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João dos Santos Martins passa pela casa dos espíritos para acender a luz e revelar um corpo a meio da sala.
A nova criação de João dos Santos Martins ocupa o vácuo entre criar e existir do corpo romântico, tradicionalmente distante. Numa espécie de zero horas da apresentação, os bailarinos entre a assistência recordam esse aspeto messiânico do artista presente, aqui trocado pela estratégia de devolver caras indistintas ao público até se reunirem no palco.
Antes de assumirem a função de “vocalizantes” batizada pela audiodescrição – a cargo da turma de formação e pesquisa coletiva Pensar a audiodescrição em dança contemporânea, com curadoria de Ana Rita Teodoro e moderação de Márcia Lança –, estrear a figura fora de cena é uma mnemónica para fixar o corpo, sem perdê-lo para a ressonância.
Ao silêncio, quarta parede da cenografia nua e funda do palco, junta-se uma onda de rádio vocal que se desloca pelo espaço, uníssona, mas sem responder ao movimento desvinculado entre si do conjunto (em parte aplicação da partitura de Pauline Oliveros, Horse Sings from Cloud (1975)).
A prática é de um silêncio atuante e de um estado de vigília, completado (ou perturbado) pelo sentido subjetivo da luz sem favores à dança de Filipe Pereira e Joana Mário, pensada para desenhar e intervir.
Sem medo de cair no silêncio original ou de perder um efeito, o vibrato rijo é um segundo vazio, sustentado pela capacidade discreta dos intérpretes descansarem a voz e o corpo na espessura coreográfica do som. O movimento isolado dos oito é um mecanismo assíncrono: regula o anti-solfejo de uma canção que nunca chega a ser entoada e que não serve o jargão de uma dança “ativada”. Antes de escrever as notas, a ilusão é a do que seria o som da pauta musical.
O coro-unipessoal equilibra-se numa homeostase sujeita a pontuais e subtis transferências que insuflam e desinflam os corpos, disseminando os reflexos. Até à impressão de dança (seja lá o que isso for), os braços pendentes do tronco percorrem ângulos do ar em sondagem, esboçam ações intermitentes ou com aspeto de reversão.
Em grande parte, falar de «interações» depende do ângulo de visão. Quando praticadas com intenção, o arranjo desdobra-se e dissolve-se, numa alienação usada para ironizar o Ensemble. Com efeito, é nos instantes coletivos que a distribuição espacial se revela particularmente desafiante e a referência à Escola da dança é melhor agitada, sugerindo que a coesão, ao contrário da disciplina histórica, não chega para elevar uma Obra.
Sem tradução direta, citações de butoh recordam um Diálogo com a gravidade (título de Ushio Amagatsu): a exaustão invertida da lentidão, vive o que não vemos, convertendo o esforço num lugar contemplativo. Mas se eremitar pelo palco, numa dança quieta, deixa um etéreo “à mão”, funciona sobretudo para prolongar o efeito da presença.
Talvez por isso, a dança de Vida e Obra seja uma corrida de átomo, em que o tempo é o espaço a mover-se e a lentidão gera mais corpo – atraindo a (in)compatibilidade entre a finitude do corpo e a propagação da consciência. Apropriando-se do cliché, se por definição, onde há espírito, não há corpo, viver já parece implicar uma presença de espírito.
O título confunde essa sucessão dos fenómenos e mete-se com o género biográfico, que lê o passado pelo presente e o futuro pelo passado. Contemplar no ar o movimento e duvidá-lo como apenas gestos, ações a metro, ou a meio, corresponde a esse registo interior e especula aceder à passagem de atos “civis” a matéria coreográfica. Ensaio ou memória, ameaçarem às tantas desequilibrar-se pela boca de cena, é atiçar o real; dizer que o único fantasma é o corpo a ver-se.
Um corpo habitado
A peça que estreou no DDD2024 (03-04 de maio) e passou pela Culturgest (16-18 de maio), vê-se como um negativo dos trabalhos recentes do coreógrafo em torno da história, da notação e da pose – evidente em Está Visto (2023), Coreografia (2020), ou esboçado em Onde está o casaco? (2018). Lugares canónicos, risíveis, mas essenciais à tese de que o processo é a melhor obra.
Aqui, a ação estafada do espetro, aplicada à estética do exercício expandido, dilui a grandiloquência da dança e põe a experiência a dançar para dentro. O resultado é uma ópera esvaziada de libreto, de que sobrou este arrasto, avesso a eventos e enredos.
O dispositivo aponta à dependência estrutural de achar que não se está a passar nada se o ato não for musicado, fuga normal para mediatizar o corpo. Sem a impressão de uma dança a defender-se da fala e do dever de enfeitar a narrativa, fica a facilidade do movimento nomear-se a si próprio e dizer.
O método corre o risco calculado da rejeição da ação, por um estado onde – à letra –, não se passa nada. Ou até por isso, sujeita-se ao inventário comum de lugares poéticos oriundos da espiritualidade regulamentar da hora e meia de espetáculo; fórmulas que facilmente descaem e insistem na ideia de um corpo profano, por oposição a um sagrado oficial.
No final de Vida e Obra, a sensação de colagem da luz à aurora boreal, visível dias antes, problematiza essa beleza sem distância certa para ser vista: em que o excesso ou a ausência de suposto real, tornam-se um desafio à imaginação e complicam a transmissão.
Sintetiza um modo de ver espetáculos, entre a exigência imersiva e a desconfiança concetual, que atalha o problema de uma realidade aparentemente intuitiva – onde se inclui o corpo –, em que “Toda a dificuldade começa quando verificamos que ele pode ser mais ou menos habitado, mais ou menos ocupado” (José Gil). A surpresa do público cá fora, pela voz “analógica” e ao vivo do espetáculo, dá conta dessa antecipação da ausência como expectativa. Um corpo elevado a bem escasso.
Vida e Obra
De João dos Santos Martins
Texto por Duarte Amado
19 de maio de 2024, 01:26
Foto por José Carlos Duarte
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