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“Há muito tempo, (...) conheci um homem numa festa na casa do Jacques que as pessoas admiravam por ter passado metade da sua vida na cadeia.”, narra David, a personagem que James Baldwin inventou para O Quarto de Giovanni. E continua: “Lembro-me de pensar que ele de facto nunca deixara a cadeia. A prisão era a única coisa real para ele, era a única coisa de que ele falava. (...) E descreve-nos, com um ávido e nostálgico pormenor, as janelas com barras, os judas, os guardas de pé ao fundo dos corredores, sob as luzes. (...) O ar carrega para sempre a memória dos punhos contra o metal, o rufar da possibilidade, lancinante e surdo, como a possibilidade da loucura.” (BALDWIN, James, 2020, O Quarto de Giovanni, trad. Valério Romão, Lisboa: Alfaguara, Penguin Random House Grupo Editorial, p.129).
De possibilidades, parece estar a prisão escassa, uma vez que mostra como a força de um contexto transformou este homem que David fala, que aparenta ter transitado da prisão para uma festa. É irónico pensarmos nesta mutação de ambientes, um duro e escuro, o outro alegre e ferial, mas que dificilmente encontram dissemelhanças entre si. Talvez as duas circunstâncias não estejam tão longe da ideia de cárcere. Ambas partilham métodos e estratégias que criam um panótico para cada um, isto é, circunscrevem uma metodologia para habitar os sítios. Através dos comportamentos, linguagens e léxicos que lhe são próprios, estes lugares modelam as atitudes dos seus intervenientes até chegarem às suas personalidades.
É óbvio que uma prisão determina uma experiência intensa a quem a vive, violenta, por ter as grades visíveis, fieis à ideia de que, à partida, se os prisioneiros estão a cumprir castigo, toda a crueldade lhes é devida. Ou seja, a barbaridade é mais crua, letal, por vezes, é até incentivada e feita forma de comunicação – a prisão acaba por proteger uma norma legal de violência ao mesmo tempo que alimenta o desejo de poder das figuras que a orientam, numa hierarquia rígida. A festa já não, é um acontecimento que tende a concentrar o propósito na celebração, na maioria das vezes na ideia de um desprendimento do quotidiano, numa libertação pela convivência com o outro. Ainda assim, e assumindo que não sou suficientemente esclarecido no que à experiência da cadeia diz respeito, insisto numa compreensão da prisão num sentido mais lato, que se comprometa com o enclausuramento dos seres e das suas mundividências.
A noção de apresamento pode também ser adotado pelo contexto de festa, verificado pelos seus limites ou imposições, ou as duas. Há limites que são definidos de acordo com o bom-senso cívico, bem sei, mas outros há que são gerados sob um aproveitamento, mormente capital – os festivais de verão e do resto do ano, os parques temáticos, e mesmo as festividades religiosas parecem aproveitar-se de carências pessoais e do desejo de diversão ou confirmação da crença para esfregar o dedo indicador no polegar. E as imposições disfarçadas de procedimentos a que a pessoa deve atender facilmente criam um labirinto de ações que enredam os seres entre grades invisíveis. Não vemos mas estão lá, e sabemos que as estamos a atender. Comumente, não nos importamos porque até gostamos das experiências, e preferimos assumir uma atitude de acrasia grega perante as festas: porque eu sei a verdade do que está a ocorrer, decido acreditar na mentira que se quer fazer acontecer.
Não é por acaso que Baldwin combina “prisão” e “festa” na mesma oração; mais, não é ingénuo ao combinar “vida na cadeia” e “festa na casa”. Se há festas na prisão, porque não haver prisão nas festas? No Porto, até há uma discoteca que tem gaiolas à escala humana dispersas pela pista de dança para as pessoas as habitarem enquanto se divertem.
