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«Viver mal» e «mal viver» - Lado A e B do mesmo vinil

Por

 

Joana Neto
24 de Setembro de 2023

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«Viver mal» e «mal viver» - Lado A e B do mesmo vinil

«Viver mal» é construído a partir de uma ansiedade associada ao peso transformador da maternidade e que se transmite entre gerações de mulheres (Rita Blanco, a avó e mãe, Anabela Moreira, a mãe e filha) que não conseguem acomodar a responsabilidade de um ser que conceberam, mas que ganha vida própria, uma vida que não podem controlar e que não podem proteger a tempo integral. É nessa tensão entre amor, responsabilidade e uma frustração inultrapassável que este filme se move e as personagens vão-se alimentando de diálogos surdos onde tentam, de forma fracassada, expurgar os seus medos e acabam por destruir todos os elos de união. Madalena Almeida (filha e neta), que nos brinda com uma interpretação onde os sentimentos parecem ficar alojados nos seus olhos expressivos, vive nesse limbo entre a rejeição, a carência de uma estabilidade materna e a incapacidade de retribuir o amor quando lhe é dado.


João Canijo é uma espécie de Almodóvar português, a forma como penetra no universo feminino é algo que está por explicar, mas, mais do que isso, o modo como expõe, de forma realista, as tensões sociais, pessoais, familiares a partir de situações do quotidiano, como radiografa conversas cruzadas, tolhidas pelas aparências e pelo constrangimento social, diálogos que transportam incompatibilidades maiores do que qualquer espaço confinado e que podem transbordar a qualquer segundo, bastando-lhe colocar o espectador a ouvir e a observar o serviço de atendimento de um restaurante de hotel, são talentos únicos.  


A estética de Almódovar pode ser encontrada em «Mal viver», filme que venceu o Urso de Prata do Prémio do Júri do Festival de Berlim, no plano em que a personagem interpretada, de forma cirúrgica e com um detalhe notável na sua construção, por Anabela Moreira, toma o duche de touca vermelha, transportando-nos para os apontamentos encarnados que o realizador madrileno costuma utilizar nos seus filmes, «Todo sobre mi madre», «Tacones Lejanos», «Hable con ella» ou «Volver» são apenas alguns exemplos. A sequência do corredor do hotel, em que as luzes se vão acendendo gradualmente, empurra-nos também para esse universo.


A fotografia é magnífica e os planos do Hotel de Ofir, projetado pelo arquiteto portuense Alfredo Ângelo Coelho de Magalhães, e algumas das simetrias que se vão visualizando podem ainda conduzir-nos a uma viagem ao Grand Budapest Hotel de Wes Anderson.


Não nos enganemos, contudo, uma vez que estas referências não passam disso mesmo, o realizador portuense constrói o seu argumento com cunho pessoal e marca distintiva.

 

Em "Viver mal" a lente de Canijo transfere-se das funcionárias e responsáveis do hotel, aquelas mulheres que carregam a responsabilidade de uma máquina que querem sempre oleada, para os seus hóspedes. E esta outra realidade, no mesmo tempo e lugar, permite alcançar uma visão de conjunto que se vai completando. Nas paredes daquele hotel gravitam vários microcosmos pejados de relações tóxicas e autodestrutivas acompanhadas de risotto parmigiano. A combinação dos dois filmes é também essa rara oportunidade de ilustrar personagens secundárias enquanto personagens principais, tornando claro que enquanto se desenrola uma história há tantas outras que se constroem. 


Nas personagens masculinas há espaço para menor textura, como a interpretada por Rafael Morais (que em poucos minutos nos entrega, com grande eficácia, o perfil da personagem), um oportunista sem escrúpulos, ou por Nuno Lopes (com a qualidade e consistência que nos foi habituando), um machista que não suporta a traição, mas a pratica sem qualquer remorso, vendo a companheira, a Filipa Areosa (que agarrou a sua personagem com intensidade, mas muito realismo, sem ser apanhada na armadilha do exagero), como um objeto que lhe pertence.


No entanto, às mulheres não pode ficar reservado esse lugar onde a complexidade e a contradição não existem, onde não se somam diferentes camadas, e elas são, sempre, o centro da ação.


Em Canijo, o retrato social não prescinde da forma como a verdade assume lugares distintos nas classes sociais, a verdade mais crua é atribuída às classes populares e a verdade mascarada às classes burguesas: "A mãe ensinou-nos tão bem a mentir... é má criação dizer a verdade", diz a personagem de Lia Carvalho, explorando bem uma subtileza desconcertante.


É fundamental neste díptico «Mal Viver/Viver mal» o papel das mães, papel que ganha nova intensidade em «Viver Mal» e, claro, voltamos a Almodóvar... As mães, qual decalque vivo de uma reflexão Freudiana, parecem sob escrutínio constante e muitas delas surgem cruéis, implacáveis, verdadeiras Medeias, veja-se as personagens de Rita Blanco, em «Mal Viver» e de Leonor Silveira em «Viver Mal». 


A mãe, arrogante e manipuladora, refugiada numa crueldade burguesa dissimulada de afeto e doença, interpretada por Beatriz Batarda, é um espinho numa relação que quer condenar ao fracasso, sob pena de deixar de ter o controlo total sobre a vida da filha.


Sem qualquer pejo, num diálogo muito marcante, ataca Alice (interpretada com sensibilidade por Carolina Amaral) namorada da filha Júlia (uma atuação muito delicada e comovente da Leonor Vasconcelos) com um demolidor "é mesmo gente do Porto, provinciana, com complexos de inferioridade" e arrasa a poesia que a “nora” escreve, enquanto sorri e agradece, com excessiva vénia, às funcionárias do hotel.


Estas mães que vivem também, demasiado tempo, com o exigente fardo do papel que lhes é atribuído, o peso do seu passado, do que é esperado que sejam capazes e a quem é pedido, tantas vezes, muito mais do que se poderia a exigir a um ser humano, com as suas limitações e fraquezas são, sobretudo, mulheres amedrontadas. O argumento explora as contradições e cada personagem vai sendo algoz e vítima, mas há, sobretudo, essa enorme fragilidade que parece vir da maternidade e dessa ligação umbilical aos filhos que transforma as mães em agressoras em potência.

 

Canijo rodeia-se de um elenco do qual consegue sempre extrair o máximo, as já referidas Rita Blanco, Madalena Almeida, Anabela Moreira, Carolina Amaral, Leonor Vasconcelos, Filipa Areosa, Lia Carvalho, Beatriz Batarda Rafael Morais e Nuno Lopes, mas também  Cleia Almeida, imprescindível na dinâmica que imprime aos diálogos e uma das  personagens mais surpreendentes, que combina uma leveza disruptiva face à ansiedade reinante e que como funciona simultaneamente como elemento agregador e desagregador, Leonor Silveira, que nos confronta com uma personagem de caráter duro, impiedoso e, ainda assim, ambivalente e Vera Barreto, que vai estabelecendo um interessante elo entre as personagens. Um elenco de luxo, sim, e extraordinárias interpretações.

 

“Mal viver” é o Lado A e "Viver mal" é, assim, o lado B do mesmo vinil, vinil que nos proporciona ainda uma música escondida feita dessa junção entre dois lugares. A união das partes deste díptico torna cada um dos filmes ainda melhor, como se colasse um retrato rasgado ao meio. Não deixem de ver o retrato completo.

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