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Rés-do-chão #6: cartas, passado íntimo

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Mariana Dixe
13 de Junho de 2025

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Rés-do-chão #6: cartas, passado íntimo

Álvaro de Campos terá escrito que todas as cartas de amor são ridículas. Eu discordo. Talvez no seu tempo. Hoje em dia, tenho, para a troca, uma afirmação quase tão ousada quanto essa: a teoria de que todas as cartas são de amor.

Quando Marianne Ihlen - musa de Leonard Cohen e protagonista da canção “So Long, Marianne” - foi diagnosticada com leucemia, em 2016, o poeta escreveu-lhe uma carta. Não um poema, não uma canção. «Penso que te seguirei muito em breve. Quero que saibas que estou tão próximo de ti que, se estenderes a tua mão, creio que conseguirás tocar a minha.» Marianne terá sorrido, ao ouvir ler estas palavras, e erguido a mão para tocar a de Cohen, que dizia encontrá-la em breve, pelo caminho. O realizador Jan Christian Mollestad, que a acompanhou nos últimos tempos de vida, informou Leonard da sua partida, por meio de uma carta. Não um poema, não uma canção. Marianne morreu a 28 de julho de 2016, Cohen menos de quatro meses depois.

Em 2019, um lote de mais de cinquenta cartas trocadas entre os dois, entre 1960 e 1979, vendidas pela família de Ihlen, foram objeto de um leilão online com duração de cinco dias e renderam, no conjunto, 876 mil dólares.

Uma carta em particular, avaliada em 10 mil dólares, foi vendida por cinco vezes mais, o que me leva a questionar se alguém estaria na disposição de pagar 56 mil dólares pela canção “Famous Blue Raincoat”, que é ela própria uma carta. A resposta parece surgir diante de mim sem esforço: sim, se ela fosse privada. Tendo sido lançada em 1971, num álbum chamado “Songs of Love and Hate”, ouro no Canadá e prata no Reino Unido, talvez não tenha interesse. A verdade é que podemos ouvi-la nas plataformas digitais sem pagar um cêntimo. 

O fascínio destas cartas - que eu também teria comprado, se fosse muito muito rica -  está em aceder a um tempo que não vivemos, a pormenores que desconhecíamos de uma vida amplamente conhecida e, creio que principalmente, a um objeto que não tinha o propósito de ser nosso.

No caso das canções e dos poemas, dos livros, dos álbuns, mesmo quando não são um dos maiores sucessos de um artista, foram criados com a expectativa de uma audiência e, por isso, são uma ficção. Não sabemos se uma determinada palavra foi posta num determinado lugar por ser verdade ou por ser pública. No caso das cartas, sobretudo quando privadas, sabemo-las mais verdadeiras. 

Uma das conclusões a que chego, quanto mais pesquiso sobre este desnível entre real e ficcionado, é esta: o passado não se inventa. Foi depois de ver “Jerrod Carmichael: Reality Show”, uma série aparentemente documental em que um comediante estadunidense filma a sua vida privada, que este pensamento ganhou forma. Durante a maior parte do tempo, não temos como saber se aquilo a que estamos a assistir foi manipulado, se as interações são reais, se o texto está escrito, mas, quando há imagens do passado, a dúvida extingue-se.

O passado transmite verdade. Como é que se podia fingir no passado, se ainda não se sabia que o presente ia acontecer desta maneira? Mais uma vez, o que é filmado no agora tem o objetivo de ser servido a um público; o que foi filmado antes registava a privacidade, vídeos caseiros e familiares para serem vistos uma e outra vez pelas mesmas pessoas, que se documentavam de si para si.

Para além disso, importa pensar no veículo. A partir deste entendimento, qualquer vídeo que pareça ter sido feito em fita VHS acrescenta camadas de passado e, portanto, de verdade, ao que estamos a ver.

Ainda em “Jerrod Carmichael: Reality Show” há uma cena deliciosa, no segundo episódio, que me fez refletir sobre o uso da câmara. Numa conversa entre Jerrod e o namorado, Mike, é o modo como a câmara filma que denuncia uma mentira. Mike percebe que a produção sabe mais do que ele pela forma como a realização foca Jerrod num dado momento. Isto subverte tudo o que eu achava que sabia sobre ficções: é a câmara, o artifício, que diz a verdade, enquanto as pessoas que estão simplesmente a existir e a deixar-se filmar mentem. 

Quando os formatos trazem verdade - sejam cassetes, ditos reality shows ou cartas - a mensagem que conduzem é automaticamente mais verosímil.

Há uns dias, ouvi contar a história de uma mulher que, numa fase difícil da sua vida, se apoiava numa amiga que constantemente lhe dizia “vai passar”, “vai passar”. Como tantas vezes, na ficção e na realidade, acreditar nem sempre é fácil. Por isso, em conversa, a amiga perguntou-lhe "queres que te escreva que vai passar?" e ela aceitou. Uns dias depois, recebeu uma carta que dizia simplesmente "eu, abaixo assinada, garanto à minha amiga que vai passar".

Talvez se torne mais credível porque é uma carta: porque levou tempo a escrever, porque precisou de ser entregue num balcão, porque passou por várias mãos, porque é física, tem cheiro de papel e conheceu ares de lugares diferentes, mas, creio que principalmente, porque respeita um formato que temos por hábito associar ao passado e à verdade.

Talvez não seja, então, rigoroso dizer que todas as cartas são de amor, mas antes que todas as cartas são de verdade. Mesmo as ficcionais.

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