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Todas as coisas que não se inventaram

Por

 

Ivo Saraiva e Silva
27 de Outubro de 2022

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Todas as coisas que não se inventaram

A arte de inventar está fora de moda. Melhor, está fora de cena porque está fora dos tempos e, por isso, está fora do nosso alcance. Não conseguimos inventar nada porque tudo já foi dito pela primeira vez, feito em primeira mão – resta-nos viver de relações. Já Peter Sloterdijk aludia a esta condição aquando das suas escandalosas Regras Para Um Parque Humano (2007), ao determinar um Ano Zero decorrente da saturação das várias variações de pensamento sobre a humanidade, quais cartas de amor, mas também muito impulsionado pela aparição e interferência da tecnologia. É, neste domínio, que baseamos a nossa existência em tudo o que já foi inventado e no cruzamento das matérias, das dialéticas e das pessoas – a nossa invenção passa por vivermos em relação.

Ao inexorável ato de inventar cabe-lhe então a averiguação de conjunturas e a composição inconsciente de ficções. Porventura, são ficções nas quais se acredita com uma veemência insalubre e, na perceção da nossa identidade cáustica, acordamos imaginar de fronteira fechada: dentro do espetro ocidental de códigos limitados, que é o que nos acabou por formar, é a única coisa que temos e nos resta. É dentro desta circunstância que estabelecemos as nossas decisões e educamos as nossas opiniões, que deliberamos com quem nos apetece relacionar – supondo que somos livres ao fazê-lo –, é dentro das nossas referências inventadas que acabamos por amar. O amor é uma não-invenção inventada por nós, no grito incandescente de dar motivo à espuma dos dias. Os carneiros contam pessoas.

Quem está dentro deste código e desta ética, que somos todos, não tem discernimento para percecionar o que está de facto a acontecer, não é dotado da possibilidade de ver de fora e assistir ao labirinto da big picture, onde está enleado. Somos como a Alice, no país das maravilhas que se relacionam umas com as outras. Temos, isso sim, a possibilidade do olhar crítico e da atenção permanente às armadilhas que a nossa estrutura vai urdindo, ininterruptamente na condição de que, quando nos apercebemos, já se foi apanhado na rede, na tecnológica também.

Esta estrutura cultural e histórica tem severas implicações nos diferentes setores da sociedade e determina uma real desigualdade, agora consciente mas camuflada, no tratamento e no desempenho das pessoas em coletivo. Uma situação que se torna descortinável no que respeita à competição feroz entre indivíduos cada vez mais visível, denunciada, uma e outra vez, sob o problema estrutural da supremacia branca enraizada. A propósito deste desempenho, intrinsecamente conexo às distintas máscaras socias que as pessoas assumem, podemos ler n’A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias: “Onde se verifica uma competição efetiva acima dos níveis não qualificados para empregos habitualmente considerados “para brancos”, certos negros optarão por si próprios por aceitar símbolos de posição social inferior embora desempenhem tarefas a que corresponde uma cotação mais alta. Assim, o encarregado da expedição de um escritório aceitará o título e salário de um moço de recados; uma enfermeira consentirá em ser tratada como empregada doméstica; a pedicura entrará nas casas dos brancos à noite e pela porta das traseiras.” (Charles Johnson, Phatterns of Negro Segregation, Harper Bros., Nova Iorque, 1943, p. 273 apud Erving Goffman, A Apresentação do Eu Na vida de Todos os Dias, trad. Miguel Serras Pereira, 1993, p. 53.).

É de esperar que a amplitude da tecnologia promova e possa tornar efetivos horizontes além ocidente que transforme o pensamento, e desconstrua o enraizamento de preconceitos que fundam as relações de desigualdade existentes. Desta forma, talvez se possa tornar as interações mais plurais, assentes numa real igualdade. Elucidamo-nos acerca das coisas inventadas e comprovamos uma cultura-mundo com a qual somos todos chamados a conviver. Ainda assim, as coisas inventadas e as suas relações parecem não se determinar suficientes para refrear ocasiões problemáticas que teimam em excluir e trucidar, cada vez mais vigentes. Qual a alternativa então, quais são essas outras coisas todas que faltam realmente inventar?

