo. No teatro, diante de um espectáculo de Robert Wilson, era como se diante de mim estivessem entidades, mais que pessoas. Figuras de outra natureza. E é tudo tão estilizado que se torna verosímil. Por uns instantes não questionamos a máscara, aceitamos o conjunto de regras que o espectáculo nos propõe, e somos sensíveis aos conflitos que surgem neste quadro. Mas isto é o princípio do teatro. Quando nos apresentamos em cena pedimos ao público: minhas senhoras e meus senhores, agora, por uns instantes, confiem que sou esta personagem. Talvez alguns de vocês já me tenham visto noutras circunstâncias, mas agora sou outro. Eis a minha biografia, as minhas relações, a minha tragédia individual. A fé é um dom com muitas formas.

Um dia, ao chegar ao ensaio no Teatro da Cornucópia, um dos primeiros ensaios, certamente, encontrei a Luísa Cruz sozinha na sala. Cheguei cedo, mas ela já lá estava. Vê-me entrar e diz: Então, o nosso amigo quer ser actor? Eu tinha dezanove anos, estava a terminar um curso na Escola Superior de Teatro e Cinema, a trabalhar profissionalmente naquela companhia. Julgava que  era actor. Por isso, respondi que sim. E a Luísa diz: Porquê? Balbuciei, claro que balbuciei umas palavras que me pareciam fazer sentido. Encontrar nisto tudo uma justificação. Daqueles tropeções que damos quando nos fazem perguntas difíceis de responder. E a Luísa interrompe: É pela verdade, não é? Por que outra coisa podia ser? E, se não era já pela verdade, passou a ser. A fé é um dom com muitas formas.

A verdade é uma responsabilidade partilhada por quem fala e quem ouve: é tão importante falar com verdade, como escutar com verdade. É preciso informação e sentido crítico. E, por isso, não me parece que possa haver verdade sem generosidade. Porque, por mais evidente que seja, por mais certo que seja, haverá sempre que abdicar do nosso primeiro movimento de descrença: ou porque vai contra o que sabemos, ou porque qualquer coisa não vai ao encontro do que esperamos. Parecerá uma frase feita, bem sei, mas é tão evidente que salas de espectáculos, como os museus ou os livros, são ginásios perfeitos para esta busca. Suspender a descrença deve ser um gesto consciente que leva a coisas que não decidimos: a emoção. Treiná-lo é ser mais crítico em relação às coisas em que estamos dispostos a acreditar. A fé é um dom com muitas formas.

Foto: Autorretrato numa janela da Ópera de Oslo

BREVES CRÓNICAS DO TEMPO são pequenos episódios, registos, princípios de reflexão pelo dramaturgo Guilherme Gomes.


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