O espaço “casa” (e o seu conceito) parece assumir facilmente a condição de abrigo que se confunde com uma gaiola. Ou seja, à casa é aplicada a noção de lar, de conforto para se estar, descansar, e usufruir de uma plena qualidade de vida, circunstâncias distintas àquelas que hoje oferecem as casas das grandes cidades, idênticas à metrópole que acompanha o romance de Baldwin, Paris: “Estou farto desta cidade – disse, subitamente, com uma violência que nos surpreendeu a ambos. – Estou farto desta pilha de pedras antigas, farto destes presunçosos de merda. Tudo quanto tocamos se desfaz em bocados nas mãos.” (ibidem, p.132). De facto, na esperança de oportunidades de vida ou por falta de melhoramento delas, que se tem vindo a refletir na ocupação das grandes cidades, as pessoas têm acorrido a casas e a quartos, mas que lhes devolvem os seus sonhos mais queridos transformados em afazeres insuportáveis. Ao mesmo tempo que se tem assistido a um crescente e maravilhoso multiculturalismo – representado, aliás, por David (americano) e Giovanni (italiano) – observa-se sem reação à desertificação de territórios descentrais e à gentrificação dos grandes centros. Ou seja, em cidades como as do romance, o número de pessoas aumenta, mas não são criadas condições para a sua receção e vivência. É nesta condição que David se revê, que o atira para uma relação paradoxal com a cidade que tanto ama(va) – e que cumpre uma analogia com o rapaz que tanto ama (Giovanni) –, e que se mantém sem resistência face à sua condição e à de tantos: “A cidade de Paris, que eu tanto amava, estava em absoluto silêncio.” (ibidem, p.119).
As casas ficaram insuportáveis porque as cidades também se o tornaram. Acontecia nos anos 50, aquando da publicação deste romance, e percorreu as décadas, como uma herança que se passa de pais para filhos. As gaiolas são sempre hereditárias.
O lugar que oferece uma emancipação a Giovanni é o mesmo que o enclausura: o seu próprio quarto alugado. Não só o captura como se imiscui na sua vida e lhe dificulta as relações – no caso, a relação amorosa com David. Numa das discussões entre os dois, não é um nem o outro que reivindicam protagonismo, mas o quarto que se intromete e zomba do casal: “- Estou a falar daquele quarto, daquele quarto horrível. Porque é que te enterraste lá durante tanto tempo? / - Enterrar-me lá? Desculpa, mon chér américain, mas Paris não é como Nova Iorque, não está repleta de palácios para rapazes como eu. Achas que devia estar a viver em Versalhes? / - Deve haver... deve haver outros quartos. / - Ça ne manque pas, les chambres. O mundo está cheio de quartos. Quartos grandes, quartos pequenos, quartos redondos, quartos quadrados, quartos com pé-direito alto, quartos com pé-direito baixo, todo o tipo de quartos! Em que tipo de quarto é que achas que o Giovanni devia estar a viver? Quanto tempo é que achas que me levou a encontrar o quarto onde estou?” (ibidem, p.134).
A modalidade do viver contemporâneo diz-nos que estamos constantemente em serviço de quartos. Ocupámos os quartos para trabalhar, dentro ou fora deles, e quando achamos que estamos a escapar ao trabalho, tentamos escapar ao quarto, afundando-nos nele, para que o espaço possa oferecer-nos a invenção de outras realidades. Mudarmos o quarto na esperança de mudar a vida, bradando ao lugar para que não abafe as nossas identidades nem as nossas relações pessoais, muito menos o nosso pensamento: “[O Giovanni] tinha uma ideia bizarra de que seria giro ter uma estante para livros encastrada na parede, pelo que esburacou a parede até chegar ao tijolo, que começou a atacar. (...) Talvez estivesse a tentar, com as suas próprias forças, empurrar as paredes que se fechavam sobre nós, sem as destruir.” (ibidem, p.131).
