Conteúdos
Agenda
Recursos
Selecione a area onde pretende pesquisar
Conteúdos
Classificados
Notícias
Workshops
Crítica
Por
Partilhar
Num tempo em que o amor é tratado, muitas vezes, como um luxo ou uma distração, Ana Cris desafia-nos com uma proposta radical: imaginar um mundo onde amar é um ato proibido. A encenadora e autora da peça A Invenção do Amor partiu do poema homónimo de Daniel Filipe para construir uma distopia poética e política, onde o afeto se torna resistência. Estreado no centenário do poeta, o espetáculo questiona a liberdade, a censura dos sentimentos e a urgência de dizermos “coração” antes de dizermos “bandeira”.
Nesta conversa, mergulhamos no processo criativo da Ana, nos desafios de adaptar poesia para o palco e na força que acredita existir naquilo que, apesar de tudo, ainda escolhemos amar.
O que te levou a adaptar o poema “A Invenção do Amor” do Daniel Filipe para o palco?
“A Invenção do Amor” fala de um homem e uma mulher perseguidos por se amarem numa sociedade onde o amor está ausente. Tê-lo-ão inventado, diz o poeta, e essa “invenção” constitui uma ameaça à ordem estabelecida. Não é um poema sobre o amor, apesar de o propor como último reduto da esperança. É um poema contra a censura que, no limite, quando todas as liberdades já foram cerceadas, proíbe também o amor.
Foi-me dado a ler há apenas alguns anos atrás, apesar de ser um texto muito conhecido de toda a geração de Abril, porque se inscreve precisamente nesse contexto. E creio que, infelizmente, e mais depois das eleições do passado dia 18 de Maio, esse contexto não dista tanto do nosso, em Portugal e na Europa, ou como diz também o poeta, “em todo o mundo ocidental”.
Revisitei o poema inúmeras vezes ao longo dos últimos anos e creio que, de dia para dia, se tornou cada vez mais pertinente. “A Invenção do Amor” parecia-me, e parece-me, cada vez mais urgente.
A escolha deste texto como ponto de partida do espectáculo era, portanto, evidente para falar destas inquietações. Existe uma enorme pressão social para que tomemos um ou outro partido, para que nos declaremos derradeiramente contra ou favor, para que declaremos publicamente a que nicho pertencemos, ou que bandeira é a nossa. O direito a duvidar, ou a ponderar, foi banido e os que timidamente o reivindicam também. E afinal, a dúvida é único motor do pensamento livre, do que se diz “fora da caixa”. Creio que é hoje mais necessária uma reflexão profunda sobre a forma como nos posicionamos ideologicamente, sobretudo quando a tolerância é um valor que se apregoa mais do que se pratica. E a tolerância é também uma forma de amor, que é urgente (re)inventar.
Como foi o processo de transformar um poema numa peça de teatro com narrativa e ação?
Foi um desafio, com que, a bem dizer, já contava. Obviamente, pelo facto de se tratar um poema, não existe um eixo narrativo, foi preciso inventá-lo também. A escolha de um texto não dramático tem essa dificuldade de partida.
A minha intenção foi sempre a de usar o poema na integra, e para tanto tinha necessariamente de construir um universo (neste caso uma distopia) que esses versos pudessem habitar. Nesse sentido, foi também um processo de construção de uma intimidade com o poema, com o qual procurei estabelecer um diálogo permanente. Talvez o desafio maior tenha sido o de encontrar o compromisso entre uma espécie de fidelidade à poesia e a necessidade de lhe dar existência dramática.
Existem no poema, e certamente não são inocentes (eu diria até que são visionárias), várias referências aos meios de comunicação. Creio que terá sido essa a chave para a dramaturgia do espectáculo. Vivemos um tempo de contradições, a era da democratização da informação e da desinformação. E não podemos falar de posicionamento ideológico sem ter em conta o crescente poder dos media na formação da opinião pública, e sem reflectir sobre a responsabilidade (ou a falta dela) no uso desse poder. E esta reflexão levou-me aos personagens do espectáculo: jornalistas que, num futuro indeterminado, integram uma sociedade sob o jugo de um regime fascista, e que convivem, cada um de forma distinta, com a ductilidade da verdade que têm nas mãos. Ou da verdade a que conseguem aceder por meio das situações que atravessam respectivamente. No fundo, e isso parece-me extremamente contemporâneo, cada um conta a verdade da forma que mais lhe convém. E poucos têm a coragem ou a lucidez de a procurar realmente.
De resto, o processo de escrita foi como todos: solitário e com a natural angústia de quem tenta encurtar a distância entre o que se quer dizer e o que se diz.
O facto de ser o centenário de Daniel Filipe teve um peso especial na criação da peça?
