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Rés-do-chão #7: hiper-realismo reborn

Por

 

Mariana Dixe
11 de Julho de 2025

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Rés-do-chão #7: hiper-realismo reborn

Relógios, caixas de pizza, cabelos de celebridades, cones de sinalização, cotão de umbigo, bolas de bowling, gnomos de jardim, tijolos, torradeiras, areia e pó. Podiam ser os ingredientes para uma poção mágica mas são, na verdade, algumas das coleções mais estranhas de que há registo.

Passatempo ou compulsão, o colecionismo existe desde a Pré-História. Consta que o homem primitivo já colecionava pedras e conchas, sabe-se lá porquê. Há quem colecione por nostalgia, por sede de conhecimento, para preservar a memória, para pertencer a um grupo, como forma de encontrar um propósito ou de controlar e organizar o caos. As coleções de selos, moedas ou pacotes de açúcar fazem parte do nosso imaginário comum.

Nos anos 60 e 70 do século passado, em reação à arte visual abstrata e conceptual predominante na época, surgiu um movimento artístico desde então denominado hiper-realismo. Pinturas que parecem autênticas fotografias, como as de Richard Estes, ou esculturas que se confundem com corpos humanos reais, como as de Sam Jinks, são resultados dessa tendência, cujos ecos ainda se ouvem.

Hoje, na era da desinformação, vemos o hiper-realismo nos vídeos criados com inteligência artificial, indistinguíveis da realidade; nas personagens digitais de filmes e jogos criadas com efeitos especiais; e nas coleções. Afinal, o que distingue uma coleção de bonecas de porcelana de uma coleção de bebés reborn é o hiper-realismo dos objetos.

Os bebés reborn surgiram nos Estados Unidos, na década de 90. São nenucos de milhares de euros, feitos à mão por escultores e pintores, que replicam a textura da pele humana, dos fios de cabelo, expressões e trejeitos e até o peso de um bebé real. 

As bonecas sempre estiveram associadas ao artesanato, desde o tempo em que eram feitas de argila (foram encontrados bonecos em túmulos de crianças no Egito, 2500 anos antes de Cristo), até às bonecas de trapos das nossas avós. Os materiais foram mudando, o objetivo - fosse o de criar um brinquedo, uma peça de decoração, um colecionável ou todas as opções anteriores - foi sempre o mesmo. O vinil e o silicone trouxeram-nos aos reborn hiper-realistas, mas as redes sociais ajudaram à construção destes novos nenucos. 

Até muito recentemente, o mercado dos bebés reborn era particularmente específico. Os compradores dividiam-se em dois grupos: por um lado, colecionadores; por outro, pessoas que os usavam como ferramentas terapêuticas, ora para auxiliar processos de luto em casos de perda gestacional ou infertilidade, ora para motivar a criação de enredos, exploração de personagens e partilha de sentimentos em idosos com demência. 

Entretanto, terá começado a surgir conteúdo virtual sobre o assunto e os bebés reborn tornaram-se trend: vídeos que mostram os nenucos lado a lado com bebés reais para que se tente adivinhar qual deles é de verdade (como até há bem pouco tempo só se fazia com bolos que pareciam ser tubos de pasta de dentes ou latas de refrigerantes); pessoas que vestem os seus reborn, dão-lhes de comer e passeiam com eles ao colo; batizados, piqueniques e festas de aniversário, sem que exista uma só criança de carne e osso.

Os bebés reborn não são um brinquedo infantil. São sobretudo um passatempo de adultos com poder de compra e presença online, que se influenciam mutuamente e transformam um nicho de mercado num acontecimento digital insólito. Nalgumas regiões do Brasil, país em cujas redes sociais o fenómeno toma maiores proporções, existem clínicas especializadas para receber bebés reborn, simular um parto e fornecer os documentos que replicam certidões de nascimento e boletins de vacinas.

Há relatos de pessoas que acreditaram estar perante bebés reais fechados em carros, por exemplo, tratando-se no final de contas de bebés reborn em cadeirinhas no banco de trás, o que as leva a chamar a polícia e a desperdiçar meios para salvar afinal uma escultura hiper-realista.

E, claro, há a história amplamente conhecida que inverte este pressuposto: a do homem que agrediu uma criança real, de quatro anos, ao colo da mãe, em Belo Horizonte, estando certo de que se tratava de um bebé reborn e julgando que a família se estava a servir de um objeto inanimado para obter prioridade em filas de espera.

Assim, os bebés reborn estão imiscuídos na política brasileira, com a Câmara dos Deputados a propôr a criação de políticas públicas, nomeadamente o acompanhamento psicológico de pessoas com vínculos afetivos com objetos que representem seres humanos e a imposição de multas a instituições médicas autênticas que permitam o atendimento de bonecos e a pessoas que obtenham prioridade ou lugares preferenciais com recurso a bebés reborn.

A ficção e a realidade estão por toda a parte, o que é difícil encontrar neste tema é a linha que as separa. Se sabemos por que é que se criam coleções, parece mais complexo perceber por que é que se finge. Não parece estranho que alguém queira colecionar bonecas, mais ou menos realistas, quando há quem colecione cotão de umbigo. Contudo, que motivações levam o colecionista a dar um nome a cada boneca, reservar-lhes um lugar à mesa, limpá-las diariamente e escovar-lhes o cabelo? Cuidado para com o objeto colecionado, como quem verifica o livro de selos e os protege da humidade, ou algo mais?

No caso dos bebés reborn, há uma camada extra: a ficção do online. Não só não sabemos por que carga de água se há-de interagir com uma boneca como se ela fosse real (ultrapassada a idade do faz-de-conta), como também não sabemos se a pessoa o faz realmente ou se está a performar para as redes sociais. 

Rage bait é um termo do mundo digital que descreve o objetivo de gerar engajamento num determinado conteúdo que convida à indignação, ou seja, faz-se uma publicação com expectativa de suscitar controvérsia, com vista a um maior número de comentários, partilhas e reações. Se o clickbait é o uso de títulos e imagens sensacionalistas com vista ao click, o rage bait tem em vista a raiva. Como sabem muitos influenciadores machistas portugueses, a nossa raiva é o lucro deles.

Os bebés reborn podem igualmente ser um meio para atingir um fim. A investigadora brasileira Cínthia Demaria defende que o espaço virtual não é o espaço público, embora existam evidentemente interações: a lógica dos algoritmos promove a criação de bolhas extremadas que dividem os que são a favor dos que são contra e, ainda, a repercussão será sempre maior em trends polémicas, sobre as quais toda a gente tem uma opinião. «O assunto dá voz, é um palco», afirma.

Se o fenómeno dos bebés reborn é um palco, é importante encontrar a quarta parede. Talvez ela não esteja só entre aquilo que é um bebé real e um bebé falso, mas entre o que sabemos ser a realidade de todos os dias e as coisas de que nos querem convencer através das redes sociais.

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