Conteúdos
Agenda
COFFEELABS
Recursos
Sobre
Selecione a area onde pretende pesquisar
Conteúdos
Classificados
Notícias
Workshops
Crítica
Por
Partilhar
Ela levantou-se, caminha, direita como uma jovem aprendiz de bailarina, para o púlpito. Tem um vestido preto, sobre ele um camiseiro com flores. Diz Bom dia. Agradeço muito estar aqui, agradeço em especial à Maria Andresen. Vou ler um texto muito pequeno. Então, tira do bolso uma folha A4 que desdobra e começa a ler. Ela é Adília Lopes, lê sobre uma livraria da sua infância, num colóquio sobre Sophia de Mello Breyner Andresen, na Fundação Calouste Gulbenkian, em maio de 2019. No seu texto muito pequeno, diz que Os textos de Sophia davam-me vontade de escrever textos. Diz, Um dos poemas de Sophia de que gosto mais é sobre um quadro de Vieira da Silva. Chama-se “Maria Helena Vieira da Silva ou o itinerário inelutável”. Fala do labirinto mas dá esperança. Quando quero escrever releio este poema, e releio também “Retrato de Mónica” e “Arte poética IV”. São textos inspirados e inspiradores. Sophia acompanha-me desde a infância, dá-me alento. Depois, ela sobra a folha e volta a sentar-se enquanto a plateia aplaude.
Começo por recuperar este momento para falar sobre o lugar da escrita. Na Arte Poética IV, Sophia escreve que Deixar que o poema se diga por si, sem intervenção minha (ou sem intervenção que eu veja), como quem segue um ditado (que ora é mais nítido, ora mais confuso), é a minha maneira de escrever. E na Arte Poética V, ela fala do lugar secreto no jardim onde pode ouvir o nome do mundo dito por ele mesmo.
Nem sei exactamente como escrever isto, mas o lugar onde o poema acontece, ou onde se pode escutar dito por si mesmo para que a poeta o possa escrever, este lugar como se encontra? É uma pergunta que me faço muitas vezes; melhor, uma inquietação que me acompanha.
Então, penso na Maria João Pires e em como ela se coloca perante o piano, em como há uma concentração sagrada no momento de tocar, em como ela convoca a atenção, a dela e a nossa, para aquele teclado, e como parece que mais nada existe para além daquilo; e que basta existir ou deixar existir para que aconteça. Como o poema, a composição a dizer-se. Penso: escrever é um pouco como tocar piano.
Depois, reparo no contraste entre a solenidade destes momentos e a banalidade dos momentos de escrita. Escrever no telefone, ou no computador portátil; a possibilidade de escrever em qualquer lugar. Ao mesmo tempo uma benção e uma maldição. O risco permanente de banalizar o exercício de escrita – que é ao mesmo tempo o processo que a salva, porque nos permite questionar o que é escrever, ou como se organiza o que se escreve; e para isso, seria bom ler o que Gertrude Stein escreveu -, dizia, o risco de banalizar o exercício de escrita já me levou a programar um despertador para as quatro da manhã, e escrever a “horas mortas”, ou tentar perceber o que muda quando escrevemos com o caderno pousado sobre uma pedra posta na vertical num cromeleque há milhares de anos.
Como se pudesse encontrar três momentos claros no nascimento de um texto, sei que passarei por procurar, para depois maturar, para depois organizar. Tem sido sempre assim: por vezes, espero por alguém ou alguma coisa, e enquanto espero pego no telefone ou no bloco de notas, e escrevo. A cabeça sempre a criar narrativas, a pôr hipóteses, e o bloco de notas ou o telefone como forma de guardar estes jogos da imaginação. Somo-lhes (ou alimento estas hipóteses com) idas a museus, filmes e livros, conversas que tenho ou ouço, espectáculos que vejo. Depois, caminho. Esse tem sido o meu lugar secreto no jardim. As coisas organizam-se sem esforço. Então, sento-me ao computador. Quanto mais inesperada a circunstância melhor: luzes apagadas e muitas vezes música. Muitas vezes música não particularmente boa ou entusiasmante. Coisas que são como mantras, que ouço uma e outra vez durante horas.
Numa entrevista que se encontra no Arquivo da RTP, Sophia disse que Havia um poeta que dizia que num poema o primeiro verso era dado pelos deuses, os outros eram feitos pelo poeta. Está claro que estas imagens são sempre um pouco, apenas… Dizem como as coisas se passam de uma maneira um bocado geral. Na realidade, eu sempre procurei escrever os versos que existem. Quer dizer, aqueles que são como que a verdade das coisas, e não uma verdade escrita em mim sobre as coisas. Isto é, sempre considerei, no fundo, que, aliás, já tem sido tanta gente, que o poeta é um lugar onde o poema se escreve. E que há uma atenção, a primeira qualidade dum poeta é uma atenção enorme ao universo, é encontrar uma certa transparência onde as coisas aparecem, onde o mundo se projecta e aparece e do qual ele toma consciência e ele traz à palavra. Uma coisa importante da poesia: a poesia é a palavra e a poesia nasce sempre do caos, da confusão da qual o homem emerge através da palavra. E, por isso, não se trata bem de improviso. É evidente que há uma parte de ofício num poeta. (…) O que o poeta cultiva em si é essa espécie de transparência, de atenção, que torna possível o aparecimento do poema. Eu muitas vezes digo que um poeta escreve, ao contrário dum ensaísta, por exemplo, escreve não para dizer o que sabe mas para saber o que sabe. É uma diferença fundamental.