Para dizer a verdade, não. O espetáculo tinha estreia prevista para 2024. Foi pensado para o contexto da comemoração dos 50 Anos do 25 de Abril. Por razões de produção e de incompatibilidade de agendas da equipa teve de ser adiado para 2025. Eu diria que é, portanto, uma feliz coincidência.
A peça passa-se numa distopia onde o amor é proibido. Porquê usar esse cenário para falar de amor?
A ideia desta distopia está já presente no próprio poema, que usa de forma metafórica, ou até hiperbólica, a proibição do amor para denunciar violações muito concretas, mas não menores, à liberdade individual nos tempos da ditadura. Como disse anteriormente, não creio que seja um poema de amor ou sobre o amor. E o espectáculo também não é, ou não é apenas. Seja como for, o amor de que se fala não é em nenhum caso um amor romântico. Falar de amor é, neste caso, falar de alteridade, um conceito filosófico que elabora sobre uma noção aparentemente simples que não é outra senão a do reconhecimento e do respeito pelo outro na sua diferença, e da valorização dessa diferença como necessária à compreensão da própria identidade. Creio que ficcionar sobre uma sociedade distópica onde não é permitido “amar” não é de todo descabido, sobretudo quando assistimos a uma radicalização generalizada dos discursos e à consequente descapitalização dos valores da empatia ou da compaixão. E o que se pretende com esta distopia é precisamente evidenciar a impossibilidade de uma sociedade justa e inclusiva ante a perda destes valores. Ou, por outras palavras, evidenciar a urgência do amor.
Falas de “amor clandestino como dissidência poética”. Podes explicar melhor o que queres dizer com isso?
No contexto do espectáculo refere-se à situação concreta de um dos personagens, a Mulher, que literalmente vive um amor clandestino. Acredito que o amor é sempre um acto poético, mas se o colocamos nesta distopia, é também um acto político e uma forma de dissidência. E dissidência poética designa a dimensão de transcendência desta tomada de posição. No espectáculo, e creio que também na vida, escolher o amor é sempre um salto de fé, exige a coragem de nos tornarmos vulneráveis e de nos permitirmos ser tocados pelo outro, e de sairmos transformados desse encontro. E estou em crer que esse gesto é hoje um gesto de rebeldia, uma rebeldia que encerra em si muita poesia.
Em tempos tão polarizados como os de hoje, como é que o espetáculo propõe resistir através do afeto?
A dado momento do espectáculo fala-se de “descobrir no amor o fôlego de uma revolução”. Creio que é esse o ar que nos falta, e é essa a revolução necessária. Já aqui nomeei a alteridade, a empatia, a compaixão, a tolerância, palavras às quais podemos somar o afecto. Em cena vemos como estes conceitos, postos em práctica, transformam profundamente a nossa forma de olhar o mundo que nos rodeia e nos levam a questionar as nossas próprias convicções e a elaborar pensamentos mais complexos. Mais uma vez, não é possível aproximar posturas se não formos capazes de nos aproximar do outro. É precisamente essa aproximação, livre, voluntária e consciente, que o espectáculo propõe como forma de resistência à que é uma tendência contrária.
Que papel teve o vídeo de cena na criação da atmosfera distópica da peça?
Ainda que a acção decorra numa distopia, não sei se em termos estéticos não será mais acertado falar em atmosfera poética, que o vídeo também potencia em conjunto com os restantes elementos cénicos. Nesse sentido, a Lúcia Pires conseguiu que o vídeo fosse parte integrante de uma linguagem própria, transversal a todo espectáculo, e não um elemento exterior que poderia facilmente violentar essa linguagem. O seu trabalho é, ao mesmo tempo, de grande inteligência e delicadeza, e deixa também a sua marca pessoal como artista de uma forma não impositiva, um equilíbrio que não é fácil de alcançar.
De resto, na voz off que é o prólogo do espectáculo há uma citação do Sartre que diz que “não importa o que fizeram de nós, importa o que nós fazemos com que fizeram de nós”. Esta citação está intimamente relacionada com um dos personagens, ao qual chamei Homem Projectado, que literalmente só vemos projectado, e que pretende ser uma projecção, passe a redundância, de tudo o que um homem pode escolher ser ante as mesmas circunstâncias.
Nesse sentido, mais do que reforçar a distopia (que também o faz pelo carácter inusitado, ou até insólito, de algumas cenas), creio que o vídeo contribuí narrativamente para construir a ideia de liberdade inalienável, que existe sempre e tem lugar mesmo dentro desta distopia. E o espectáculo é, em última instância, também sobre a liberdade “que se colhe com respeito e com pudor”, isto é, com responsabilidade.
A cenografia e o desenho de luz têm uma presença muito forte. Como foi trabalhar com o José Manuel Castanheira e o Manuel Abrantes?