O que podemos esperar de nós é tão só aquilo que experimentamos e fixamos no nosso curto espaço geracional e intersecional. Com vista a oferecer um bem-estar coletivo a quem connosco convive, provavelmente seja pelo caminho árduo de desconstruirmos em nós próprios preconceitos estruturais de que somos feitos e dos quais estamos reféns. Não salva mas dá alento, e um vigoroso auxílio no desabamento de ditames opressores invisíveis. O ato de pensar e o ato de conversar é sempre um gesto plausível e determinante nestes casos, parece-me, que vão dar às portas das coisas (igualmente invisíveis) ainda por inventar. É forçoso então lembrar os fantasmas, os memoráveis e os esquecidos, e falar deles, uma e outra vez, incessantemente, criteriosamente, até às consequências últimas. Será porventura dentro desta estimulação do discurso e do diálogo, quer a uma escala universal quer a uma escala particular, que possa assentar a audaz e (finalmente) original inscrição.

“A não-inscrição portuguesa difere das outras de outros países pela sua generalidade e pelos mecanismos com que procede. Por exemplo, depois da Segunda Guerra Mundial, os Alemães negaram-se a inscrever, na sua existência como na sua história, o III Reich e o nazismo, reduzidos, durante décadas, nos manuais de História dos liceus, a um <> referido em dez ou vinte linhas. Esse <> ou lacuna invisível, ou não-inscrição, está (ainda) a ter efeitos  imprevisíveis na sociedade alemã, não sendo sem dúvida alheio à subida do neonazismo.

O 25 de Abril recusou-se, de um modo completamente diferente, a inscrever no real os 48 anos de autoritarismo salazarista. Não houve julgamentos de Pides nem de responsáveis do antigo regime. Pelo contrário, um imenso perdão recobriu com um véu a realidade repressiva, castradora, humilhante de onde provínhamos. Como se a exaltação afirmativa da <> pudesse varrer, de uma penada, esse passado negro. Assim se obliterou das consciências e da vida a guerra colonial, as vexações, os crimes, a cultura do medo e da pequenez medíocre que o salazarismo engendrou. Mas não se constrói um <> (psíquico ou histórico), não se elimina o real e as forças que o produzem, sem que reapareçam aqui e ali, os mesmos ou os outros estigmas que testemunham o que se quis apagar e que insiste em permanecer.

Quando o luto não vem inscrever no real a perda de um laço afetivo (de uma força), o morto e a morte virão assombrar os vivos sem descanso.” (José Gil, Portugal, Hoje: O Medo de Existir, 2012, Lisboa: Relógio d’Água, pp. 15 e 16).

Todas as coisas que não se inventaram examinarão a lógica plural do saber e do existir. Há tentativas, isso há, fundadas na geração de comunidades que protegem as identidades dissidentes, que prometem liberdades dentro de circuitos, ainda assim segmentados. Há tentativas, isso há, que, tentando percecionar o melhor modus vivendi, que ainda não existe, não veem outra forma senão a de ir de erro em erro e de ego em ego – mas são estes mesmos elementos que os fazem viver, são o erro e o ego que nos fazem sobreviver.

_________

Abram bem os olhos. Agora fitem este pêndulo. Não parem de fitá-lo com o olhar. O vosso olhar começa a humedecer-se. Estão a ver tudo muito turvo. Estão a começar a sentir sonolência e apatia? Não desistam. Conseguem ver para além dessa fumaça? Conseguem perder-se no labirinto de espelhos? Agora repetimos tudo outra vez, mas de olhos fechados. Oiçam apenas o som da nossa voz: Isto é tudo smoke and mirrors. Uma rubrica dos SillySeason em parceria com o Coffeepaste, na eminência dos perigos hipnóticos da sociedade atual.

Foto: Alípio Padilha

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