Por Benedita MenezesLife is a mystery
Everyone must stand alone
I hear you call my name
And it feels like home
Like a prayer, Madonna, 1989 [excerto]
You live in the dark, boy, I cannot pretend
I'm not fazed, only here to sin
If Eve ain't in your garden, you know that you can
Call me when you want, call me when you need
Call me out by your name
MONTERO (Call Me By Your Name), Nas X, 2021 [excerto]
No cristianismo, o pecado é o que deu origem à humanidade. É o que nos expulsou do Jardim do Éden e nos despromoveu a sermos humanos. Nesta visão, não haveria humanidade se não fosse pela transgressão primordial: não seríamos humanos se não pecássemos. O pecado primordial foi a primeira vez que agimos contra Deus e é, assim, não só a origem da humanidade, mas também do livre -arbítrio. Hoje mais do que nunca, indivíduos confessam os seus “pecados” e orgulham-se das suas identidades. Contudo, a pegada opressiva cristã é ainda clara em muitas comunidades historicamente escravizadas em todo o mundo.

Ao crescer, Nas X foi censurado pela sua
queerness e foi-lhe garantido que iria para o inferno por ser gay. Agora uma figura pública e ativista pelos direitos LGBTQ +, Nas X desliza com prazer para o inferno. Herdeiro de
Like a Prayer de Madonna, o
rapper lançou
MONTERO (Call Me By Your Name) no início deste ano. O passivo “
When you call my name it’s like a little prayer” de Madonna tornou-se um muito ativo e exigente “
Call me by your name”: o capricho virgem e do Cristo negro transforma-se numa ordem sexual desavergonhada. O excelente vídeo desta música é uma visão da história bíblica da origem da Humanidade. Num Jardim do Éden distorcido e tipo Disney, onde a negritude e a sexualidade são celebradas, o sensual e excêntrico Adão é seduzido por uma cobra, julgado, e são-lhe atiradas pedras, antes de descer ao inferno por meio de um poste de
stripper. Lá, dá ao diabo uma
lap dance e mata-o, apenas para se tornar o novo rei do submundo. Todas as personagens são interpretadas por Nas X, aumentando a estranheza do vídeo.
Há alguns meses atrás visitei
Sin, uma pequena exposição de uma sala na National Gallery que apresentava obras de arte que de alguma forma estavam relacionadas com o conceito de pecado. Mesmo sendo superficial em termos de questões levantadas, a exposição abre poderosamente com
Uma Alegoria com Vénus e Cupido (Bronzino, 1545) ao lado de
It was just a kiss de Tracey Emin. Fui imediatamente levada para uma zona escura e travessa, onde a culpa ou a vergonha não existem. A sexualidade de Vénus, na época condenada como inadequada para os padrões de decência da National Gallery, é mostrada como uma metáfora desavergonhada para o perdão moderno da luxúria. Conceção imaculada, jamais. O anjo que mordisca os mamilos de Vénus parece-me bastante uma versão renascentista da
lapdance de Nas X ao diabo. Em
MONTERO (Call Me By Your Name), o rapper vinga-se dos opressores religiosos da sua infância ao não desculpar a sua sexualidade e reconhecer que o pecado anda de mãos dadas com o prazer, da mesma forma que
Uma Alegoria com Vénus e Cupido foi contra o cânone do pudor.

Ambos tiveram críticas fraturantes.
Algumas semanas depois de visitar a National Gallery, fui ao Block 336, um espaço e projeto
artist-run, para ver
BLUE POWER (2021) de Karen McLean. Aqui, é dado um tempo e lugar à opressiva doutrina católica: Caraíbas pós-coloniais. A instalação apresenta um mar de cruzes cristãs feitas de barras de sabão carbólico azul montadas como um enorme cemitério que ocupa todo o espaço da sala, de frente para um assustador retrato azul-dourado de um diabo. Quando as Caraíbas foram invadidas e dominadas pela Europa católica, uma série de linhas de produção foram estabelecidas, nomeadamente de sabão azul. Este produto era fabricado principalmente para a limpeza de roupas, mas a população caribenha cedo imprimiu uma aura ritualística ao objeto. Acreditava-se que, se pendurado nas portas, o sabão azul protegeria a casa e os seus moradores, livrando-os da maldade e espíritos demoníacos. Seriam na verdade os europeus que os escravizaram estes espíritos demoníacos? Estariam os caribenhos a tentar usar os produtos do opressor como armas para o combater?
As madonas cristãs usam azul como símbolo da sua castidade e divindade. Na época medieval, era também o mais caro e raro dos pigmentos, reservado para representações divinas ou nobres - como para Uma Alegoria com Vénus e Cupido. Foi apenas no século 20 que o seu uso em
jeans de trabalho dissipou preconceitos históricos de luxo. Associados à classe trabalhadora, os
blue-collars e as calças de ganga azul são símbolos do modo de produção capitalista. Rápido e eficiente.
BLUE POWER funciona como um memorial para as vidas caribenhas perdidas para esse modo de produção e para o colonialismo e destaca problemas sistémicos no âmago do povo do país, que foram deixados como pegadas imperialistas. A comunidade caribenha ainda precisa, até hoje, de se proteger de maus espíritos. Parece que, depois do pecado primordial, os cristãos decidiram fazer do pecar uma tendência.

O cemitério de
BLUE POWDER enfrenta um retrato de um homem-diabo forrado de dourado, como se fosse um ícone cristão numa igreja. A sua cara é azul. Azul celestial? Acho que não. McLean apresenta-nos o ícone de adoração caribenha: o diabo europeu; o capitalismo; o colonialismo; a produção em massa. Digno de adoração e devoção? Não. Ainda assim, as pessoas escravizadas eram obrigadas a idolatrá-lo.
A exposição na National Gallery termina com
Youth (2009), uma escultura do artista contemporâneo Ron Mueck que retrata uma criança negra em pé sobre um pedestal, examinando o que parece ser uma ferida de esfaqueamento - ou de crucificação. Esta poderosa escultura está no canto oposto da minha mente em relação a Nas X. O rapaz em
Youth está desamparado, é inocente, frágil, uma vítima do cristianismo e do colonialismo, para ser um dia enterrado no cemitério de Karen McLean. Nas X é a vingança contra o cristianismo. Forte e orgulhoso. “Na vida, escondemos as partes de nós próprios que não queremos que o mundo veja. Trancamo-las. Dizemos-lhes não. Banimo-las. Mas aqui não.”, diz Nas X. Eu diria que
agora não. Deus está morto há muito tempo. Estamos livres do fardo da vergonha.
Este artigo foi publicado ao abrigo da nossa parceria com a Umbigo Magazine. A UMBIGO é uma plataforma independente dedicada à arte e cultura, que inclui uma revista trimestral impressa, uma publicação online diária, uma rede social virada para arte e um programa de várias atividades de curadoria.