No poema do Daniel Filipe diz-se repetidas vezes que os dois amantes fugitivos “espreitam a rua pelo intervalo das persianas”. Desde o início, ainda antes de escrever o texto, tinha bastante clara a ideia de uma persiana veneziana como elemento cénico central, que serviria também como tela de projecção. Mais tarde, já em diálogo com a equipa, surgiu a problemática de como situar espacialmente a acção dramática neste futuro indeterminado que se pretendia. Por um lado, não era desejável nenhuma referência directa a uma época em concreto, mas tampouco uma estética futurista. Tendo isto em conta, o José Manuel Castanheira propôs uma multiplicação das persianas em diferentes planos de profundidade, de maneira a criar uma espécie de labirinto abstrato, o “labirinto da cidade” de que se fala também no poema. E creio que esta solução respondia à outra grande questão sobre a cenografia em qualquer espectáculo, que é de como a tornar parte da própria dramaturgia. Gostaria também de sublinhar o trabalho da Dora Salles, assistente de cenografia, que foi a responsável pela materialização desta ideia que a princípio era apenas uma lindíssima e inspiradora aguarela do Castanheira.
Em relação à luz, o Manuel Abrantes, cujo o trabalho eu já conhecia e admiro, mas com quem nunca tinha colaborado, correspondeu a todas as minhas expectativas, diria até que as excedeu. Assistiu a vários ensaios, com a presença silenciosa e discreta que lhe é característica, com um olhar atento e perspicaz. Quando me apresentou a proposta de criar uma atmosfera que potenciasse a realidade opressora que os personagens habitam, foi muito evidente que tinha compreendido em profundidade o espectáculo e conhecia a medida certa da luz que necessitava. E creio que isso “nos iluminou”, literal e simbolicamente, no momento em que precisávamos de mergulhar mais a fundo no interior do espectáculo. E continua a iluminar-nos.
O espetáculo tem uma dimensão visual e sonora muito marcada. Como é que equilibraste isso com a palavra e o corpo dos atores?
Tenho vindo a perceber que gosto de pensar o teatro como o lugar da palavra. Coloquialmente falamos de “ir ver teatro”. Eu gosto da ideia de “ir ver a palavra”. Isso significa mais do que escutá-la, ou antes, significa escutá-la de forma amplificada, com todos os cinco, ou até os seis sentidos. E obviamente, os corpos dos actores, ainda antes de “terem voz”, são por excelência o espaço onde a palavra vibra. Como actriz, que também sou, acredito que quando falamos de “apropriar-nos” da palavra é disso que se trata, de encontrar a sua ressonância no corpo, tanto quando emissores como quando receptores da palavra em cena. E essa foi a primeira fase do trabalho.
Tradicionalmente o público é apenas um receptor, onde se pretende que a palavra também encontre a sua ressonância. E os actores, que entregam a palavra, são, portanto, por excelência, os principais responsáveis por criar essa possibilidade. Creio que o papel da encenação é em grande parte o de conseguir que todos os restantes elementos cénicos sejam facilitadores dessa entrega da palavra, e neste espectáculo esse foi também o esforço colectivo. Já aqui falei um pouco dos elementos visuais do espectáculo, e todos, cada um de forma distinta, luz, cenografia e vídeo, estão ao serviço da palavra e criam um espaço físico e emocional onde ela pode habitar e ser. E o espaço sonoro tem uma função semelhante, que é a de acompanhar a palavra, e às vezes a de a direccionar. O trabalho do Ignácio García, que para além de músico é também encenador e criador, é um trabalho feito com muito tacto e com sensibilidade, que procura encontrar para cada cena a qualidade sonora justa e o grau de presença adequado, às vezes muito subtil, de modo a amparar a palavra, como uma espécie de colchão invisível.
Nem sempre foi fácil encontrar o equilíbrio, mas estou em crer que fomos bem sucedidos em “priorizar o prioritário”, como se diz no espectáculo.
Trabalhaste com uma equipa artística grande. Como foi esse processo coletivo e que contributos gostavas de destacar?
É a primeira vez que tenho o privilégio de dispor de uma equipa com tantos “especialistas”, no bom sentido. Para um autor, o processo de criação, como já o disse sobre o de escrita, pode ser às vezes muito solitário e angustiante, e nesse sentido só me posso sentir grata por ter estado sempre tão bem acompanhada por uma equipa solidária e criativa.
Já antes falei de várias pessoas e creio ter referido a meu apreço e admiração por cada uma. Falei dos actores sem os nomear, e sobre a Ana Baptista, o André Pardal e o João Vicente só tenho a agradecer a generosidade com que abraçaram o projecto e o talento que lhe emprestaram.