E eu o poderia repetir outra coisa que Adília disse sobre Sophia no colóquio: que os textos que escreve, ou neste caso a entrevista que deu, são inspirados e inspiradores. Sophia tem sido uma guia para este aprendiz de feiticeiro, ao longos dos tempos. Na Arte Poética V escreveu ainda que
No fundo, toda a minha vida tentei escrever esse poema imanente. E aqueles momentos de silêncio no fundo do jardim ensinaram-me, muito tempo mais tarde, que não há poesia sem silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a despersonalização.
Um dia em Epidauro — aproveitando o sossego deixado pelo horário do almoço dos turistas — coloquei-me no centro do teatro e disse em voz alta o princípio de um poema. E ouvi, no instante seguinte, lá no alto, a minha própria voz, livre, desligada de mim.
Tempos depois, escrevi estes três versos:
A voz sobe os últimos degraus
Oiço a palavra alada impessoal
Que reconheço por não ser já minha.
E eu sempre encontrei nestas palavras muitos guias para o trabalho que desenvolvo no teatro. Gosto particularmente da ideia de o vazio e a despersonalização que Sophia diz ser necessário para o surgimento do poema. Muitos dos espectáculos que me parecem menos bem conseguidos foi nisto que se desviaram: na despersonalização. O artista impõe-se ao sujeito.
Parece que não há, quando lemos isto, essa coisa a que podemos chamar “responsabilidade artística”. Na verdade, se responsabilidade se pode intuir nestes exemplos, é a responsabilidade de estimar qualquer coisa que nos é dado. De não desvirtuar o poema. O que Jorge Luis Borges escreve, no seu Este Ofício de Poeta:
Se tivesse de dar um conselho aos escritores (e penso que não precisam, porque cada qual tem de descobrir as coisas por si), dir-lhes-ia simplesmente isto: que adulterem o menos possível o seu trabalho. Acho que não se ganha nada em aldrabar. Chega o momento em que descobrimos já o que sabemos fazer – quando já encontrámos a nossa voz natural, o nosso ritmo. Por isso não creio que as pequenas emendas se revelem úteis.
Mais adiante diz:
Quando estou a escrever uma coisa tento não a compreender. Não me parece que a inteligência tenha muito que ver com o trabalho do escritor.
Há de dizer, mais para a frente, que apenas tenta transmitir o que é sonho.
Em jeito de conselhos, também há os que Dorn deu a Tréplev, o médico na “Gaivota”, de Tchekhov, depois de ver a sua experiência dramatúrgica. São palavras que repito muitas vezes a mim mesmo:
Descreva apenas o importante e o eterno. (…) Na obra artística tem de haver uma ideia clara, definida. Tem de saber para que é que escreve, porque se enveredar por este caminho pitoresco e sem objectivo determinado, ficará perdido, o seu talento vai levá-lo à perdição.
Curioso é notar que o texto que dedico à escrita, seja aquele em que mais me demito da tarefa, citando permanentemente. É uma partilha. Talvez o faça mais vezes, ao longo do tempo. Talvez consiga ganhar coragem para fazer propostas mais concretas. Mas termino. E termino com as palavras de Faulkner, no seu discurso de aceitação do Nobel. Palavras que me emocionam. Palavras, como tão bem disse Adília sobre os textos de Sophia, inspiradas e inspiradoras:
Our tragedy today is a general and universal physical fear so long sustained by now that we can even bear it. There are no longer problems of the spirit. There is only the question: When will I be blown up? Because of this, the young man or woman writing today has forgotten the problems of the human heart in conflict with itself which alone can make good writing because only that is worth writing about, worth the agony and the sweat.
Imagem: mesa de escrita em Røst.
BREVES CRÓNICAS DO TEMPO são pequenos episódios, registos, princípios de reflexão pelo dramaturgo Guilherme Gomes.
Apoiar
Se quiseres apoiar o Coffeepaste, para continuarmos a fazer mais e melhor por ti e pela comunidade, vê como aqui.
Como apoiar
Se tiveres alguma questão, escreve-nos para info@coffeepaste.com
Mais
INFO
CONTACTOS
info@coffeepaste.com
Rua Gomes Freire, 161 — 1150-176 Lisboa
Diretor: Pedro Mendes
Inscreve-te na mailing list e recebe todas as novidades do Coffeepaste!
Ao subscreveres, passarás a receber os anúncios mais recentes, informações sobre novos conteúdos editoriais, as nossas iniciativas e outras informações por email. O teu endereço nunca será partilhado.
Apoios