A influência de cárcere vai em cadeia na vida das personagens. Porque elas vivem a cidade como ostracismo, também o quarto se torna asfixiante, e o que habita nestes dois lugares, o próprio corpo, fica insuportavelmente agrilhoado. É óbvio que, neste emaranhado, a paixão vivida entre os dois não saia ilesa. Por muito que se amem, o próprio corpo trata-os por inimigos, e não os deixam endurecer qualquer vínculo afetivo. Ao invés, cada um passa a amar o outro porque esse outro o ama, como que uma dependência. É assim que se cumpre a última analogia que Baldwin celebra à prisão: a paixão como uma gaiola.
O amor, que é mais velho que o tempo, ao oferecer-se como possibilidade, dedica-nos uma herança, uma canção feita de compromissos. Ao revelar-se como uma gaiola, está a confundir-se com um exercício de ego: “ – Tu não amas ninguém! – gritou Giovanni, erguendo-se. – Tu nunca amaste ninguém e tenho a certeza de que nunca amarás ninguém! Amas a tua pureza, amas o teu reflexo no espelho. (...) – Agarrou-me pelo colarinho, ao mesmo tempo violento e carinhoso, suave e duro como o aço em simultâneo; aspergia saliva dos lábios e tinha os olhos rasos de lágrimas, mas os olhos da cara estavam protuberantes e tinha os músculos dos braços e do pescoço retesados. – Queres deixar o Giovanni porque ele faz com que tresandes. Queres desprezar o Giovanni porque ele não tem medo do mau cheiro do amor. Queres matá-lo em nome da tua pequena moralidade falsa. E tu...tu és imoral.” (ibidem, p. 160).
Estar em serviço de quartos é tentar limpar o suor nervoso que as cidades e os quartos nos fazem verter e, para não piorar, não nos atrevemos a suar apaixonadamente. Nisto, virámo-nos para dentro, fechamo-nos, e somos atirados contra o nosso espelho uma e outra vez até o amarmos. Ao invés, fixamo-nos nos nossos circuitos quotidianos, fazendo o mesmo percurso, falando sobre as mesmas coisas com as mesmas pessoas, o vocabulário mantém-se igual. Estamos ao serviço, a serviço, em serviço, e nunca a servirmo-nos (usufruir, leia-se) da espuma dos dias.
Quando recorremos muitas vezes ao mesmo circuito de assuntos, quando gastamos as mesmas referências ou privilegiamos as mesmos modelos, tenho o premente receio que estejamos a ir contra às nossas grades invisíveis. Se houvesse circunstâncias favoráveis, o melhor seria deixarmos de falar sobre as grades das gaiolas que nos cercam, na tentativa de nos afastarmos das semelhanças com aquele homem que David conheceu em tempos “na casa do Jacques”. O método seria não falarmos das gaiolas para que elas deixassem de existir no nosso alcance, até que se desempoeirem os nossos corpos. No entanto, se não falarmos das gaiolas não lhes apontamos os seus defeitos, a violência que nos atiça os membros e os deflagra. O mesmo acontece com o espelho, o nosso reflexo. Apesar dele nos impor uma relação com o ego intensa e problemática, será necessário enfrentá-lo uma e outra vez para o mudar, talvez atravessá-lo ou parti-lo mesmo. Sem espelhos não há reconhecimento, e então não existe a possibilidade de alargar o eu, e a seguir as nossas relações, e a seguir os nossos quartos, e depois as nossas cidades, e então os nossos países, o nosso planeta, e por aí fora. Sem espelhos, não existe a possibilidade de nos alargarmos, ponto. E Adília Lopes lembra-nos: “Nos quartos / das freiras / não há / espelhos // Nas igrejas / não há / espelhos // Os espelhos são o diabo” (LOPES, Adília, 2006, Le Vitrail La Nuit / A Árvore Cortada, Lisboa: & etc).
Talvez “as nossas casas” gritem para serem transformadas. Se não lhes fazemos a vontade e nos livramos do “serviço de quartos”, então só se avistam duas opções: ficar na gaiola e aprumar-lhes as grades para não parecer tão hostil, ou andar constantemente a fugir dos cárceres, indo de jaula em jaula, constantemente.
Foto de Alípio Padilha
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