Falta-me talvez falar de uma pessoa em particular, que foi um pilar fundamental ao longo de todo o processo de criação. A Daniela Leitão, responsável de produção do espectáculo (esse trabalho que, ingratamente, não se valoriza tanto como merece) foi e é o braço direito que qualquer encenador desejaria. Poderia falar de sua extrema eficácia e de um profissionalismo desarmante, mas os projectos não se levantam por máquinas, senão por pessoas. E por isso gostava de exaltar sobretudo as suas qualidades humanas e criativas, e a paixão com que faz uso de todas elas. Neste projecto, estreou-se também como figurinista e desempenhou um trabalho minucioso e cuidado, como em tudo aquilo a que se propõe. Talvez tenha descoberto mais uma vocação. E eu descobri uma pessoa com quem quero decididamente continuar a colaborar.
Como é que o público tem reagido ao espetáculo?
É sempre difícil avaliar a resposta do público. Em primeiro lugar porque, sendo uma experiência colectiva, o teatro impacta de forma diferente na subjectividade de cada um. Por outro lado, as reacções que pudemos observar dentro da sala, e que são de aderência ao espectáculo e até de alguma comoção, são apenas uma parte e são manifestações mais imediatas. E a outra, o impacto que, com a distância, possa ter em cada um, fica na intimidade de cada um, e é isso também o que se pretende.
Seja como for, algumas pessoas partilharam connosco opiniões, ou sensações, ou até emoções, das quais posso gratamente depreender que o espéctaculo cumpre o seu objectivo, que sempre foi o dar lugar a uma reflexão colectiva sobre a urgência do amor (mais uma vez no sentido de alteridade) e de o oferecer como alternativa concreta e possível. E creio que a pertinência desta reflexão no contexto actual tem vindo a ser reconhecida pelo público.
Achas que esta peça pode viajar para outros contextos, talvez internacionais, já que fala de algo tão universal como o amor?
Oxalá. O amor nunca se esgota. É e será sempre um tema pertinente. Mas creio que falar deste tipo de amor no momento político e social que se vive em Portugal e além fronteiras, é-o ainda mais. Nesse sentido, estou em crer que este é um espectáculo que merece ser visto e alcançar o maior número possível de pessoas, e obviamente espero que haja oportunidade de o partilhar noutros contextos.
Tens planos para continuar a explorar este universo noutras criações?
Não sei se posso dizer que tenha planos. Neste momento tenho intenções. Tenho a intenção de continuar a criar. Não sei se as minhas futuras criações darão continuidade a este universo, mas acredito que um percurso artístico é um processo continuo, e é um processo de construção de uma identidade. Mas nem sempre é óbvio ou coerente. E se falamos de coerência, a única a que ambiciono realmente é a de ter sempre a lucidez de me inscrever no meu tempo e a sabedoria de escolher temáticas pertinentes.
De resto, sim, talvez, como disse, o amor não se esgote nunca. E para mim também não.
Como encenadora e autora, como vês o papel do teatro na resistência poética e política hoje em dia?
Como todas as manifestações artísticas, o teatro tem um poder, ou pelo menos um potencial transformador. E como todas as manifestações artísticas, ainda carece de presença na sociedade. Ainda não se tornou “necessário”, apesar de o ser. E, ao contrário de outras formas de arte, tem um suporte vivo. Não existe sem presença física, no palco e na plateia. Existem já muito poucos lugares assim, de encontro real e de partilha matérica. Só por isso, é em si resistência e é necessário que resista como alternativa à alienação do mundo contemporâneo, que é cada vez mais um mundo virtual ou virtualizado. E, por outro lado, acredito que o teatro tem também a responsabilidade de resistir como espaço de liberdade e espaço de pensamento. Também existem já poucos lugares assim. O meu compromisso, e creio que o de qualquer autor, encenador ou criador, tem de ser o de nos empenharmos coletivamente para que não deixem de existir.
O que significa, para ti, “trazer no peito, antes da bandeira, o coração”?
É uma frase poética. E, como em toda a poesia, há nela uma parte à qual não se pode aceder pelo intelecto. Mas, para responder à tua pergunta, refere-se à urgência de pôr a humanidade à frente e acima das nossas convicções ideológicas. E de nos permitirmos ser, às vezes, menos convictos e duvidar. E a dúvida é necessária na construção de uma sociedade mais compassiva.
Apoiar
Se quiseres apoiar o Coffeepaste, para continuarmos a fazer mais e melhor por ti e pela comunidade, vê como aqui.
Como apoiar
Se tiveres alguma questão, escreve-nos para info@coffeepaste.com
Mais
INFO
Inscreve-te na mailing list e recebe todas as novidades do Coffeepaste!
Ao subscreveres, passarás a receber os anúncios mais recentes, informações sobre novos conteúdos editoriais, as nossas iniciativas e outras informações por email. O teu endereço nunca será partilhado.
Apoios