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Rés-do-chão #5: atos heróicos

Por

 

Mariana Dixe
9 de Maio de 2025

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Rés-do-chão #5: atos heróicos

O que é um super-herói? Segundo o famoso Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, que cá em casa ainda não foi substituído pela vista geral da Inteligência Artificial, é uma personagem fictícia com poderes superiores às faculdades humanas. Daí o prefixo.


Se a pergunta for “o que raio é, afinal, um herói?”, sem super, o número de opções aumenta. Um herói tanto pode ser uma pessoa real capaz de grandes feitos, como a personagem principal (ou protagonista) de uma ficção, o correspondente a um semideus na mitologia, um ídolo ou até alguém que é o centro das atenções. 


O que se torna certo é que - independentemente dos níveis de egocentrismo - o herói só é obrigatoriamente ficcional se, para além da capa e da máscara, se vestir com o “super” antes do hífen. Pelos vistos, não foi desajustada a minha resposta a um questionário, na universidade, em que à pergunta “quem é o teu herói preferido?” ou coisa do género, respondi “a minha mãe”. Se me tivessem perguntado por um super-herói, talvez pudesse ter visto a minha resposta ser desclassificada. Assim, e embora a minha mãe também tenha capacidades sobre-humanas, a ausência de prefixo manteve-me no plano real.


Só posso concluir que a quarta parede, a cisão entre realidade e ficção, nas bandas desenhadas e nos filmes de superaventura está na palavra “super”. Aliás, os filmes por si só já são normalmente ficcionais; os filmes de aventura são ficções que descrevem muitas vezes cenários fantásticos, mas nos quais vivem personagens comuns; os filmes de superaventura têm ambas ameaças extraordinárias e personagens extraordinárias.


Começamos a ver surgir aqui a dupla ficção, que também encontrámos por exemplo nas autobiografias, com a memória e a escrita. Se um super-herói é superior ao herói, e se o herói já pode ser ele próprio o protagonista de uma ficção, o super-herói é quase duplamente ficcional.


Porque é que me dediquei a refletir sobre heróis, nesta coluna dedicada a pensar a fronteira habitável entre realidade e ficção? Bem, porque vi o melhor conteúdo possível para abordar esta temática: Jury Duty. Uma série de oito episódios, uma espécie de “apanhados” de longo formato, um reality-show falseado quase a 100%, uma lição de improvisação coletiva… e, mesmo assim, falho em descrevê-la rigorosamente.


Jury Duty simula (ou ficciona) um processo civil num tribunal estadunidense. Há dezenas de pessoas chamadas, aleatoriamente, para ser juradas do caso, das quais são selecionadas catorze. O julgamento começa: ouve-se a acusação, a defesa, as testemunhas, há visitas de campo, processos de deliberação conjunta e é tudo falso! Todos os intervenientes são atores - desde o juiz aos jurados, passando pelos oficiais de justiça -, exceto uma pessoa. O nosso herói!


A produção chama herói, sem super, ao mais real de todos os envolvidos: a pessoa comum que se vê embrulhada na ficção sem sequer ter conhecimento de que ela existe. E como é que se justificam as câmaras e os depoimentos gravados? Com uma dupla ficção. É que simultaneamente a este processo (falso) está a ser rodado um documentário (falso) sobre ser-se jurado em tribunal, para o qual Ronald Gladden se voluntariou. 


É desta forma que acaba enredado num caos organizado, ou antes absurdo contido, em que tudo roda à volta dele. O lugar onde os atores se sentam na sala de espera pretende determinar o assento que ele escolherá para se sentar; a permissão ou não para beber álcool numa saída à noite depende da sua própria escolha de bebida; os guiões são escritos com planos A, B e C que os atores devem usar conforme as suas reações. Só que ele, a pessoa que tem a faca e o queijo na mão, não se tem em tão grande conta e prefere ver-se de mãos atadas e escondidas atrás das costas.


No fundo, no teatro, Ronald Gladden seria o público. Ouvi-o, em entrevista, dizer que sempre que começava a questionar a veracidade daquele processo, desconfiava automaticamente da sua própria sanidade. Não podia acreditar que fosse tudo centrado nele, sobretudo fazendo James Marsden parte da equação.


Tripla ficção? Para ajudar à festa, um dos atores do elenco, jurado suplente no processo, é Marsden, estrela de Hollywood, conhecido por participar em filmes como “O Diário da Nossa Paixão”, “Sonic” ou “X-Men”. Quando integra neste esquema um super-herói, muito literalmente, a produção da série está a reduzir o nosso herói original à sua condição de homem. Fez mais sentido para Gladden acreditar-se rodeado de pessoas estranhas - que as há, famosas ou não - do que imaginar o cabo dos trabalhos que teria envolvido convencê-lo a ele de tudo aquilo - por que é que alguém o faria, se ele é, tão simplesmente, uma pessoa real?


Também como público, seria preciso desconfiar da nossa própria sanidade, enquanto espectadores, para não acreditarmos nas ficções que os espetáculos nos propõem. Se eu ouvi a porta a abrir, porque é que não hei-de comprar a ideia de que a atriz saiu? Se eu me lembro de ela ter dito que o faria, porque não hei-de confiar que, de facto, o fará?


A grande questão é que um teatro e um tribunal não são a mesma coisa, tal como um teatro, um tribunal em que decorre uma rodagem e um tribunal real não são a mesma coisa. Numa plateia, fazemos parte de um acordo silencioso em que desfrutamos de ser o alvo da partida. Como cidadãos, devíamos querer precisamente o contrário. As perceções são divertidas no teatro, nos tribunais de cartão e nas plataformas de streaming. Na vida real, o desafio está em fazer o contrário do que fez Ronald Gladden: acreditar que somos importantes o suficiente para que alguém se dedique a criar ficções com o único propósito de nos convencer. 


O nosso herói provou isso mesmo. E se nesta história, mesmo sendo uma espécie de “prank” de longa duração, o objetivo não foi fazer pouco do protagonista, antes pelo contrário, talvez na vida real algumas ficções se baseiem na premissa de que nós, enquanto público, não somos suficientemente inteligentes para detetar a mentira. Cada vez mais me parece: prestar atenção é um ato heróico.

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